DOUTOR GAMA [FILME] (2021):

Sombrionauta
5 min readAug 17, 2021

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Banner e Hulk unidos, ainda que separados.

Nunca entendi bem porque tenho dificuldade em gostar do cinema nacional. Tem bons autores, mas como disse Vincent Cassel (1966) eles têm poucos meios de aperfeiçoarem sua arte pela falta de escolas de arte aliado a falta de teatros de bairro para que possam se apurar.

Nossa interpretação dramatúrgica é submetida a tele-dramaturgia, como disse o ator de origem francesa, logo há pouco tempo para se aperfeiçoar, para entra no personagem, para entender a sociologia do personagem e assim apreender o motivo de suas falas, acompanhada de gestos que façam, junto com as locações, vestuário, e trilha sonora o necessário Zeitgeist para uma boa interpretação.

Ou sendo resumido: como as novelas da Rede Globo (1965) de televisão são o padrão profissional ambicionado pela classe trabalhadora artística, devido a possíveis trabalhos advindos da exposição de seu ofício no maior monopólio televisivo do mundo, fazem com que esses atores não consigam desempenhar bem seus papeis.

NÃO É O QUE ACONTECEU AQUI.

Mesmo assim tem algo que me irritou no filme.

Já falo.

Fazendo a biografia de um dos maiores intelectuais do Brasil Império (governalidade mestiça que tem muito intelectuais não citados por causa da reconstrução laboral racial que fazemos do Brasil) Luís Gonzaga Pinto da Gama (1830–1882) não foi a interpretação feita por César Mello do brilhante rábula, ex-criança livre vendido pelo pai, ex-escravo, intelectual de estilo iluminista, no melhor que essa linha de pensamento produziu em termos mundiais.

A ATUAÇÃO DO ATOR É BRILHANTE, PORQUE COMO DISSE NO INÍCIO DESSE TEXTO ELE TEVE OPORTUNIDADE DE APURAR SUA INTERPRETAÇÃO PARA ALÉM DA VISÃO DA REDE GLOBO SOBRE ESSE PAÍS.

Seu discurso de indignação durante o julgamento do escravo(?) que matou um senhor faria Voltaire (1694–1778) levantar e aplaudi-lo e Robert Louis Stevenson (1850–1894) escrever outro romance racista depreciando seu talento como aberrante, como em sua obra mais famosa; O Médico e o Monstro (1886).

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Aliás, o filme é uma homenagem ao autor francês: ali se percebe como o François-Marie Arouet (Voltaire) foi importante para o pensamento e a teoria do que é liberdade nas colônias americanas.

GAMA É UM HOMEM DAS PALAVRAS, NÃO ACEITA QUE PESSOAS SEJAM CALADAS.

Mas é um negro: dificilmente vi um roteiro ser tão eficiente em apresentar os ancestrais como parte fundamental de um homem presente. Para isso somos apresentados a fase em que o Iluminista Negro, ouso dizer Mouro (mais como Montesquieu (1753–1794) do que Marx (1818–1883)), era uma criança vendida pelo pai e um escravo sendo educado em sua adolescência, muito bem interpretados Pedro Guilherme e Ângelo Fernandes respectivamente.

AS TRÊS DIMENSÕES DO PENSAMENTO HISTÓRICO ILUMINISTA ESTÃO AQUI APRESENTADOS PARA CRIAR A CIVILIZAÇÃO ILUMINISTA PERFEITA: TEMPO MATERIAL/EXECUTIVO (CRIANÇA), TEMPO SOCIAL/LEGISLATIVO (JUDICIÁRIO) E TEMPO INDIVIDUAL/JUDICIARIO (ADULTO).

A falha das Repúblicas Brasileiras até hoje é colocar o primeiro na frente do terceiro.

Gama é um homem dividido, foi negro escravo sem ter nascido escravo negro, e se isso não tivesse acontecido, seria talvez apenas um intelectual de origem negra.

Luta pela sua liberdade quanto jovem, e assim lembra como a desobediência civil é fundamental para a civilização.

Mas ele luta, luta para manter também a criança nele, essa criança sofrida, essa criança traída por seu pai e afastada da mãe, para que um dia seu filho não esteja na mesma situação.

