SINTONIA — 4ª TEMPORADA [SÉRIE]- (2023):

Sombrionauta
10 min readSep 16, 2023

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BLACK POWERLESS.

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Um dos grandes problemas de ser negro é que não se deseja ser negro. E isso pode ser bastante passivo ou brilhantemente libertador.

Libertador, porque faz com que você tenha uma visão bem simples sobre si: a negritude em verdade é um produto do Irmão-Sistema, mais ou menos desde 1444 e acentuada com a Colonização Portuguesa notadamente as que criaram esse país chamado de Brasil.

Nome apropriado para um lugar que sempre teve como sua base econômica a exportação de matérias-primas que sempre tiveram o tom vermelho, seja como tintura, seja pelo sangue dos escravizados, notadamente pretos e povos originários.

No país da cor vermelha sempre foi um problema discutir o que diabo era um negro. Porque nem mesmo os colonizadores sabiam direito o que isso seria e precisou surgir uma série de teorias racialistas criadas por gente como o químico irlandês ROBERT BOYLE (1627–1691) deduzidas à partir das teorias de reflexão de luz dos ingleses ROBERT HOOKE (1632–1703) e ISAAC NEWTON (1643–1727).

BOYLE deduzia que todas as cores vinham do branco, logo ADÃO e EVA deveriam ser brancos e isso explicaria porque houveram diferenças nas cores das outras “raças”.

ENTÃO TUDO SURGE DO BRANCO.

Todo o espectro dessa cor definiria o que veio depois. E se pensarmos bem, é o que o Capitalismo tende a afirmar. O pessoal das exatas, nunca quis aceitar que suas bases lógicas jamais foram frias totalmente.

MESMO SABENDO QUE NÃO EXISTE ZERO ABSOLUTO.

Logo é possível escapar do pensamento do Irmão-Sistema se você reconhecer que sua identidade está sendo montada para lhe manter no escuro.

Nessa temporada SINTONIA (2019–2023) escolhe a outra forma de não querer ser negro, ou seja, aceitar o seu destino.

Essa temporada é sobre isso.

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O ORI COROADO.

Muito do pensamento negro mais conservador defende que os pretos vieram de locais onde eles eram reis e rainhas. Em verdade defendem que existiam nobrezas nesses locais e que assim a chegada dos europeus havia tomado essa qualidade dos negros.

Tem sentido: a noção de chefatura preta sempre foi combatida no Brasil, porque ela era uma outra forma de organização em território nacional que por vezes entrava em conflito com a proposta de controle perpetrada pelas elites crioulas brancas.

Isso significa que os negros de origem preta continuadamente sofreram da falta de uma liderança que soubesse como comandá-los, pois todas as vezes que alguém assim surgia era sempre perseguido, exterminado ou capturado.

LUIZ FERNANDO SILVA/ NANDO (CHRISTIAN MALHEIROS) SEMPRE FOI ESSA LIDERANÇA EM SINTONIA.

Porém ele é uma liderança que sempre quis ser seu melhor amigo DONIZETE SANTANA DA COSTA/DONI (Jottapê), o jovem cantor de funk, boy de periferia, e é claro, o vacilão de plantão da produção.

Mas ele é branco. E toda a sociedade sempre se esforça para salvar um jovem branco no Brasil. Inclusive nosso querido Nando.

Depois dos eventos da terceira temporada em que alguém trai NANDO e ele deve fugir, deixando para traz os sonhos de branquitude acalentados por sua esposa SCHEYLA (JÚLIA YAMAGUCHI), e DONI, que foi baleado durante um atentado feito na cafeteria do casal.

Uma ação lógica para um líder militar e que parabenizaríamos, se ele fosse branco. Mas como ele é negro, achamos estranho ele fugir e abandonar a família.

Depois do tiroteio vemos que novamente toda a série tenta se desenvencilhar da importância da figura de NANDO, assim como o Brasil sempre tentou negar, desde GILBERTO FREYRE (1900–1987) que dependia muito do tratamento horrível e promíscuo que dava a sua população negra.

