O BATMAN [FILME] (2022):

Sombrionauta
8 min readMar 5, 2022

--

O fim do terrorismo?

Ouça esse conteúdo no spotify, caso esteja em um celular, ou clique no link abaixo, caso esteja num computador:

Depois do sucesso do quadrinho BATMAN, O CAVALEIRO DAS TREVAS (1986) de Frank Miller (1957), o notável escritor de quadrinhos ligado ao pensamento trabalhista mais à direita deu uma série de entrevistas sobre sua obra. Em uma delas, perguntado sobre o enredo, ele disse “bom, meu Batman [em cavaleiro das trevas] é basicamente um terrorista”.

O quadrinista continuou dando mais entrevistas ao longo do tempo e em outra disse “se Gotham City fosse uma cidade normal, Batman seria um psicótico”.

Convém lembrar que diversas guerras e conflitos estavam acontecendo e explodindo durante toda a década de 80: Guerra do Afeganistão (1979–1989), (Guerra Irã X Iraque (1980–1988), A Guerra do Líbano (1982), Guerra das Malvinas (1982), Invasão de Granada (1983), Bombardeio sobre a Líbia (1986), além da Guerra sul-africana da Fronteira (1966–1989), só para citar alguns deles.

Também na década de 80 estávamos em uma recessão mundial econômica, a chamada “década perdida”, que assolou sobremaneira a América Latina, e as denúncias de terrorismo de Estado, perpetradas pelos regimes civis-militares, surgiram com muita força.

Logo, nomes como o de Yasser Arafat (1929–2004) líder da OLP (Organização para a Libertação da Palestina (1964)) eram repetidos à exaustão na televisão e muitos jovens em meio a recessão constante, e com as mobilizações de massa de esquerda viam com bons olhos homens como ele, tanto que alguns amigos, se não me engano, chegaram posteriormente a tatuar em suas costas o rosto do líder palestino.

E mais; Miller também disse que se inspirou no Batman da década de 1940, ou seja, num das versões do personagem vinda de outro período de guerra.

ASSIM, BATMAN SER UM TERRORISTA NÃO ERA PARA NÓS QUE NASCEMOS NA DÉCADA DE 1970 ALGO RUIM; ELE ERA ENTENDIDO COMO UM HOMEM SOZINHO LUTANDO CONTRA UM SISTEMA POLÍTICO CORRUPTO, QUE TINHA A SEU LADO UM EXÉRCITO MUITO MAIOR. ALIÁS, ESSA UMA DAS DEFINIÇÕES DE TERRORISMO: UM EXÉRCITO MENOR LUTANDO SEM TRÉGUAS CONTRA UM EXÉRCITO MAIOR.

O Batman de Matt Reeves (1966) não é esse.

Ele é o Batman da geração que nasceu entre 1990–2000: o que muitos não estão gostando, é que os filhos deles nasceram nessa época.

[SIGA LENDO A PARTIR DAQUI SE VOCÊ VEIO DO INSTAGRAM]

O filme é muito interessante. Eu particularmente gostei, mas sou bem mais tolerante com o Batman do que a maioria de seus fãs, porque justamente sou mais crítico do que a maioria deles: Batman é um burguês que submetido à uma tragédia, usou usa fortuna em uma epopeia de vingança pessoal.

Reeves entendeu bem isso, mas atualizou esse milionário para ter nascido em idos de 1990–2000, logo ele não conheceu pessoalmente de maneira consciente a Guerra Fria (1947–1991) e os conflitos que acima citei.

Há certa convenção entre os autores do personagem que o mesmo começou suas atividades como justiceiro a partir dos 24–25 anos (a primeira data oficial de nascimento de Bruce Wayne é 7 de abril de 1915 e ele começa como Batman em 1939). No filme de Reeves dá a entender que ele está fazendo isso a, pelo menos, 2 anos, logo ele tem 27 anos: como não é citada diretamente a Pandemia, esse período deve ser colocado pelo menos em novembro de 2019, logo esse Bruce Wayne deve ter nascido em idos de 1992.

Por tudo isso, Batman/Bruce Wayne (Robert Pattinson) não tem essa visão de mundo, e nem mesmo a profundidade de entender em termos gerais a guerra em escala global: nessa versão que segue os recentes quadrinhos do personagem, Alfred Pennyworth (Andy Serkis) o treinou, e não uma série de combatentes, caçadores de recompensa, criminosos (incluindo terroristas(?)) que ele contratou durante o tempo em que viajou pelos 7 Continentes, como nos foi apresentado em uma série chamada CONTOS DE BATMAN (LEGENDS OF DARK KNIGHT (1989–1992)).

