PRIMAL — 1ª e 2ª TEMPORADAS [SÉRIE ANIMADA]- (2019–2022):

Sombrionauta
10 min readAug 17, 2023

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ARMA K.

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O Sombrionauta na verdade nasceu de uma necessidade particular minha. Basicamente eu estava assistindo à última temporada de SAMURAI JACK (2001–2017) e o final me pareceu tão impressionante, que eu precisei de fato escrever sobre isso.

É importante você ter produtos culturais que propiciem esse tipo de reação; uma necessidade de compartilhar suas concepções e conclusões para todos e para ninguém, de forma que percebemos que realmente alguns prazeres são ampliados no momento em que nós os dividimos com alguém. Seja esse alguém conhecido ou não.

Enfim, achei toda a animação impressionante, porque ela não se pressupunha a ser nem artística, nem didática, ou seja, não se arrogava se ser elitista e nem para o público infantil.

ELA SE PROPUNHA A SER ADULTA.

Temos sentindo falta desse tipo de coisa, num mundo em que filmes, animações, quadrinhos e músicas ora são de saudosismo pueril, ora são de uma infantilidade senil. Até mesmo os animes, devido a sua internacionalização, têm seguido esse padrão de distribuição, assumindo essas posturas mercadológicas.

Falta no mercado produções que conversem com os anseios dos adultos, que não sejam tão ligadas a nichos e que possam vir a discutir certas decisões em nossas vidas, que não são escolhas, mas sim imposições entre vida e morte, pura e simplesmente.

AÍ VEM O GENNDY TARTAKOVSKY (1970) E PRODUZ A SUA PIOR ANIMAÇÃO ÉPICA SANGUINÁRIO CHEIA DE VIOLÊNCIA E BRUTALIDADE PARA AS MASSAS, PORÉM REALMENTE FEITA PARA AS MASSAS, NO SENTIDO QUE NOS FAZ MEDITAR SOBRE NOSSAS ESCOLHAS.

Esta animação é sobre isso.

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UM ELOGIO À SINCERIDADE BRUTAL.

TARTAKOVSKY é um desses indivíduos que tem quase a minha idade, então ele é culturalmente semelhante a mim. Embora tenha nascido na U.R.S.S. (1922–1991) viveu todo o restante de sua vida nos E.U.A., mais precisamente em Chicago, famosa cidade operária estadunidense, mas antes de sua família chegar ali, teve uma temporada curta na Itália, onde o contato com uma família alemã, mais precisamente uma das filhas dessa família, lhe incentivou a desenhar.

Ele segue em verdade a linha dos grandes autores de fantasia judeus, tais como JACK KIRBY (1917–1994) ou mesmo WILL EISNER (1917–2005), sem esquecer de JERRY SIEGEL (1914–1996) e JOE SHUSTER (1914–1992) e até mesmo grande parte do staff que desenvolveu Hollywood , gente como STEVEN SPIELBERG (1946).

Enfim, tem nego que diz que não conhece nada sobre os judeus e ignora que grande parte de nossa cultura pop é extremamente influenciada por essa designação religiosa. HUNTERS (2020–2023), pelo menos em sua primeira temporada foi uma das mais belas homenagens a esse tipo de produção e sua influência na cultura pop, com um desfecho a meu ver brilhante, que depois foi piorado na segunda temporada.

Aconteceu coisa semelhante com LOVECRAFT COUNTRY (2020) , tanto que ambas foram produzidas por JORDAN PEELE (1979), e realmente esse negócio de Indentitarismo é coisa de brinquedo, que esconde toda a forma de um sistema de direita liberal que pode degringolar para extrema-direita .

Sem meias palavras, animações para adultos deveriam seguir uma máxima do escritor cristão, FIÓDOR DOSTOIÉVSKI (1821–1881) crítico da perseguição feita aos judeus pelo IMPÉRIO RUSSO (1721–1917): assumir o difícil fardo de serem sinceras em vez de caírem para a comodidade de serem elogiosas.

TARTAKOVSKY SEGUE ESSA MÁXIMA EM PRIMAL, ALIÁS, EM TODAS AS SUAS PRODUÇÕES.

