O HOMEM QUE VENDEU SUA PELE [FILME] (2020):

Sombrionauta
5 min readOct 19, 2021

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Genial Capitalismo.

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“Arrancar a pele” é uma expressão que é usada muitas vezes para designar um trabalho árduo e que seu pagamento não é o melhor: tanto nas peças MERCADOR DE VENEZA (escrita entre 1596 e 1598) de William Shakespeare (1564–1616) quanto na AUTO DA COMPADECIDA (1955) de Ariano Vilar Suassuna (1927–2014), vemos versões dessa frase.

Essa relação entre as peças parece ser evidência de como o patronato funciona no Capitalismo. Logo esse tipo de alegoria de homens vendendo as próprias costas e carne, mas não seu sangue (importante a simbologia desse líquido aqui) é recorrente no pensamento capitalista.

Mais do que alegoria, é uma verdade que este filme procura teatralizar: por volta de 2008, um homem chamado Tim Steiner (?) vendeu sua pele tatuada pelo artista Wim Delvoye (1995), para um colecionador de arte Rik Reinking (1976) por 150 mil euros.

A mercadoria vendida será coletada e emoldurada depois da morte de Steiner, que, tal qual no filme, deve se apresentar em exposições de arte pelo menos três vezes por ano. A maior parte do pagamento dessa obra foi para o Deloye.

Não é um fato inédito: existem vários homens que venderam suas peles antes, tendo colecionadores especializados nisso inclusive, como Masaichi Fukushi (1878–1956), que chegou a ter certa de 2.000 peles humanas. Segundo relatos, ele mesmo pagou para algumas das pessoas o procedimento de tatuagem, visando após a morte desses, ter acesso a suas peles.

E mais, empresas como a SAVE MY INK FOREVER (2019 (?)) estão se especializando em recolher tatuagens de pessoas mortas para criar portfólios de venda.

ESSE FILME RESGATA ESSA ALEGORIA QUE NÃO É ALEGORIA, E A ATUALIZA, MAS PELO PONTO DE VISTA DO PENSAMENTO ÁRABE.

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Se você é fã de literatura comparada, vai achar essa produção uma deliciosa apresentação do Capitalismo pelo pensamento árabe, pelo menos eu achei, e sou suspeito, devido a minha particular admiração por esse tipo de pensamento.

SOU FILHO DE PESSOAS QUE GOSTAM DAQUELE ESTILO MUSICAL INSPIRADO NA MÚSICA ÁRABE, O FORRÓ, LOGO, ISSO É MEIO ÓBVIO.

E também porque algumas de minhas posições pessoais sobre o Irmão-Capitalismo tem consonância com a apresentação ali feita: não há uma noção de vingança ali presente, mas sim, de entendimento da miséria intima de ser um grande acumulador de riqueza.

O melhor exemplo disso é o artista que representa o Irmão-Capitalismo (esse danado está começando a ficar saidinho e se apresentando de fato), Jeffrey Godefroi (Koen De Bouw) responsável pela proposta de tatuar um refugiado libanês Sam Ali (Yahya Mahayni): quando Ali pergunta se ele é um “Djinn” (“Gênio”, no sentido dado pelas AS MIL E UMA NOITES (888–957), Godefroi diz que é Mefistófeles.

Grande parte da cultura ocidental é, na verdade, reinterpretação da cultura árabe: isso explica porque muitas vezes, jovens evangélicos brasileiros ficam fascinados por mangás; afinal esses quadrinhos são muito mais próximos da tradição de literatura que eles tiveram contato do que o teatro shakespeariano, por exemplo.

EM CERTA MEDIDA A FALA DE GODEFROI TENTA FAZER UMA ANEDOTA DISSO: QUE A CULTURA ARTÍSTICA BURGUESA É SÓ UMA VERSÃO DA CULTURA ÁRABE ISLÂMICA.