Portanto este Batman não tem tanta visão de geopolítica trazido durante sua infância. Assim como nossos filhos.

DA MESMA MANEIRA QUE NÓS NÃO SABEMOS O QUE É SER CRIANÇA DURANTE UMA PANDEMIA.

Convém destacar que a fotografia dessa obra é muito bonita e sua sonoplastia, poderosa: toda a vez que o Batman aparece, ouvimos ao fundo acordes de música clássica, que nos remetem à trilha sonora de Danny Elfman (1953) e Shirley Walker (1945–2006) que por sua vez foram inspiradas em músicas de 1940.

Na atual trilha sonora, temos músicas que vão de Franz Schubert (1797–1828) à SOMETHING IN THE WAY (1991) do NIRVANA (1987–1994). Eu particularmente achei isso brilhante por parte do compositor Michael Giacchino (1967).

Gotham City parece ambientada mesmo como se fosse Seattle: chove o tempo todo, e todo mundo é violento, infeliz e sensível.

Muitos amigos meus no decorrer das últimas décadas caracterizaram a cidade de Batman assim: chuvosa, fria, gestada uma polícia e políticos totalmente corruptos, com apenas um policial realmente honesto James Gordon, que no filme é representado por Jeffrey Wright.

Parabéns para a republicana DC: ela sempre acha que os negros são honestos e competentes, por isso perigosos, ao contrário da Marvel que os vê como uma burocracia tola e fanática.

POR ISSO MESMO NÃO FAZEM MUITOS FILMES SOBRE ELES, ESSA EDITORA PICARETA DA WARNER (1923).

Eu mesmo defendi durante anos o uso de uma narrativa em off dos pensamentos de Batman, que ao assistir nessa obra, não curti muito. Para ver que nem sempre um fã tem ideias que aprecie. Valeu, mas precisa melhorar ou tirar.

Então muito do que compõe esse filme são opiniões de quase 30 anos dos fãs do Batman de Miller. Porém o de Reeves parecer ser influenciado por um autor em especial Scott Snyder (1976). Não confundir com o diretor Zack Snyder(1966).

Este Batman é mais intuitivo, bom observador e lutador, embora apanhe bastante durante o filme : sem galho, Batman jamais consegue sair ileso de uma briga em ambientes fechados, como Frank Miller mostra em sua obra ANO UM (1987).

Pensando bem então, tem algo de Miller nesse Batman: logo não cobrem nele uma versão mais velha e experiente como nos desenhos da LIGA DA JUSTIÇA (2001–2004).

Eu particularmente gostei da atuação de Pattison: ele tem um desprezo por tudo que acho admirável: quando um policial coloca a mão no peito dele, Batman o olha, com um ar de “você sabe o quanto você está em perigo por tocar em mim?”.

ADORO.

A trama narrativa é a clássica de filmes de psicopata, em que temos nosso querido Charada /Edward Nashton (Paul Dano) buscando por justiça em Gotham City através de atos de violência pública: traduzindo, esse Batman não é um terrorista, ele é a versão pós 11 de setembro de 2001, que caça terroristas, como o próprio Miller tentou fazer naquele quadrinho horrível chamado HOLY TERROR (TERROR SAGRADO (2011)).

SÓ QUE AQUI O REEVES FEZ MUITO MELHOR.

Todo o filme nos mostra um Batman que só consegue se controlar por meio da violência brutal, e nesse sentido entendo porque Pattison disse que o personagem é as “joias da coroa” de quem gosta de interpretar loucos.

Na década de 2000, aliás, era consenso todo mundo chamar Batman de louco; bom, não era mais a década de 1980, não é?

Destaque para Mulher-Gato/ Selina Kyle (Zoë Kravitz): a química entre ela e Batman foi a que sempre imaginei entre os dois personagens; a tensão de encontrar alguém que é igual a você em tudo, menos no que importa: ela logo percebe que não é da mesma classe social que Batman.

Sendo pobre, mulher e preta ela tem de ser independente, astuta, e nunca servil: como disse, a DC acredita muito nos negros, devido ao medo que sente deles.

ANGELA DAVIS (1944) APROVA.

Também apreciei muito o Pinguim Oswald Cobblepot (Colin Farrell): apresentá-lo com alguém que sofreu algum acidente sério, assim justificando sua deformidade foi muito bem pensado, e evitou ofender desnecessariamente pessoas com quaisquer deficiências físicas.

Na cena em que o Batmóvel finalmente aparece, a da perseguição de Batman ao Pinguim , eu pensei “se um maluco desse de preto corresse atrás de mim com aquele carro do som terrível, eu ia precisar de uma fralda geriátrica”.