Nessa narrativa ele apresenta uma das coisas mais improváveis, na verdade impossíveis, segundo a história, de acontecer: a convivência entre humanos e dinossauros. Não que TARTAKOVSKY não saiba disso, aliás, ele é um ótimo leitor de história geral e bom pesquisador. O que ele quer mostra é como laços de afetividade vem a ser feitos por pessoas diferentes, e até mesmo, entre espécies diferentes, coisa que já falava bastante em HOTEL TRANSYLVANIA (2012–2022). Enfim, ele tenta demonstrar nessa animação, tal qual GUILHERME DEL TORO (1964) que a ideia de monstruosidade não é necessariamente algo mal.

TODOS OS MONSTROS SÃO APENAS SERES ORGANIZADOS POR DESEJOS PROFUNDOS, E EM CERTA MEDIDA, BATMAN (1939)E JOHN WICK (2014) SÃO APENAS ISSO, SERES FOCADOS POR MEIO DO DESEJO.

Assim sendo, todos nós somos monstros em potencial. Saber disso é que nos previne de nos tornarmos monstros sem sentido. Isso explica “SPEAR” e “FANG”.

DARWISNISMO…

A produção em si tem como base duas coisas que TARTAKOVSKY passou a utilizar e SAMURAI JACK: retrofuturismo e bricolagem. O primeiro tende a usar anacronismos, conscientes, para discutir em realidade como os conceitos poderiam ter convivido, um exercício de futurismo no passado, que a maioria dos animes usa em larga escala, mas que a meu ver, mais que uma estética é uma verdade em si mesma, dependendo do espaço em que é aplicado.

PODEMOS TER CULTURAS ANCESTRAIS COMO AS DOS POVOS ORIGINÁRIOS, TRANSMITINDO SEUS CONHECIMENTOS POR MEIO DE SEUS TIK-TOKERS POR EXEMPLO.

Então em verdade retrofuturismo discute o único anacronismo realmente possível, a bricolagem cultural, ou seja, a combinação de diversas formas culturais, de lugares e povos diferentes, que por algum motivo estão em contato, geralmente bélico.

RESUMINDO, OU IMPERIALISMO, OU…. O IRMÃO-SISTEMA.

Em SAMURAI JACK foi escolhido o Irmão-Capitalismo, corporificado na visão de AKU/ Mako ABU/ Mauro Ramos (cá entre nós, quando fico contando para meus pais o que o Capitalismo apronta, eu sempre tento usar a voz e os trejeitos desse personagem).

Aqui será o Imperialismo do mundo antigo. Mas estou me adiantando.

Assim, nosso caro TARTAKOVSKY em verdade gosta de discutir uma coisa bem simples e diabólica, coisa de judeu soviético criado por cultura pop:

SE BRICOLAGEM IMPERIALISTA EXISTE, COMUNIDADE DIVERSIFICADA TAMBÉM PODE?

Nesse plano seguimos dois personagens maravilhosos, um Neandertal e um Tiranossauro fêmea sem nomes.

UAI, SEM NOMES?

Não esqueçamos que nomes próprios, ou melhor, antropônimos, não são necessariamente ligados à nossas vidas concretas: nomes de batismo no mundo atual, são mais demarcadores de pertencimento civil, logo nacional, resumindo, capitalista. Contudo em comunidades como a dos povos originários, esses nomes variam de acordo com suas funções no decorrer de suas vidas, podendo mesmo mudar durante o tempo, sendo que quem lhe batiza, transfere a você a própria vivência, dependendo do tronco linguístico que você esteja coligado.

O ANTROPÔNIMO EM VERDADE TRANSFERE A FUNÇÃO A QUEM O RECEBE. MAS SE FOR NA QUESTÃO OCIDENTAL, TAMBÉM DENUNCIA SEU DESTINO OU FADO.

Mas como o Neandertal e uma Tiranossauro fêmea não dominam a linguagem de nomeação proprietária, não sabemos seus nomes, nem fazemos ideias se eles os tem. Porém fica demarcado uma coisa, a que talvez seja a mais adorável dessa animação; eles não precisam de linguagem falada para se comunicaram, porque algo mais profundo os une: a tragédia.

SPEAR (LANÇA) O NEANDERTHAL E FANG (PRESA) A TIRANOSSAURO FÊMEA, PERDERAM SUAS FAMÍLIAS, OU MELHOR FORAM ASSASSINADAS, OU MELHOR AINDA, SOFRERAM O PROCESSO DE SELEÇÃO NATURAL.

OU MELHOR, AL-JAHIZISMO.