Tentador pensar dessa forma a produção: sabemos que os livros da Bíblia, traduzidos e editados para o latim por (São) Jerônimo de Estridão (347–420), continham vários papiros com parábolas com várias histórias vindas da cultura árabe (os chamados “Livros Históricos”), e nelas, há a citação de um homem que luta contra uma terrível força que tenta corrompê-lo:

JÓ.

Todo o filme vai tomar esse caminho do homem integro lutando com uma força corruptora, mostrando a origem anedótica de nosso Irmão-Capitalismo, ou seja, o Renascimento Italiano (XIV-XVI), e, sua principal (e diria única) mercadoria: a beleza, aqui entendida como uma projeção lógica perfeita da realidade para um futuro, conhecida no cristianismo como esperança.

Essa sempre foi a habilidade do Irmão-Capitalismo: fazer as pessoas valorizarem mais o símbolo do que o objeto em si: a pornografia é o melhor exemplo da alegoria e realidade dessa frase.

A beleza, no filme aqui resenhado, é apresentada como liberdade: a tatuagem que Godefroi faz em Ali, é uma página de passaporte:

ALI COMO HOMEM NÃO TEM LIVRE PASSAGEM ENTRE OS PAÍSES, MAS COMO MERCADORIA, NÃO TEM RESTRIÇÕES NACIONAIS.

Assim, Ali foi transformado em mercadoria, e como tal, pode ser deslocada para qualquer local: mas o preço da livre-passagem é o livre-arbítrio. Ao conseguir se deslocar livremente, Ali perde o direito de administrar seu tempo.

ESSA BEM PODE SER UMA DEFINIÇÃO DO TRABALHO NAS MÃOS DO IRMÃO-CAPITALISMO.

O filme critica essa transformação dos homens em mercadorias, porém, como disse acima, consegue seguir certa tradição árabe de pensamento:

Devido a essa linha de interpretação, nosso Irmão-Capitalismo tem contornos hebreus, assumindo uma visão original dos Djins e de Satanás (que quer dizer literalmente “o questionador”): o de melhor pior amigo.

EU O COSTUMO CHAMAR DE “O CANALHA”: MEUS ALUNOS MORREM DE RIR QUANDO FALO ISSO.

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Godefroi, esse canalha, no fundo inveja a liberdade que Ali tem, seu amor, sua recusa em se entregar. E essa admiração o faz tem simpatia e empatia por sua mercadoria. O Irmão-Capitalismo vende a ilusão de liberdade que nem ele pode usufruir, já que ele mesmo nunca pode ser livre.

Tal qual, as pessoas que compram colares, ídolos africanos, grafites, rap por streaming, funk (S), tatuagens e outras marcas da vida que elas mesmas nunca tiveram coragem, ou oportunidade, de viverem, o capitalismo vende a ilusão de uma realidade que ele mesmo não pode viver. Falta sangue (vida, espírito, intenção, história,) em todas as mercadorias mais caras do Irmão-Capitalismo: a beleza no capitalismo é corrompida para poder parecer ser universal.

Porém ele ainda corrompe, torcendo para falhar, e assim vender uma versão de R$1,99, falsa e esperançosa: se a mercadoria atende a necessidade, ela não precisa ser comprada continuadamente: toda a lógica de tráfico de drogas, fundada no ciclo do açúcar brasileiro (XVI-XVIII), está aqui expressa.

Esse impulso faz com que Godefroi não resista em corromper a sua própria corrupção. Se falar mais como isso se dá, darei um spoiler.

Todavia posso, seguindo a tradição das histórias árabes, dar uma pista por meio de uma parábola:

Certa vez, Darkseid disse ao Senhor Milagre, seu filho adotivo e especialista em fugas, que todos sofrem, todos estão quebrados, todos perderam suas ilusões, todos estão magoados, que não havia quem não tivesse sido tocado pela equação anti-vida.

Milagre responde “todos, sem exceção”?

Darkseid afirma “Todos”.

Milagre então questiona: “Então você não quer tentar escapar comigo”?

Se apreciou, 50 palminhas serão bem vindas.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).