Na cena em que finalmente Batman alcança o gangster, na qual a câmera se foca nos seus pés andando, como é feito vários momentos da obra, me lembrei que este é o clássico enquadramento feito nos filmes em que psicóticos perseguem suas vítimas escondidas.

Todo o roteiro de Reeves e do romeno Mattson Tomlin (1990) apresenta Batman do jeito que Miller nos falou: um psicótico.

ADORO, DE NOVO.

Mas é um filme que questiona a vingança, o terrorismo, as manifestações populares contra a corrupção, ou seja, contra tudo que nós acreditávamos na década de 1980: é um filme sobre ter esperança.

Não é a toa que a eleição no filme acontece em 05 de novembro, junto com os ataques: a DC não consegue ficar sem dar uma pontada no Alan Moore (1953).

Também é uma introdução a outro elemento fundamental do mundo de Batman: A Fundação Wayne. Ser Batman sem manter seus negócios em ordem é um erro crasso, que esperamos não ver no próximo filme.

Por tudo isso, está produção é para os fãs de Batman que o conheceram depois da década de 2000, mas também para aqueles que perderam seus pais durante a pandemia: é um narrativa sobre órfãos se ajudando e se prejudicando, orientados pela noção da vingança.

A cena de Batman com uma tocha, é o ponto alto disso.

Essa é a grande moral do filme, a mais democrático burguesa de todas: não adianta após catástrofes protestos contra os ricos, devemos todos ficar calmos e mansos, e assim trabalharmos todos juntinhos.

ESTE FILME É UM CHAMADO AOS RICOS PARA QUE ESQUEÇAM A VINGANÇA E CONSTRUAM UMA NOVA DEMOCRACIA PÓS TRUMP, PÓS BOLSONARO, PÓS TODOS ESSES GOVERNOS HORRÍVEIS DE DIREITA.

É UM AVISO PARA QUE V, DO V DE VINGANÇA (1982–1989) OU MESMO A VERSÃO MAIS ILEGALISTA DO CORINGA, JAMAIS RETORNEM,

Por isso muita gente não está gostando: porque esse povo finge que não foi beneficiada por esses horríveis governos, pela esperança que estes lhes disponibilizaram.

Fingem que seus filhos não são filhos dessas esperanças. Como eu continuo sendo um desgraçado Afropessimista, continuo não achando que há qualquer esperança para mim no capitalismo, logo essas coisas só me divertem.

EU CONTINUO TÃO OU MAIS DESESPERADO QUANTO NA DÉCADA DE 1980, PORÉM COM MAIS DADOS E EMBASAMENTO.

Aproveitando, se não me falha a memória, um dos meus amigos de mais de 40 anos que tem o Arafat tatuado, atualmente é bolsonarista e defensor da ditatura civil-militar brasileira (1964–1985).

MESMO NO PÓS-PANDEMIA.

Resumindo: meus amigos velhos, larguem esse trauma. Nosso querido terrorista sombrio não existe mais, porque o capitalismo o enterrou, junto com toda a nossa ideia dos anos 90 de revolução.

CONTUDO, 2013 AINDA EXISTE. POR MAIS QUE O PT (1980) TENTE ELIMINÁ-LO. NÃO É SÓ NA EUROPA DO XIX QUE RONDA UM ESPECTRO…

Talvez o próximo Batman, pós Guerra da Ucrânia (2022), seja para nossos netos o que o de 1986 foi para nós.

E VAMOS NOS ARREPENDER MUITO DISSO, ENQUANTO NOS DELEITAMOS.

[SIGA LENDO A PARTIR DAQUI SE VOCÊ VEIO DE OUTRAS PLATAFORMAS]

No mais, eu adorei como o Pattison fica bem de perfil vestido com a máscara, mas achei que de frente ficou horrível: gente, podia ter deixado mais escuro, ou feito como a máscara do Batman do Bem Affleck; podia ter feito esse agrado para nós fãs

A tecnologia do Batman foi bem usada e penso que se adequa a nosso mundo, embora tenha sentido falta de alguma metodologia: gostei de como ele descobre de maneira simples o nome de Selina, sem nenhum desses gadgets tecnológicos. Ele é observador e muito bom lógico, só precisava de mais treino.

Isso eu senti falta, de um melhor treinamento, mas sou professor, logo estou sendo um corporativista safado.

Enfim, eu me diverti assistindo, não estou com raiva ou não achei o filme ruim: apenas não foi feito para mim, e sou velho e arrogante o suficiente para não me ofender.

AFINAL, SOU FÃ DO BATMAN DE FRANK MILLER.

Se apreciou, 50 palminhas serão bem-vindas.

--

--

Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).