PINOCCHIO [ANIMAÇÃO] (2022):

Sombrionauta
8 min readDec 17, 2022

--

O PROPÓSITO DO ERRO ARTESANAL.

Ouça esse conteúdo no spotify, caso esteja em um celular, ou clique no link abaixo, caso esteja num computador:

Sistemas educacionais de massa foram em grande parte obras de homogeneização cultural e subdivisão de classes sociais. Eles propunham criar cidadãos modelos, os quais, com o tempo e vontade seriam conformados para o que chamamos “cidadão de bem” em hierarquias que correspondessem às da organização das populações em função da econômica política vigente nacional.

No Brasil isso se corporificou na REFORMA CAPANEMA (1942–1946).

Tais sistemas pressupunham modelos de família que eram tidos como ideais, e eram, no sentido mais weberiano possível. Se partia do princípio de que todas as famílias seguiam o modelo urbano nuclear (pai trabalhador, mãe “dona de casa” e filhos que teriam a mesma orientação dos pais, de acordo com seus sexos biológicos). Em suma era um sistema que aceitava a diversidade de classes sociais, mas não sua mobilidade ou variedades constitutivas.

MAS A REALIDADE NÃO ESTÁ NEM AÍ PARA ESSES IDEAIS.

Porque a própria concretude desse tipo de ensino, que remetia ao pensamento tido como “futurista” estava muito atrelado ao pensamento do fascismo italiano (1919–1943 (?)), com a noção da guerra como método de seleção “natural” spencerista.

LOGO A PRÓPRIA GUERRA, AO MATAR MEMBROS DAS FAMÍLIAS, CRIAVA DIVERSIDADE NAS MESMAS, ASSIM PESSOAS QUE NÃO SE ENCAIXAVAM NO MODELO DE “FAMÍLIA DE BEM”. ISSO EXPLICA PORQUE O FASCISMO SEMPRE SE DEU BEM COM O PENSAMENTO CRISTÃO, QUE TAMBÉM PADECE DE CONTRADIÇÃO SEMELHANTE, AO SE PROPOR UNIVERSAL, MAS PREGAR ÀS DIFERENTES REALIDADES CONCRETAS.

Essa contradição entre idealismo e seus produtos correlatos sempre assolou o pensamento fascista, pois ele mesmo eliminava as condicionantes para que ele se expressasse de fato: aqui está o famoso irracionalismo da extrema-direita; sua vitória concreta decreta sua decadência moral.

MATERIALISMO HISTÓRICO DIALÉTICO REALMENTE É ALGO INFERNAL, INTESTINAL E DIABÓLICO, NESSE SENTIDO.

Esta versão de Pinóquio, ao contrário de outras, não quer que ele se torne um “menino de verdade”, e sim, a mentira concreta de ser uma criança.

[SIGA LENDO A PARTIR DAQUI SE VOCÊ VEIO DO INSTAGRAM]

GUILLERMO DEL TORO (1964) é um homem que entendeu bem duas das estruturas básicas da fantasia: ser irreal e escapista.

MAS NÃO SER DESPOLITIZADA PORQUE ISSO NÃO EXISTE: “SE VOCÊ FICA NEUTRO EM SITUAÇÕES DE INJUSTIÇA, VOCÊ ESCOLHE O LADO DO OPRESSOR” COMO JÁ DIZIA DESMOND TUTU (1931–2021).

Porque para se fazer uma boa fantasia, é preciso entender muito bem a materialidade da realidade: as pessoas devem reconhecer os símbolos o suficiente para entenderem a mensagem discutida, mas devem perceber os defeitos, ou melhor, a distância entre a realidade concreta e suas representações.

Os grandes cineastas são aqueles que pensam bem sobre isso, inclusive um dos meus fascistas favoritos, o querido FEDERICO FELLINI (1920–1993).

QUE FOI, AINDA NÃO PERDOOU O SEU PAI, SEU IRMÃO, OU FINGIU QUE NÃO LEMBRA MAIS DOS ATOS DO PHIL ANSELMO (1964) E POR ISSO VAI NO SHOW DO PANTERA (1987–2022) E DEFENDE “ESQUECER O PASSADO RECENTE”?

A realidade não é deliciosamente “errada” perante nossos ideais?

Não, porque a realidade é concreta e não uma fantasia nossa. Embora nossas fantasias expliquem porque fingimos não ver o que está perante nossos olhos.

Essa é a diferença da filmografia de Del Toro para a de Fellini: a primeira quer deixar claro que não tem nada claro e a segunda quer nos deixar obscurecidos com os detalhes patéticos e reconfortantes de nosso cotidiano.