Todos os que tiveram alguma esperança de mudança social por meios não tradicionais em SINTONIA são esmagados e execrados.

NÃO QUE OS MEIOS TRADICIONAIS QUE ELES TENTARAM TENHAM DADO CERTO.

Assim caminhamos na narrativa que me parece um pouco acelerada, menos cuidadosa em termos de argumentação do que as outras foram. Muito aqui foi feito com base em vários sensos-comuns que o brasileiro acredita, com lances que se assemelham a filmes de ação estadunidenses.

Neles um preto jamais escapa.

RAINHA APRISIONADA.

A produção apelou muito dessa vez para nosso sentimentalismo sem fazer uma crítica dele. Por isso temos muito destaque para drama de SCHEILA, aprisionada acusada de ser uma cúmplice ativa de NANDO, mas que na prática apenas usufruiu das vantagens de ele ser líder do tráfico.

O que é só o que faz desde o começo da série: o papel daquelas clássicas moças negras brancas de periferia, cujo único produto e qualidade que têm para oferecer e vender, é sua capacidade de se mimetizar a algo próximo de uma mulher branca, e que à medida em que ela está cumprindo sua prisão, vai desaparecendo, junto com seu tratamento capilar para ficar loira.

Curioso como ela apresenta que teve que ser forte na prisão, mas em verdade não o foi. Aqui está outro ponto na produção bem gritante, que demonstra que com exceção de RITA DE FREITAS (BRUNA MASCARENHAS), todas as mulheres ali são as típicas mulheres que se sustentam em cima do reinado dos homens. Elas não têm poder em si mesmas, sempre se apoiando na estrutura machista, seja do crime, seja do direito para sobreviverem. E mesmo na prisão SCHEILA percebe que pode usar isso contra outras mulheres de cabelo pixaim, mesmo as que a ajudaram.

RITA VAI SE TORNANDO ASSIM TAMBÉM.

Quando SINTONIA tenta criticar algo dessa estrutura, vejam só, é algo que falei que eles costumavam jamais citar, a educação: interessante que é a educação de modo geral, embora ela esteja cursando uma faculdade particular.

Aqui a série faz algo deplorável: ela faz uma recauchutagem das esperanças do brasileiro jovem de periferia [ ], ou seja, sai a fé, e entra as faculdades privadas de direito, sempre discutíveis.

RITA por exemplo me parece que não aprendeu nada. Ela tenta usar mais seus contatos no direito e no crime para defender seu marido, o evangélico FORMIGA/CLEYTON (MC M10) das garras do sistema judiciário. Nada mais justo, porque, tal qual acontece em várias famílias de periferia, o homem custeia a universidade de sua esposa (ter bolsa te isenta da mensalidade, mas faculdade tem outros custos) até que ela possa ingressar em sua profissão, e ele, se quiser e puder, possa também fazer o curso superior.

MUITAS VEZES A MULHER ABANDONA O COMPANHEIRO DEPOIS DISSO. AS VEZES PORQUE ELE, EM INVEJA, COMEÇA A AGREDI-LA OU, ELA PERCEBE QUE PODE CONSEGUIR UM COMPANHEIRO MELHOR.

Mas não é sempre. Aliás o melhor personagem nesse temporada, em termos de representar o jovem trabalhador é FORMIGA: sua ânsia em resistir voltar ao crime, as constantes humilhações feitas pelos homens da lei e as mulheres do tráfico, sua expressão de dor e humilhação, seriam perfeitas para alguém que integraria os ENTREGADORES ANTI-FACISTAS (2020).

MAS A ÚNICA ESPERANÇA QUE SINTONIA NÃO ACALENTA, PORQUE NÃO É ESPERANÇA, É A CONSCIÊNCIA DE CLASSE À ESQUERDA.