Como o Tiago, um professor de história com quem trabalho, fanático por histórias em quadrinhos e outras produções pop (somo muitos, e discretos em nossas obsessões, cuidado, pois estamos a seu lado e você nem percebe) me explicou, o fandom dessa produção deduziu, por meio do primeiro episódio que se chama justamente SPEAR AND FANG (2019) que esses seriam os nomes dos personagens título, e vou assumir isso daqui para frente.

Spear é um clássico pai heterossexual, que tem sua família devorada por tiranossauros, em busca de vingança contra essa espécie, segue Fang para matá-la. Por ironia, ela tem seus filhotes mortos pelos mesmo Tiranossauros.

SPEAR VÊ NELA UMA SEMELHANTE NÃO EM TERMOS DE ESPÉCIE, MAS DE FUNÇÃO, OU DE DESVIO DE FUNÇÃO.

Ele tenta ajuda-la mas fracassa. Na verdade, ambos fracassam. Esse terrível fracasso os une. O luto os une. Brilhante: sabemos que uma das primeiras manifestações de humanidade, discutida inclusive por FREUD (1856–1939) de fato foi o luto, que aconteceu provavelmente a partir da formação do HOMO HABILIS (cerca de 2,2 milhoes de anos atrás).

O LUTO OS HUMANIZA, MESMO FANG SENDO UM ANIMAL, OS FAZENDO EVOLUIR.

Não para dominação um do outro como pensava DARWIN (1809–1882), mas sim, para as formulações que deram origem de fato a essa concepção, o pensamento de AL-JAHIZ (776–868), no qual “Os animais estão envolvidos numa luta pela existência e pelos recursos, para evitar serem comidos e se reproduzirem”.

AQUI ESTÁ O RESUMO DE PRIMAL.

Só que aqui temos três grandes homenagens, inspirações, continuações compondo essa bricolagem, e influenciando seu resultado final:

Primeiro, desenhos mudos como TOM E JERRY (1940), aquele da HANNA-BARBERA (1957), para quem o TARTAKOVSKY trabalhou em idos de 1993, que se utilizam do humor físico, onde chistes e gestos dos personagens tramitem os sentimentos que precisamos entender na trama. Nas duas temporadas quase não temos diálogos, e com exceção de um episódio, sobre o DARWINISMO SOCIAL (1870), as poucas palavras que existem são dialetos do mundo antigo.

RECOMENDO PARA VOCÊ LENÇOS DE PAPEL, PORQUE VOCÊ VAI CHORAR PROVAVELMENTE EM TODOS OS EPISÓDIOS, SEJA DE TANTO RIR, OU DE SE DESFAZER DE LUTO.

A segunda, é o quadrinho da MARVEL (1939) DEVIL DINOSSAUR (1978) do JACK KIRBY. Onde em um mundo alternativo vemos as aventuras de um dinossauro parecido com um tiranossauro e um jovem primata chamado de MOON-BOY. A MARVEL recentemente trouxe de volta DEVIL DINOSSAUR em duas ocasiões, uma na série NOVA ONDA (2006) e recentemente com MOON-GIRL (2015)

E A TERCEIRA: WOLVERINE (1974).

EU, SPEAR… NÃO. NÓS SPEAR, FANG E…

Se SAMURAI JACK é uma grande homenagem a FRANK MILLER (1957) (sim, é sim, tanto que todas as influências de estão ali), com direito ao primeiro episódio reproduzir o treinamento do BATMAN (1939) da forma como era sugerido desde BATMAN: ANO UM (1987), aqui temos uma enorme homenagem ao nanico mais desgraçado dos quadrinhos WOLVERINE.

Nas duas temporadas de PRIMAL, acompanhamos um processo delicioso de humanização principalmente de Spear, que apesar da extrema-violência, vai abandonando sua masculinidade tóxica: ele não é moralista, nem se considera bom ou mal, por não existirem esses conceitos em seu mundo. Logo ele e Fang não condenam seus rivais, que é o melhor termo aqui, que tentam mata-los durante toda a primeira temporada.

ELES APENAS ESTÃO SEGUINDO A SELEÇÃO NATURAL.

