OS BANSHEES DE INISHERIN [FILME] (2022):

Sombrionauta
7 min readFeb 27, 2023

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O LETAL LOCAL.

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Uma das coisas mais fascinantes de se ter a cultura pop como produtora de seus documentos historiográficos é como as pessoas que discutem as questões de cultura de massa via de regra, a detestam.

GERALMENTE TAIS PESSOAS SÃO DE ELITE, TIPO O ADORNO (1903–1969), OU MESMO O ORTEGA Y GASSET (1886–1955).

Não que eles sejam irracionais quanto ao tema, mas com certeza limitados. Não que também isso seja um problema: o bom racionalismo tende a ser limitado para ser eficiente, e é isso que o torna útil.

TUDO QUE É MUITO UNIVERSAL TENDE A SER COMPLETAMENTE DESCARTÁVEL EM TERMOS PRÁTICOS, TIPO ACREDITAR EM AMOR INCONDICIONAL OU QUALQUER TIPO DE DEUS.

Isso porque o universal sempre tem preconceito com o local, porque o local existe e ele não. Todo o imperialismo como conceito, moderno ou não, tende a não gostar das questões locais, porque elas demonstram que governos que se propões multinacionais geralmente derrapam ao perceber que as geografias nacionais nem perdem tempo desafiando isso, porque pluri nacionalidades são abstrações sempre falhas.

MAS QUE CONSTROEM NAÇÕES EM CERTAS GEOGRAFIAS DETERMINADAS.

Esse amor por esse conceito infinito, logo falso materialmente, como KANT (1724–1804), ou toda a física, quântica ou não demonstrou, é muito sedutor aos intelectuais, inclusive orgânicos: quem acredita em infinito tende a almejar a imortalidade.

E POR ISSO MESMO, TRAIR O LIMITADO E O LOCAL.

Mas o local, tal qual a comédia, tende a rir de tal falsidade fruto do drama (essa expressão da universalidade), porém aceitar rir com ele, pagando algumas bebidas.

AQUI NESSE FILME QUE RESENHO, É O QUE ACONTECE QUANDO O DRAMA SE RECUSA A SENTAR À MESMA MESA DA COMÉDIA.

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Comédias de humor negro são um título ruim, na maioria dos casos. Porque eu realmente não sei o que é “humor negro”, mas arrisco aqui uma definição:

HUMOR NEGRO É TUDO AQUILO QUE É ENGRAÇADO, MAS QUE NÃO BATE COM A NOÇÃO DE HUMOR QUE O IRMÃO-SISTEMA ACALENTA.

Confuso? Simples: séries como RICK AND MORTY (2013–2022) ou mesmo SIMPSONS (1989), em verdade tendem a ridicularizarem o comum ao mesmo tempo que o colocam no lugar mais querido dos últimos tempos em termos cronológicos inclusive por historiadores: o presentismo.

EU PREFIRO CHAMAR ISSO DE “DESTINO”.

Nessa noção, tudo tende a ser um ciclo infinito, eterno, e que em suas estruturas básicas é uma repetição constante, coisa de quem acredita em socialismo prussiano.

MAIS CONHECIDO COMO NAZISMO.

Então os personagens são apresentados como inócuos às suas próprias vidas, sempre insatisfeitos com elas, sempre conformados, sempre condenados a repeti-las. E se tentarem ir contra isso podem acabar como o protagonista de BOJACK HORSEMAN (2014–2020), ou mesmo como o velho Saul de BETTER CALL SAUL (2015–2022) .

Mas existem as exceções, até o momento, como THOMAS SHELBY que conseguem escapar do destino e procurar novos ares. Porém SHELBY, era de certa forma uma espécie de superman, de ganster branco pobre, e esse tipo de coisa é bem quista pelo cinema e pela televisão.

NÃO É O QUE ACONTECE COM PÁDRAIC (COLIN FARRELL), POIS ELE ENCARNA UMA DAS FORÇAS MAIS TEMIDAS PELO IRMÃO CAPITALISMO: UM HOMEM COMUM.

Estranho?

LÊNIN (1870–1924), sempre defendeu que toda a PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL (1914–1918) foi para eliminar gente como esse homem.

Produções recentes como THE KING’S MAN (A ORIGEM) [FILME] (2021) chegam a defender que gente como nosso camponês irlandês é que está por trás de todas as revoltas de trabalhadores do mundo, e até dos conceitos de esquerda e direita.

PORQUE PÁDRAIC É UM IRLANDÊS TRABALHADOR RURAL, OU SEJA, O SANGUE E A ALMA DO GRUPO TERRORISTA I.R.A. (IRISH REPUBLICAN ARMY, OU EXÉRCITO REPUBLICANO IRLANDÊS)

O I.R.A. sempre foi controverso, desde sua fundação em 1919,sendo chamado pela grande imprensa de grupo terrorista (não sem motivos), mas também como empreendedores de guerra assimétrica, ou simplesmente, de guerrillas, onde os combatentes tende a atacar de maneira rápida, e a se deslocarem e se ocultarem de maneira ágil.

O problema que a narrativa apresenta, por se passar justamente em 1923, é pensar como os irlandeses se sentem em relação a si mesmos no decorrer do domínio inglês sobre a Irlanda.

Assim o filme em verdade quer debater os dois tipos básicos da população ocupada e seus sentimentos. A questão é como eles são apresentados e sua sinopse, que é no mínimo trágica, e por isso mesmo, cômica.

Na narrativa, somos apresentados a uma estranha desavença entre dois amigos Pádraic e Colm Doherty (Brendan Gleeson ): de uma hora para outra, sem uma aparente motivo, Doherty desfaz a amizade com Pádraic, seu amigo de décadas.