Aqui a série que um dia foi controlada por KONDZILLA (1988), aquele filho de professora, apresenta as novas esperanças do jovem periférico.

EMPREENDEDOR DESQUALIFICADO.

A música sempre foi uma das esperanças em SINTONIA, que pode ser lida como arrumar um emprego de alta qualidade apesar de ser periférico. DONI era a encarnação disso, do jovem “branco” que retorna a Europa, do talento inato, logo genético, que voltará a conviver com os membros de sua “nobreza”.

Ao ser baleado, e justamente associado ao tráfico, sim justamente, porque toda a vez que ele teve algum problema sempre apelou para o NANDO, nosso mc vacilão passa a lamentar tal amizade.

Aliás o tráfico e seu combate sempre flagelaram mais a população negra masculina jovem, mesmo que no momento em que estamos muita gente conservadora, inclusive no jurídico, indicado por presidentes de esquerda, tenda a fazer vista grossa disso.

Depois de baleado DONI teve de gastar milhares de reais para sua cura e fisioterapia em hospitais particulares.

CURIOSO, EU FUI BALEADO E APENAS ACESSEI OS HOSPITAIS E PLANOS DE SAÚDES PÚBLICOS PARA ME CURAR. FICA A DICA.

Logo todo o dinheiro dele é sugado para essa dívida, e como todo o jovem MC, ou seja, todo o jovem que não compreende que não é imortal e então deve guardar parte de seus rendimentos, e não ficar gastando tudo em ostentação inútil, ele vai à falência.

Alguém diria que isso é típico da juventude.

E QUEM DIZ ISSO DEVE SER BRANCO, PROVAVELMENTE.

Gente jovem negra tem de trabalhar cedo, tem de fazer planos, tem sim de abrir mão de certos prazeres.

MAS ELE É NEGRO BRANCO, COMO TODA A PERIFERIA QUER SE ACREDITAR.

Sim essa é a maior crítica que SINTONIA faz, sem saber que a faz: nas periferias a consciência de classe preta e negra é quase inexistente, porque ela se torna mais clara, literalmente, no mundo do trabalho. Tanto que o policial que agride FORMIGA, é branco e militar.

Por isso os movimentos negros tendem a não ter grande penetração em bairros pobres atualmente, porque o FUNK nunca conseguiu chegar onde o RAP chegou: a fazer uma análise econômica de si mesmo. Foi o que MC DONDOKA (LEILAH MORENO) descobriu.

Ao final, tudo termina meio rock’in roll para nosso MC: ele percebe que sua branquitude tem poder nas periferias e monta sua gravadora, composta de jovens idealistas talentosos e velhas MC’S em decadência, parecidos com ele, e portando tão fáceis de manipular quanto o mesmo foi.

NO FINAL UM EMPRESÁRIO BRANCO IRÁ DOMINAR “SOM DE PRETO, DE FAVELADO MAS QUANDO TOCA NINGUÉM FICA PARADO (TU TÁ LIGADO)”?

Não, provavelmente não está .

Porém fazer o quê? Geração que tem DJAMILA RIBEIRO (1980) como pensadora preta e não SUELI CARNEIRO (1950) dá nisso.

ORI ENCARCERADO.

Tanto DONI quanto RITA, vão abandonando NANDO. Nada mais comum na vida de um negro :

DAR LEALDADE E NÃO SER RETRIBUÍDO POR SEUS AMIGOS.

Assim que os dois se desvincularam de suas origens, ou seja, arrumaram métodos de emprego e sobrevivência que não dependem dele, passaram a não mais ser tão amigos do nosso querido velho trabalhador do tráfico.

SIM, TRABALHADOR: NEGO PENSA QUE TRAFICANTE FICAR RICO AOS 23 ANOS É FÁCIL, MAS ESQUECE QUE A IDADE MÉDIA DE ENTRADA NESSE TIPO DE ORGANIZAÇÃO É POR VOLTA DOS 12 ANOS. LOGO, É UMA CARREIRA PERIGOSA QUE SÓ DÁ RESULTADOS DEPOIS MUITO TEMPO.

