O CRIME É MEU [FILME] (2023):

Sombrionauta
9 min readAug 25, 2023

--

O AFETIVO DESLEAL.

Ouça esse conteúdo no spotify, caso esteja em um celular, ou clique no link abaixo, caso esteja num computador:

Eu já disse que gosto do cinema francês, em especial de seus cineastas e roteiristas suicidas, confesso. Gostava do JEAN-LUC GODARD (1930–2022) em particular, que ouvi muita gente dizer que era intragável como pessoa.

BOM, O DOUTOR HOUSE (2004–2012) TAMBÉM, LOGO…

O problema não é as pessoas serem intragáveis, e sim, entediantes. Gente comum é intragável, porque é entediante. Os filmes franceses geralmente são sobre esse tipo de personagem, e é por isso que muita gente os acha aborrecidos.

DETESTAR O COMUM, É UMA FORMA DE DESPREZO DE SI. SE VOCÊ É COMUM.

Aliás eu gostava de como GODARD definia que a amizade, assim que rompida, redundava não é ódio, e sim, em desprezo, coisa que ela pensava ser muito mais terrível: ódio é uma paixão frustrada, desprezo é algo que não tem a qualidade de nem mesmo ser detestado, porque é uma monumental perda de tempo.

O DESPREZO É FRUTO DE PERDER TEMPO COM ALGUÉM OU ALGO QUE VOCÊ AMAVA.

Mas as comédias são sobre pessoas comuns, logo, deveriam ser entediantes. No entanto fazem bastante sucesso, mas não ganham muitos prêmios da academia, a não ser que o comediante se mate no final, ou pele menos tente:

BIRDMAN (OU A INESPERADA VIRTUDE DA IGNORÂNCIA) (2014) ESTÁ AÍ PARA COMPROVAR ISSO.

Porque é uma coisa fascinante como o cinema gosta de exterminar o comum, pelo menos o cinema de massas. O de arte se propõe a tornar o comum sério, por isso que ele é chato.

MAS SE VOCÊ VER A COMÉDIA TESTANDO O QUANTO O DRAMA É UM BOCADO CONSTRANGEDOR, ASSIM COMO A POLÍTICA, AÍ VOCÊ ESTÁ PERANTE UMA DELICIOSA COMÉDIA DE COMO OS DRAMÁTICOS SÃO PATÉTICOS.

Esse filme é sobre isso.

[SIGA LENDO A PARTIR DAQUI SE VOCÊ VEIO DO INSTAGRAM]

O HUMOR DO MAL-HUMOR.

Quando se está deprimido, nada melhor do que ser mal-humorado. Porque ficar feliz em meio a alegria de outras é uma forma de se achar superior. Sempre gostei dos mal-humorados por evitarem isso.

SUA SERIEDADE É TÃO PROFUNDA QUE É MUITO DIVERTIDA. SEMPRE ADOREI ESSE TIPO DE GENTE.

Você também: mal humorados como o acima citado DOUTOR HOUSE nos faziam entende o quanto a seriedade de nossas causas esconde uma mecanização do ser, uma reificação, um maquinismo que não é próprio da humanidade.

QUEM MANTÉM SUA DISCIPLINA EM MEIO À TOTAL FALTA DE NECESSIDADE DELA SEMPRE É HILÁRIO.

Pelo menos é isso que o HENRI BERGSON (1859–1941) defendia ao discutir o humor castigador que ele utilizava. Os franceses têm essa tendência a se castigar, de desconfiarem de sua própria seriedade, talvez porque criaram de fato a primeira revolução da história e depois deram um rodo nela. Os jovens conservadores defensores da monarquia francesa atual, não passam de filhos da situação política criada pelos ancestrais deles que executaram sua realeza.

Esse tipo de percepção, de que podemos nos superar, mas temos medo de que se superar é apenas outra fase para a próxima superação é que nos atiça a sermos totalmente inúteis em mudar.

MUDAR PARA MUDAR DE NOVO, PREFIRO LUTAR PARA CONTINUAR ME ALTERANDO AO QUE SOU ATUALMENTE.

