SINTONIA — 3ª TEMPORADA [SÉRIE]- (2022):

Sombrionauta
7 min readJul 30, 2022

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A frequência do desespero.

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Tem havido uma crise espiritual em meio aos jovens. Tal crise se evidencia pela falta de rumo em suas próprias vidas e um intenso pulso de morte. Alguns diriam que tal evento é normal, produto da inevitável fase de amadurecimento em que se encontram. Mas não é só isso.

Nossa tecnologia, a marca externa de nossos feitos, o tempo social efeito do tempo materia,l tem mudado de maneira alarmante: minha geração é a última que viveu ser a internet de modo geral, por exemplo.

Hoje, grande parte dos jovens tem acesso a ela, por diversas formas, a seus discursos e conteúdos, muitas vezes sem terem sidos treinados adequadamente a perceber que essas narrativas, em sua maioria, são apenas variações sobre a mesma fábula, a saber, narrativas ocidentais, influenciadas pelo pensamento greco-romano-judaico-cristão, notadamente elitista.

Logo assistem e fruem o mundo por meio dessa chave, de maneira muitas vezes acrítica.

E essa fruição lhes diz que a lealdade às autoridades instituídas lhes concederá os seus merecidos sonhos.

Tudo isso me faz saudar a melhor produção brasileira para adolescentes da última década, sobre a qual discuto sua terceira temporada abaixo.

Ela teve a capacidade nessa terceira temporada de elevar seu debate e amadurecer sua temática de maneira elegante, sem perder seu tom popular. E no final, essa condicionante pode ser a maior crítica que ela pode receber.

Pois ela não cita, diretamente, aquele que o R.A.P. sempre combateu: o Sistema.

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Fazer uma boa produção, a meu ver, é levar suas premissas até as últimas consequências, ou seja, tomar uma teoria narrativa para organizar o conteúdo que é descrito e leva-lo até onde provavelmente ele chegaria na realidade, dada a tecnologia disponível.

Essa pelo menos é a fórmula que Margaret Atwood (1939) usa em suas ficções científicas, sendo a mais famosa dela THE HANDMAID’S TALE (1985), dura crítica sobre o machismo. Filmes nacionais como MEDIDA PROVISÓRIA (2022) não conseguiram esse intento pois cometem o erro de incluir uma tecnologia ultrapassada chamada “esperança”.

SINTONIA NÃO COMETE O MESMO ERRO.

Desde sua primeira temporada ela mostra como o Brasil trata sua juventude negra de maneira horrível, de como lentamente e notadamente quanto menos melanina você tem, maior a possibilidade de se ter mais liberdade de ação, mas que mesmo isso tem limites.

ESSA É A CONCLUSÃO QUE A TERCEIRA TEMPORADA CHEGA.

À medida que a trama se desenrola, vemos que a branquitude de MC Donizete (Jottapê) encontra finalmente os limites que ele mesmo ignorava, e que antes se envaidecia: ele é apenas aquele velho produto da indústria cultural, a saber um negro branco, portador da cultura periférica negra que deve sofrer um embranquecimento para ser aceita, parcialmente. Resumindo, ele apenas é outro Elvis Presley (1935–1977).

MAS ELVIS IS DEAD.

O pobre rapaz não tem a estrutura intelectual e o tempo social para entender que é um produto então vai ser destruído por isso, por esquecer que existem regras paralelas e sobrepostas entre a indústria cultural e sua origem popular.

Tudo bem que erros machistas podem ser perdoados, justamente por essa condição, e o são nessa temporada, mas desde que ele aja como macho escroto tudo bem, como já tinha sido demonstrado na temporada anterior.

Também sua narrativa nessa última temporada, se dá de maneira traiçoeira e traidora do funk como estilo e cultura, ao mostrar o MC sendo atacado e humilhado por gente que parece do sertanejo pop , disfarçada de forrozeiro, ainda que tenha sido justificada narrativamente de maneira adequada.

NESSE SENTIDO SINTONIA FAZ UM RENDIÇÃO COVARDE EM NOME DE MANTER A PAZ, DEPOIS DA VITÓRIA DA PATROA ANNITTA (1993) SOBRE A INDÚSTRIA CULTURAL DO AGRONEGÓCIO.

Bom, o personagem sempre foi um arregado mesmo, logo tudo bem. A série mantém o seu padrão narrativo e ainda apresenta bem como a “liberdade” artística é apenas a liberdade tráfego dos produtos, como o filme O HOMEM QUE VENDEU SUA PELE (2020) demonstrou.

Nesse sentido, termina de maneira brilhante seu diagnóstico da indústria cultural brasileira.

Outra grande esperança é arrasada na série, a da fé, notadamente neopentecostal, na figura da Rita (Bruna Mascarenhas). A personagem passa de moça astuta abandonada pela família, sacoleira eficiente, para obreira dedicada.

Ela é a personagem que mais desprezo, porque justamente foi muito bem construída: toda a esperança de uma jovem de periferia está ali, a de que por sua própria força ela pode superar todas as dificuldades, que por meio do diálogo e da compreensão é possível o convívio pacífico em meio ao cotidiano da periferia, sem negar a presença de conflitos inevitáveis e eventuais.

A DESTRUIÇÃO DE SUA FÉ NESSA BELAS AÇÕES SE DÁ JUSTAMENTE PORQUE ELAS FUNCIONAM.