Seguindo uma máxima niezthiana, como Spear e Fang são de espécies diferentes, não podem reproduzir, logo, são impossibilitados de prosseguirem suas funções de pai e mãe. Essa busca não muito clara norteia sua relação profunda de amizade entre espécies. E isso provoca em ambos o chamado MUTUALISMO teorizado pelo anarquista, e zoólogo, PIOTR KROPOTKIN (1842–1921) em seu livro de crítica ao DARWINISMO SOCIAL de 1890–1896 chamado AJUDA MÚTUA: UM FATOR DE EVOLUÇÃO: nessa obra, ele demonstra que a ajuda e cooperação entre as espécies de animais, e também os humanos, seriam melhor que a competição agressiva.

Assim a brutalidade de ambos só rivaliza com sua profunda amizade, e com o tempo, a compaixão por outros seres que como eles precisam sobreviver, logo, mata-los. Aqui temos uma das grandes linhas mestras de roteiro de WOLVERINE: um selvagem filósofo, ora se orgulhando de sua selvageria, ora tendendo a questioná-la.

A primeira temporada é quase um festival de filmes de terror, maravilhosa, onde vemos que o medo do escuro, dos seres desconhecidos, vai sendo superado pela violência e a amizade entre ambos.

NA SEGUNDA TEMPORADA APARECE UM INIMIGO DIGNO DESSA DUPLA, O JÁ CITADO IMPERIALISMO DO MUNDO ANTIGO EM SUA FORMA MAIS ECONÔMICA: O ESCRAVISMO. E TODAS AS CIVILIZAÇÕES ANTIGAS IMPERIAIS O PRATICARAM, SEJAM ELAS AFRICANAS OU NÃO.

Essa temporada é uma das coisas mais belas e violentas que já vi: Spear e Fang são a pura brutalidade e persistência que só dois seres que perderam os filhos, e que já se vingaram possuem: uma bestial tolerância à dor e um amor incondicional um pelo outro. Porque se um deles morrer, o outro ficará completamente sozinho.

NENHUM DOS DOIS IRÁ TOLERAR ISSO. NEM POR OUTRAS POSSIBILIDADES DE REPRODUÇÃO.

Por exemplo, juntos os dois massacram uma comunidade inteira de escravistas, homens, mulheres e crianças. Não pedem piedade, nem a dão. Os gritos dos dois são assustadores, sua capacidade de resistência, e, principalmente, como eles ficam cada vez mais violentos à medida que sua amizade vai se tornando mais forte, principalmente se percebem que o outro está em perigo.

NÃO HÁ ESPAÇO PARA HEROÍSMO EM PRIMAL: A AMIZADE NÃO PERMITE TAIS COISAS DE IMPÉRIOS.

E por isso é tão belo: com o tempo eles compreendem que não são mais indivíduos, e sim, condivíduos, conceito defendido pelo condivíduo LUTHER BLISSETT (1994): um pseudônimo multi-usuário.

E ISSO FAZ COM QUE ELES COMECEM A ACEITAR OUTROS INDIVÍDUOS EM SEU MEIO.

Contudo, TARTAKOVSKY ainda está apaixonado por MILLER. E MILLER é apaixonado pela ideia de sacrifício.

E a palavra sacrifício significa troca. Essa troca é quase 6 por meia dúzia: como numa história que li dos X-MEN (1963), certa vez: um idoso por um jovem. Cumpre-se o nome de um deles. E outro o assumirá.

No final, num delicioso anacronismo, em vez do culto ao sol, que deu origem ao ESTADO e que depois dará origem ao monoteísmo, e ao escravismo, é escolhido o culto à lua, e sua noção de reprodução mais mutual.

E POR ISSO É A PIOR ANIMAÇÃO DESSE MALDITO SOVIÉTICO-JUDEU-NERD: PORQUE ELA ACABA E EU FICO ÓRFÃO DE NOVO DE ANIMAÇÃO.

Post Scriptum

Se tem uma coisa que estava banida das animações era a heterossexualidade, ou seja, para que diabo serve esse tipo de orientação sexual? Aqui ela é revalorizada, mas não no estilo de bobo que gosta de pílula vermelha metafórica.

Nessa animação ela é apresentada como parte fundamental da evolução, mas que pode ser sim superada, porque afinal é parte da evolução, oras.

Então sim, sem superação de heterossexualidade por meio de seu esgotamento enquanto função, esqueça maior diversidade sexual.

TODAS VÃO ACABAR VIRANDO NEO-HETEROSEXUALISMOS.

E heterossexualidade, é a orientação sexual, por excelência, do Imperialismo.

Se gostou desse texto, 50 palmas serão bem-vindas e agradecidas.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).