Esse paradoxo, essa falta de querer se superar é uma marca do cinema francês, e também de seu teatro, principalmente o que chamamos de COMÉDIA HUNGARA (1924(?)) um estilo de escrita cômica que fez muito sucesso na França e na Argentina produzindo grandes filmes hollywoodianos, como QUE O CÉU A CONDENE (DECEPCTION, 1946). Neste tipo de filme, do roteirista LOUIS VERNEUIL (1893–1952), as pessoas ditas dramáticas são postas a prova de seus ditames ao serem confrontadas com a coisa mais cotidiana, entediante e chata possível, a saber, a sobrevivência.

Assim ao contrário das comédias que testam os comuns e os apresentam como medíocres, e os que não são, ficam ricos, logo anormais, assim incomuns, aqui os dramáticos, como juízes, pianistas, maestros, atores, políticos são apresentados como tomados pelas paixões mais asquerosas possíveis.

PAGAR O ALUGUEL E ARRUMAR UM EMPREGO, COISA QUE NECESSARIAMENTE NÃO SEGUE ESSA ORDEM LÓGICA.

Nesse tipo de comédia burguesa, o grande drama é o emprego.

EFEITO SEU MADRUGA.

É fascinante como o comunismo dá certo. Sério. Nego fala que gente que tem emprego garantido, serviços sociais de qualidade e finalmente, paz e alimentação subsidiada não tem ganância.

MEU CARO LIBERAL BABACA A IDEIA É ESSA: GENTE COM EMPREGO BOM NÃO FICA PERDENDO TEMPO SE VINGANDO OU SE METENDO NA VIDA DOS OUTROS.

Essa é a grande base do comunismo científico: pleno emprego. Se outros comunistas falam coisas como “justiça, liberdade e igualdade” são apenas uns canalhas, perdão, de umas canalhas que cuspiram no HEGEL (1770–1831), que nem aquela feminista cuspiu no rapaz do UBER (2009) que nunca trabalharam ou tiveram um emprego até ficarem adultas. E algumas não tiveram nem depois.

A teoria do pleno emprego de MICHAŁ KALECKI (1899–1970) nesse sentido a melhor defesa do que o comunismo deve defender: nem etnia, nem gênero, nem religiosidade, nem cultura nem nada disso.

COMUNISMO TEM É QUE DEFENDER PLENO EMPREGO.

O resto é liberal bobo que não tem culhões ou ovários para defender os trabalhadores de fato e fica com essas bobeiras que não levam a nada.

“UAI, MAS TU NÃO É NEGRO, CARO SOMBRIONAUTA”.

Sou. Aqui está a questão: defender a negritude não é me forçar a gostar de orixás, ou usar turbante, é entender porque a historicidade da categoria sociológica a que estou submetido está impedindo a mim, e a outros, de alcançar o pleno emprego.

Não quero saber da negritude, do feminismo, do marxismo, do anarquismo, dos lgbt’+ ou qualquer dessas coisas, se o seu final não é o comunismo, ou seja, uma sociedade em que estejamos com nossos empregos garantidos.

PORQUE ESSES MOVIMENTOS, SE NÃO GARANTEM ISSO, SÃO APENAS OUTRAS FORMAS DE CAPITALISMOS DISFARÇADAS DE CARIDADE BURGUESA SAFADA.

Quem não gosta de trabalhar é você, cabra safado que é um mimado bobo que acha que sua mãe deve lhe sustentar a vida toda, e que se casa, para transformar sua companheira em outra mãe.

É você, negro babaca, que se casa com uma branca esperando respeitabilidade e não afetividade

É você mulher negra, que acha que eu tenho que ler texto seu só porque você é negra.

É tu, lgbtq+ que disfarça sua vulgaridade machista com falas de arco-iris.

E você pessoa com problemas psicológicos que os usa para ser desagradável, geralmente com as pessoas que citei acima.

Sou eu que acha que amigos e colegas são a mesma coisa, mas que demorou a perceber que quando o bicho pega, é melhor ter colegas de serviço do que amigos.

Esse filme em particular vai rir de uma das coisas acima: como o drama das mulheres trabalhadoras foi explorado por burguesas safadas.

FEMINISMO DESLEAL.