A MUDANÇA DO CONTEÚDO DOS VÍDEOS DO TIK-TOK DE FILMAGENS DE HABILIDADE TÉCNICA TRABALHADORA, PARA CONTEÚDOS ESCATOLÓGICOS E PORNOGRÁFICOS MOSTRA QUE TIPO DE VISÃO TEM SE IMPOSTO NAS MÍDIAS.

É isso que também o ingênuo e subversivo Pinocchio quer discutir: como gente não advinda das chamadas “famílias de bem” acabe sendo arregimentada por meios de comunicação de massa de cunho autoritário fascista, justamente para transmitir a noção de que existem apenas famílias nucleares em meio a esforços de guerra.

Por isso ele foi deslocado de tempo: sua publicação original como livro se deu em 1883.

Além disso essa versão é situada na Itália Fascista, com direito a aparição de BENITO MUSSOLINI (1883–1945, na voz de Tom Henry).

Nessa versão, Gepeto (David Bradley) perde seu filho biológico Carlo (Gregory Mann) devido a um bombardeio completamente aleatório e desnecessário em sua cidade natal.

O artesão marceneiro então tomado pela dor, pela bebedeira, e por isso mesmo, pela fantasia mais honesta possível deseja trazer seu filho de volta: derrubando a árvore que o jovem Carlo outrora plantou, Gepeto esculpe, em meio a um delicioso surto, e de maneira desajeitada um boneco de madeira, nosso Pinocchio (na voz de Gregory Mann também).

Em Gepeto está em verdade o foco do quer ser discutido: o passado também é um ideal e nem mesmo ele, como pai, pode criar dois filhos iguais, embora eles dividam certas semelhanças.

Como em qualquer relação sexual humana tradicional, o material genético macho tem sua vida dada pelo abraço da fêmea: aí surge a Fada da madeira (Tilda Swinton).

Aqui está a primeira quebra de idealidade: a Fada concede um anima, alma, a Pinocchio, mas ela não tem a proposta de ser sua mãe.

GEPETO QUER SER PAI DE NOVO, MAS NÃO ENTENDE QUE TERÁ QUE SER UM NOVO TIPO DE PAI.

Porque Gepeto cai na armadilha de tentar recriar o filho na idade que ele faleceu, logo nosso Pinocchio não passou por todo o processo de socialização que Carlo passou, portanto, ele faz aquilo que é mais irritante e fascinante em uma maldita criança:

ELE FAZ PERGUNTAS HONESTAS.

Pinocchio, como menino de madeira, é a encarnação, perdão, a materialização do ideal de massa da DEUTSHLAND (1871–1945) segundo ELIAS CANNETI (1905–1994): um ser de madeira perfeito e alinhado, assim como as florestas europeias.

DEL TORO DEVE SABER DISSO TAMBÉM: POR ISSO AQUELE ADORÁVEL NAZISTA, O PRÍNCIPE NUADA (LUKE GOSS) APARECE EM HELLBOY II: O EXERCITO DOURADO (2008); NÃO ESQUEÇAM QUE NO INÍCIO O NAZISMO DEFENDIA UM RETORNO À NATUREZA E ISSO SE EXPRESSAVA NA FILOSOFIA DE HEIDEGGER (1889–1976), POR EXEMPLO.

Confessem: vocês acharam que ele estava certo naquele ridículo retorno à “natureza”, coisa bem de fascista que odiava comunista.

ODIAVA OU ODEIA? PORQUE ESTÁ SOBRANDO FASCISTA E NÃO ESTOU VENDO MUITO COMUNISTA POR AÍ.

Seguindo.

Como Pinocchio não entende o mundo, e ao mesmo tempo ama estar vivo, como qualquer menino miserável, peralta e irritantemente fascinante, acaba desconcertando os adultos.

LOGO ESCOLA NÃO É PARA ELE, CIRCO SIM.

Pois lá no Circo, esse invento romano, as aberrações podem servir para fundamentar o mundo que as recusa.

PINOCCHIO NA ESCOLA E NA IGREJA É ODIADO, MAS NO CIRCO E NO PALCO É AMADO.

Já que, no entretenimento o bizarro é apreciado como complemento sobre controle do normal, criando o que citei acima, uma hierarquização ideal autoritária onde até o erro tem seu papel na realidade ideal.

MAS PINOCCHIO NÃO DÁ A MÍNIMA PARA NADA DISSO, APENAS DESEJA FAZER, A MEU VER, A COISA MAIS BONITA DESSE MARAVILHOSO STOP-MOTION: FAZER SEU PAI FELIZ, SENDO FELIZ.