AQUI A MÁXIMA DE SIGMUND FREUD (1856–1939), O MENINO É PAI DO HOMEM, NÃO É TRAUMA A SER SUPERADO, AS ESTRATÉGIA POLÍTICA DE LONGO PRAZO.

Gama liberta escravos porque sente que deve a eles, não porque tem pena de si. Uma das melhores cenas do filme é quando os ancestrais da escravidão aparecem e pedem para que ele continue e lute pelos descendentes deles: não há misticismo aqui, estou falando literalmente materialmente, historicamente, e argumentativamente: pois a memória é tudo isso.

OS ADEPTOS DAS RELIGIÕES DE BASE AFRICANA DEVE(RIA)M LEMBRAR QUE SUA CRENÇA NÃO É IMATERIAL E DEIXAREM DE PERFOMAREM CRISTIANISMOS QUE NUNCA EXISTIRAM NO PENSAMENTO AFRICANO.

Esses ancestrais não são tranquilos: outro momento que é abordado é qual vertente do pensamento negro deve ser responsável pela libertação dos escravos. A resposta é:

TODOS: APRENDE ESQUERDA QUE ENTREGA MANIFESTANTES ANARQUISTAS.

Assim os radicais negros falam com Gama e lhe oferecem proteção. Gama, de arma na mão, recusa. No decorrer do filme percebemos que não foi um oferecimento, foi uma comunicação.

Ruas e Tribunal devem lutar juntos pelos negros. Gama não gosta disso, contudo é brilhante demais para negar.

HOMENS E MULHERES DE LETRA, ENTÃO, NÃO SÃO X-9; LOGO, APRENDAM E ESTUDAR MELHOR OS TEXTOS DO OUTRO MOURO, CARA ESQUERDA INSTITUÍDA.

Assim esse filme resolve pela biografia e ficção um problema simples: quem deve prevalecer no pensamento negro, as letras, a gentileza, os doutos (médico para muitos), ou os radicais, a violências justificada, os monstros (desejo de liberdade que não pode ser mais contido)? Quem deve prevalecer, Bruce Banner, criança ferida pelo pai,ou o Hulk, indivíduo que é a expressão mais forte de um desejo de cura?

É UMA FALSA PERGUNTA: BANNER E HULK SÃO UMA SÓ ENTIDADE EM BUSCA DE SUPERAR A SI MESMA.

E se o Hulk estiver em perigo, Banner irá salvá-lo: nem sempre os monstros têm quem os defenda e aí entram os homens iluministas para irradiar a justiça.

Como o Doutor Gama aprendeu.

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E o que não gostei?

A TRILHA SONORA.

Finalmente entendi o que não gosto nesses filmes: todo o filme de escravidão brasileiro coloca o mais passivo e servil do cancioneiro negro para as cenas o que me faz ter uma sonoplastia que nos leva ficar passivos também, mesmo com a coragem de Gama.

O Filme todo é baseado em filmes de tribunal estadunidenses, combinado com o pensamento negros estadunidense, que achei muito bom, mas cá entre nós, rap pesado seria mais bem-vindo e mais concernente ao que a produção propõe.

Sei que isso não é possível: é um filme bem econômico, bem feito, mas é um filme nacional e, portanto, com poucos recursos. Fico impressionado com tão pouco fizeram tanto.

Tem um bom efeito estético, pois ver uma narrativa tão iluminista em rincões horríveis do Brasil Império demonstra como Roberto Schwarz (1938) e as ideias estão mesmo fora do lugar.

Todavia, a falta de recursos impede a contratação e formação de músicos de câmara que possam atual e criar um bom clima musical para que possamos fruir melhor a produção. O primeiro parágrafo dessa resenha fecha seu círculo trágico aqui, mas na música: somos um país de trilha sonora falha onde abundam músicos brilhantes.

O Brasil ao contrário do adágio imbecil “Não é um país de amadores” é sim um país que cultiva a arte de manter o amadorismo.

AFINAL NINGUÉM (ELITE BRANCA RACISTA) QUER UM DOUTOR GAMA IRRADIADO PELA CULTURA MAIS ATUAL E CONCERNENTE A ESSE TERRITÓRIO

VAI QUE NASCE UM HULK SANKHARA?

Se gostou desse texto, 50 palmas serão bem-vindas e agradecidas.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).