Fidelidade é uma relação ligada a familiaridade. Significa um alto grau de empatia para gente com a qual dividimos certo grau de parentesco afetivo íntimo, calcado na convivência, sendo alicerçado ou não em relações biológicas.

TODA ESSA NOÇÃO PROMÍSCUA É QUE GARANTE A SUBMISSÃO DE CLASSES NO BRASIL.

Assim nossos interesses públicos por essas bandas estão ligados a essa noção de fórum privado. Acho que podemos chamar isso de compadrio, de agregados ou outra dessas coisas em que nossas afetividades afetam nossos julgamentos públicos.

NÃO DEVERIAM: SE QUEREMOS SER JUSTOS DEVERÍAMOS SEM MENOS AFETIVOS.

Porque a afetividade é bem irracional e largamente relacionada às paixões. Todos esses filmes hollywoodianos que pregam que um herói deve se sacrificar, e sacrificar outras pessoas por motivos pessoais, em verdade, são produções que defendem a quebra do decoro público em nome de interesses particulares.

Lealdade, por outro lado, é um vínculo circunscrito a noções públicas, alicerçado em um convívio comum de pessoas em espaços coletivos. Os interesses particulares que são atendidos por esses locais públicos, tendem a nos deixar mais tolerantes com os diferentes e com a alteridade.

SE EU NÃO ESTOU LIGADO AFETIVAMENTE A UMA CAUSA, TENHO A TENDÊNCIA A JULGÁ-LA DE MANEIRA MAIS RACIONAL.

Isso não quer dizer que eu não tenha pessoalidade. Apenas ela não foi forjada pela afetividade, e sim, da sobrevivência comum.

MUTUALISMO ANARQUISTA, BABY.

Não é o que acontece nesse filme: somos apresentados à atriz desempregada Madeleine Verdier (Nadia Tereszkiewicz) que foi assediada por um produtor chamado Montferrand (Jean-Christophe Bouvet). A moça fica transtornada e retorna para o apartamento onde mora com sua amiga, a jovem advogada Pauline Mauléon (Rebecca Marder). Ela também é apaixonada por André Bonnard (não, não sou eu, é o ator Édouard Sulpice) um rico herdeiro que não quer trabalhar e que vai se casar com outra herdeira para salvar a fortuna da família.

MAS EM SUA BENEVOLÊNCIA E AMOR A VERDIER, A FARÁ SUA PRINCIPAL AMANTE.

Na verdade, o Montferrand quer fazer o mesmo. Isso é fascinante é já discuti isso algumas vezes: como o mercado de trabalho dos artistas é dado a esse tipo de relação sexual como parte de suas transações de empregatícias, notadamente com mulheres, mas não só elas.

MAIS UMA CONSQUISTA DO LGBTQ+: AGORA PODEMOS SER TODOS MACHISTAS E NOSSAS VÍTIMAS PODEM SER TODAS MULHERES, NÃO IMPORTA SUA ORIENTAÇÃO SEXUAL OU GÊNEROS. E VIVA AO PROGRESSO.

O problema é que o produtor seboso e cretino aparece morto e Verdier é a principal suspeita, porque a polícia é de uma incompetência sumária e tecnocrática. No entanto a jovem, convencida por sua amiga, Mauléon assume o crime, alegando que foi legítima defesa, justamente para usar a propaganda do caso como trampolim para a carreira de ambas.

TEM MUITA FEMINISTA QUE NUNCA TRABALHOU E QUE FEZ ISSO POR AQUI.

Então elas entendem que podem pegar todas as reivindicações, toda a vida e luta dessas mulheres para se alçarem ao poder. Elas tomam essa lealdade e a transformam em fidelidade.

TEM MUITA CLASSE MÉDIA DE ORIGEM NEGRA QUE TEM A MESMA PROPOSTA.

E assim o fazem.

SÓ NÃO CONTAM QUE EXISTE MESMO UMA FEMINISTA LIBERAL NA DISPUTA.

GATILHOS E LÂMINAS.

O filme então critica a geração subsequente de feministas formadas em bancos acadêmicos e artísticos que se apropriou das pautas de trabalhadoras para seus próprios objetivos políticos, por meio de uma afetividade criada através do direito, da arte e da publicidade jornalística.