O menino travesso e baktiniano, em busca desse seu ideal errado, é cooptado cedo para o trabalho desregulado do entretenimento, coisa que nego não gosta de discutir, mas eu adoro, pelo Conde Volpe (Christopher Waltz):

Assim, Pinocchio descobre sua humanidade através da exploração do trabalho seu de outros.

NEM PRECISO DIZER QUE ISSO É UM TROÇO MEGA COMUNISTA.

Tal comportamento é bem de criança que ama seu pai, ou seja, ver ele irritado e achar que deve deixá-lo, para que ele volte a ficar em paz.

MAS NENHUM PAI QUER TER PAZ, SENÃO, NÃO TERIA FILHOS.

SIGA LENDO NO LINK A SEGUIR A PARTE 03(FINAL):

Gepeto descobre que ama seu menino imperfeito de madeira, porque sua imperfeição enche sua vida de uma formidável alegria em ter alguém para lhe infernizar 24 horas.

E quando Pinocchio canta e dança, destrói todos os ideais dos que estão a seu redor, quando não destrói a si mesmo: eu sempre fui uma criança muito tímida e mesmo assim também quase morri algumas vezes durante minha infância, para o horror-raiva-risada dos meus pais.

TODOS O PAIS E MÃES TEMEM A MORTE DOS FILHOS E RIEM DE COMO ELES PODERIAM TER MORRIDO, LOGO DEPOIS DE FICAREM IRADOS POR ELE TER QUASE PASSADO DESTA PARA MELHOR.

Como é criança Pinocchio não entende o quanto é querido e tal condicionante o faz inconsequente, e por conseguinte humano e não o fato de ele não ser de carne e osso (CHUPA DISNEY (1923)): no decorrer da produção o menino travesso baktiniano lentamente compreende as relações sociais a seu redor.

Entender tais relações é perceber que são efêmeras: todo o amor morre, porque as pessoas morrem, e não de maneira sincronizada.

Essa é a grande mentira concreta que nós contamos as crianças: as amaremos por toda a nossa vida com elas, porque não estaremos aqui para amá-las para sempre

QUANDO OS PAIS MORREM, A CRIANÇA TAMBÉM DEVE MORRER.

Pinocchio irá cumprir o último ritual de todo o filho de pessoas pobres que viveram antes dos sistemas de aposentadoria estatais: retornar a seu lar para cuidar dos seus velhos. Quando eles morrerem, aquilo não será mais seu lar, pois “lar” é “onde mora seu coração”.

Mais seres farão parte da família incomum e funcional do menino de madeira travesso.

Quando eles partirem, será o momento de ele partir também.

Para outra vida, para outro mundo, para outra canção.

E talvez, quem sabe, adotar um outro órfão de carne e osso da guerra fascista, e também transformá-lo em uma imperfeita criança de verdade.

GEPETO, COM CERTEZA, SE DIVERTIRIA MUITO EM VER SEU FILHO TER O PRIVILÉGIO DE SOFRER O QUE ELE SOFREU.

Del Toro compreendeu bem que esses maravilhosos erros nos alertam para como a vida é em verdade, que nada é ideal, mas que a fantasia, honesta em ser apenas ficção ajuda a nos acostumar como mundo ao redor.

Os erros são parte do aprendizado, e a imperfeição é inerente a imanência da materialidade-realidade.

SE QUER ALGO SEM “ERROS” VIVA NA IMATERIALIDADE IDEAL OU ARRUME UMA RELIGIÃO.

Por isso concordo com esse diretor em como a técnica precisa do STOP-MOTION traz uma vivência fantástica a nossa realidade cotidiana: admiramos como aquela imperfeição da vida é verossímil e que humanos estão ali representando algo que nos parece fantástico; nossas existências mundanas.

Todo o nosso CGI está nos dando a ilusão, principalmente nas pessoas de T.I. que elas podem alterar o mundo ao redor de acordo com suas vontades exclusivamente.

NÃO COMPREENDER ISSO É QUE OS ESTÁ TORNANDO O PIOR TIPO DE ADULTO: CRIANÇAS BIRRENTAS COM EMPREGOS.

Finalmente: é irônico que eu, filho do aço, da pólvora e irmão da eletricidade ainda me sinta comovido com a madeira.

Fico feliz em ainda guardar essa maravilhosa falha.

Se apreciou, 50 palminhas serão bem-vindas.

--

--

Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).