Rita percebe que na igreja pentecostal são todos iguais, mas uns são mais iguais que outros, e descobre, também, que as classes sociais são mais fortes na casa de deus do que a palavra de Jesus.

A moça é desacreditada por crer demais em sua fé, coisa que sua comunidade acha interessante, até que a moça tenta melhorar de fato a vida material dessa comunidade.

NIETZCHE (1844–1900) TAMBÉM PERCEBEU ISSO. ALIÁS RITA, SE TIVESSE PERDIDO SUA FÉ, SERIA A PERFEITA ZARATUSTRA.

MAS SE ISSO TIVESSE ACONTECIDO, RITA NÃO SERIA BRASILEIRA.

Conheço muitas pessoas cristãs assim, com mais amor pela humanidade do que que pelo poder da fé, e por isso mesmo devem ser crucificadas.

Ao mostrar que sua única saída é manter sua fé honesta longe das casas desses fariseus ligados à necropolítica brasileira, e próxima de sua comunidade, Rita se torna uma boa anticristo.

Também aqui SINTONIA mostra um bom apanhado do que acontece com a mulher neopentecostal no território das periferias. Ouso dizer que esse diagnóstico pode se estender a todas as mulheres mais intelectualizadas de origem periférica: boas para o lucro, mas não para casar com o filho ou filha do patrão.

E finalmente, a maior esperança nacional dos jovens do sexo masculino negros: o tráfico de drogas.

Nando (Christian Malheiros) é um personagem muito interessante, porque me parece o mais ingênuo de todos e ao mesmo tempo o mais consciente de si. Ele é violento, mas também justo, um príncipe maquiavélico negro .

Nando é o clássico senhor de engenho de origem negra, que tenta ser o pai de todos a seus redor, e agir com responsabilidade e compromisso em sua caminhada rumo ao vale das sombras da morte do crime. Seu poder e eficiência começam a ser percebidos e isso não vai ficar batido.

SUA COMPETÊNCIA E LEALDADE É QUE VÃO O LEVAR A SER TRAÍDO.

Pois Nando no fundo sempre foi um bom trabalhador negro, que nunca teve uma oportunidade, e essa categoria de pessoa é que forma os melhores gestores dos bens do tráfico: sua postura como trabalhador é que o faz ser honesto nas contravenções e crimes, paradoxo que é imprescindível para as facções criminosas.

PORÉM, EM VERDADE, TUDO O QUE ELE QUER É SERVIR UM BOM CAFÉ: FABULOSO SE FOI PROPOSITAL:

O JOVEM DEIXA O COMÉRCIO COCAÍNA (AÇÚCAR ?) PARA ABRIR UM COMÉRCIO (DE CAFÉ ?) ( TAL QUAL NOS CICLOS ECONÔMICOS AGRÍCOLAS BRASILEIROS?).

Contudo, seus antigos aliados não querem que um jovem pai negro competente e trabalhador, que acumulou dinheiro, seja livre.

SE SUA HABILIDADE NÃO ESTIVER A SERVIÇO DELES, DEVE SER SACRIFICADA.

Assim temos outra conclusão muito boa: meritocracia tem limites e deve se circunscrever a ficar sempre ilegal, para os negros, mesmo que eles sejam competentes. Boris Fausto (1930) apresentou esse tipo de raciocínio em seu HISTÓRIA DO BRASIL (1994).

Se essa série terminar nessa temporada, eu bato palmas porque teve um fechamento brilhante. Mas acho que terá uma quarta, logo perderá parte de seu brilho.

Pois em meio à essas três temporadas apresentou uma coisa fantástica; diferencial que cria o poder que os seus três protagonistas possuem, dividem e multiplicam entre si: o da amizade.

Os três conseguem ser tão bons com o público, porque conseguem entender e estender suas crenças para além deles mesmos, de suas próprias individualidades. Eles são bons em gestar música, comunidade e crime, porque eles aprenderam desde jovens a cuidar um do outro.

Todavia, quem derrota os três ao final da produção?

ELE. NÃO ELE.

O nome que o Funk têm ainda medo de dizer em voz alta: o Irmão-Capitalismo.

Ele derrotou todos as esperanças dos protagonistas, lhe dando apenas uma opção: “criem uma família, cumpram seu tempo de sucesso, e tenham filhos para mim, para que eu reinicie esse ciclo econômico”.

No final a função desses filhos da senzala é apenas continuar reproduzindo mão-de-obra: é esse desespero, essa certeza, que tem acometido os jovens que acima citei, incutida, acertadamente, por também nós, o professorado.

ESSE FINAL DESILUDIDO, MAS REAL, SERIA DIGNO DE HONORÉ DE BALZAC (1799–1850), PORÉM COMO VOCÊ NÃO QUER ESQUERDA, TAL ENCERRAMENTO SÓ PODE SER DE NELSON RODRIGUES (1912–1980).

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Aguardo mais produções nacionais nesse nível , que apesar de alguns tropeços como MEDIDA PROVISÓRIA, têm tido acertos como HOMEM-ONÇA (2021) e DOUTOR GAMA (2021) .

Logo fico preocupado, contudo ansioso por essa nova fase do áudio visual brasileiro.

Se gostou desse texto, 50 palmas serão bem-vindas e agradecidas.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).