E OLHA QUE O FILME É BASEADO NUMA PEÇA DE 1934.APROVEITANDO CUIDADO COM GATILHOS DAQUI PARA FRENTE.

Porém essas tralhadoras ainda estão vivas e Odette Chaumette (Isabelle Huppert) acaba fazendo o papel delas.

PARECE QUE ESSA ATRIZ GOSTA MESMO DE FAZER O PAPEL DE EMPREGADAS E SINDICALISTAS SENDO OPRIMIDAS, MAS NÃO ACEITANDO ISSO DE BOM GRADO .

Então todo o resto do filme é um delicioso debate como a empregabilidade em verdade é forjada, pelo menos nas profissões liberais (professores, artistas, advogados, policiais e etc) não pela competência, autenticidade e autoridade de serviços em si, e sim, por meio das relações afetivas, das chantagens, favores sexuais, dos interesses escusos, da ascensão das hierarquias institucionais, sejam elas públicas ou não.

Não, o que importa é recobrir seus interesses pessoais mesquinhos com a capa da defesa dos oprimidos, coisa que pode ser bem manipulada aqui, porque essas pessoas não são exatamente esses oprimidos, embora tenham certas qualidades análogas temporárias com eles.

Talvez uma das mais divertidas, cínicas e irônicas figuras aqui, é o único homem honesto ali, Fernand Palmarède (Dany Boon) que tem constantemente fingir seu um mulherengo descarado, justamente porque se não fizer isso, não terá nenhum renome social. Ele é um desses homens que realmente respeitam as mulheres, e por isso mesmo, nenhuma mulher o respeita.

NINGUÉM GOSTA DE ALGUÉM QUE REALMENTE CRÊ EM SUAS CRENÇAS.

Porque afinal essas pessoas são entediantes. O são porque não são surpresa nenhuma, não podem contribuir para o imaginário de como somos pequenos, porque eles são grandes o suficiente para se admitirem ínfimos, porem satisfeitos com sua pequenez.

SOCIEDADES ONDE NÃO SE TEM PLENO EMPREGO TENDEM A NÃO APRECIAR QUEM NÃO É SUJO SUFICIENTE PARA TOMAR DOS OUTROS MISERÁVEIS A SEU REDOR. ONDE HÁ MISÉRIA, HÁ CARNIÇA, E LÁ ESTÃO AS HIENAS, ABUTRES E URUBUS.

Tais pessoas são as que pregam a honestidade em qualquer situação e geralmente não são honestas em nenhuma ocasião, apresentando teorias factíveis, funcionais e revolucionárias, justamente para práticas inverossímeis, desviantes e conservadoras.

SEMPRE ESTÃO PREPARADOS A SACRIFICAR EM DE SEUS IDEIAS, AQUELES QUE MAIS PRECISAM DELES.

Então como viver, possuindo o conhecimento de tal falta de sincronia entre o que se apresenta publicamente e o que se espera em termos coletivos?

Não sei. Nem o LOUIS VERNEUIL soube, e talvez por isso ele tenha se suicidado em uma banheira, cortando seu pescoço com uma navalha.

Bom, olhemos o lado bom. No Brasil isso dificilmente aconteceria.

Tomamos banho de pé.

Siga lendo, para um pequeno comentário, sobre a obra de LOUIS VERNEUIL , no medium:

Estranhamente todas as comédias desse autor são reflexões sobre como as relações de empregabilidade das mulheres burguesas as fazem cometer atos horríveis. Todas elas parecem estar submetidas a situação de procura de empregos, mas caem vítimas de exploradores, que cobram delas a familiaridade mais submissa possível.

Nesse sentido, as obras deles parecem ser gritos de mulheres que querem apenas sobreviverem por seu próprio esforço, mas que as situações onde estão, impedem que isso aconteça.

IMPRESSIONANTE QUE QUASE DEPOIS DE UM SÉCULO, ISSO AINDA SE MANTENHA.

Se gostou desse texto, 50 palmas serão bem-vindas e agradecidas.

--

--

Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).