NANDO é traído e desconfia de seu padrinho no crime, BADÁ (SANDRÃO RZO), por que gente dentro de sua própria organização o traiu. E aqui está o pior furo de roteiro dessa temporada: subestimar o tempo.

OU NÃO. ENTENDA.

Tudo acontece rápido demais: DONI ao montar sua gravadora aprende a fazer beats rápido demais. Qualquer um que monta base sabe que demora muito para entender os programas. Não basta apenas tê-los, e os computadores, é preciso treino.

MAS ELE É “BRANCO”… LOGO…PERDOAMOS QUALQUER UM DESSES DESLIZES, NÃO É… ACHO QUE CHAMAMOS ISSO DE “VONTADE”.

RITA entra logo em uma empresa fantástica de advocacia graças a sua lábia. Fico impressionado com essa velocidade de eles conseguirem coisas.

Porque aqui está a grande irrealidade nessa temporada, a falta de temporalidade. Eles perdem e reconquistam as coisas muito rápido e a série sabe que tem algo errado nisso, porque sabe que se colocar anúncios e recordatórios dizendo “dois anos depois”, vai destruir as esperanças novas criadas por ela mesma.

PORQUE O JOVEM NÃO ACREDITA NO TEMPO. E QUANDO ACREDITA DEIXA DE O SER.

É o que NANDO passa a acreditar. Porque ele precisa saber quem o traiu. E série faz uma grande reviravolta de cena sem fazê-la direito por causa disso.

Vou dar um spoiler sem dar spoiler: sabiam que um implante de cabelo precisa e pelo menos três anos para ficar bom? Então se as temporadas estão ocorrendo dentro de seus anos de estreia 2019–2021–2022 e 2023 e a terceira temporada terminou em 2022, alguém que fosse calvo não poderia ter seu cabelo crescido tão rápido…

Ao mencionar carecas em sintonia, eles omitem um clássico sobre isso: que quando alguém é negro e careca, geralmente falamos “aquele negrão careca”.

Se você assistiu, vai entender o furo aqui.

Então a série é como o jovem brasileiro periférico atual se vê, apenas pobre, mas não racializado, quase como algum personagem ingênuo do MACHADO DE ASSIS (1839–1908).

E NANDO? Ele aceita que deve cumprir o papel de sempre e terminar sendo o que seu padrinho foi. CARECA? Talvez no futuro. Mas agora ele percebeu que todos os seus entes queridos querem que ele aceite o lugar histórico do negro submisso, sempre produtor de riquezas e poder, que nunca lhe concederam o que ele sempre quis, ser branco.

Consciente disso, ele vai até o barbeiro, clássico símbolo de dominação do povo negro, e corta seu cabelo, sempre alisado nas outras temporadas, e assume o seu pixaim de prisão.

POBRE ORI BRILHANTE E IMPOTENTE.

Eu fico impressionado como nós negros sempre somos os soldados do ILUMINISMO (1685) aqui pelas terras americanas e depois somos sempre relegados a segundo plano.

A gente se esforça, mostra habilidade e faz críticas acertadas, lutamos contra várias dificuldades, entramos em faculdades, inovamos na internet, esperando que o pessoal de esquerda nos reconheça e tomamos o mais giro.

PORQUE ELES SÃO MAIS BRANCOS DO QUE DE ESQUERDA.

E precisamos aceitar isso. Aliás, precisamos que a rapaziada branca de esquerda pare de dar bobeira e fique tentando ser nosso amigo.

NÃO PRECISAMOS DE AMIGOS NA POLÍTICA, E SIM, DE ALIADOS.

E pelo jeito essa rapaziada não entendeu isso.

NEM NÓS.

Se gostou desse texto, 50 palmas serão bem-vindas e agradecidas.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).