O pobre agricultor não entende o que aconteceu, e pensa ser mesmo uma piada de seu outrora amigo, e até mesmo se ele o ofendeu sem perceber.

Doherty se resume a dizer que acha Pádraic chato. E ponto.

Contudo esse é ponto alto do que é narrado: em verdade Doherty está tendo uma crise dramática consigo mesmo, coisa de intelectual chato, o de se perguntar se não vai deixar nada duradouro após sua morte.

SOMENTE INTELECTUAL E ARTISTA ACHA QUE DEVE HAVER ALGUÉM PENSANDO NELES APÓS SUA MORTES: CERTO COMPLEXO DE AQUILES, A MEU VER.

Ou seja, ele quer criar uma grande canção, que dá o nome ao filme, como forma de se eternizar.

E o Pádraic, e sua amizade sincera e simples, não se encaixa nesses planos grandiosos.

ALIÁS, A CHAMADA CULTURA ERUDITA RARAMENTE ENCAIXA A CULTURA POPULAR EM SEUS PLANOS, A NÃO SER PARA TRANSFORMÁ-LA EM PLANTA EXÓTICA.

Esse é um dos grandes males, a meu ver, da educação mais tradicional: o de tentar transformar todos em deuses especiais, que na versão mais financeirizada do novo ensino médio tendem a chamar “empreendedoras”.

RESUMINDO, ESSAS FRESCURAS, PERDÃO, ASPIRAÇÕES DE POBRES CHEIOS DE CULTURA DOMINANTE.

Doherty prefere então se relacionar com gente que tenha mais poder do que com seu outrora amigo, embora essas pessoas sejam repugnantes. Inclusive com um policial, Peadar Kearney (Gary Lydon), que é profundamente corrupto e que chega a surrar Pádraic.

ASSIM A CULTURA DOMINANTE IRLANDESA REFINADA RECUSA A CULTURA POPULAR EM PROL DE AGENTES DA REPRESSÃO INGLESA.

Kearney chega mesmo a se deliciar em pensar em torturar gente irlandesa para os ingleses.

Pádraic confronta o antigo amigo com essa verdade, embora em estado de embriaguez: o resultado é que Doherty até diz que voltou a gostar dele.

Doherty em verdade despreza como Pádraic é pacífico.

MAS PARA SEU ARREPENDIMENTO, ISSO VAI MUDAR.

Pádraic tentando voltar a reatar laços com Doherty, insiste que pelo menos conversem sobre o acontecido. A resposta do músico é justamente ameaçar se automutilar, caso o pacífico irlandês tente maiores contatos.

E POR SINAL, CUMPRE ESSA PROMESSA, CORTANDO UM DE SEUS DEDOS.

Dali para frente, as forças de ambos entram em uma estranha espiral de competição que em verdade é motivada pelo orgulho de Doherty: ele se envergonha da simplicidade dali.

PÁDRAIC NÃO.

Todos parecem concordar que o camponês é tolo e bobo, sendo que até mesmo o filho de Kearney, Dominic (Barry Keoghan, que todo a indústria em sua necessidade de criar novos atores jovens para o mercado de entretenimento tende a tentar aclamá-lo como “genial”) tido como o tolo da ilha, zomba dele.

Essa zombaria, e o ponto alto do filme e é representado nos animais: Pádraic tem uma jumentinha que adora, assim como Doherty tem um cachorro. Ambos simbolizam os sentimentos e as personalidades dos dois.

Em certa medida o relacionamento de Pádraic com sua querida jumentinha, lembra o de Zé do Burro (Leonardo Villar) com seu burro no filme O PAGADOR DE PROMESSAS (1962), e gostaria mesmo de saber se o diretor deste filme que resenho não foi influenciado por essa produção em sua escrita de roteiro.

DEPOIS DE 1899 (2022), VAI SABER….

De qualquer forma esses dois animais simbolizam o caráter de seus donos. A morte de um deles muda Pádraic.

ELE SE TRANSFORMA NO TIPO DE GENTE QUE COMO DISSE, É O CORPUS DO I.R.A.: UM HOMEM COMUM QUE NÃO ACEITA DEIXAR SUA VIDA SIMPLES.

Depois disso tudo, vemos como os simples e comuns, os grandes personagens da comédia, também são portadores da ironia, linguagem por excelência do ódio, sofisticada quase a perfeição no pensamento republicano romano.

E não esqueçam que esse tipo de soldado, criou o conceito de soldado de fato:

UM HOMEM COMUM, CAMPONÊS, EM BUSCA DE SOBREVIVÊNCIA E PORTADOR DE SENTIMENTOS ORDINÁRIOS.

E um dos sentimentos mais ordinários de todos, e hoje em dia pouco valorizado, e mesmo ridicularizado, é a amizade sincera.

O diretor desse filme MARTIN FARANAN MCDONAGH (1970) é adepto do tipo de humor que mostra o dia terrível dos comuns, como apenas mais um dia. Ele já dirigiu e produziu um estilo de comédia inglês muito comum, o que mostra a vida de malandros e trabalhadores, quando não são ambos uma coisa só, as voltas de problemas simples e por vezes que parecem surreais:

A VIDA E A SOBREVIVÊNCIA DOS POBRES.

Esse tipo de filmografia, do de que acontece com os pobres, por excelência é anti-dramática, porque não toma como grande problema os valores dominantes morais, e sim, coisas como a necessidade de comer e de sobreviver, a materialidade, como tema principal.

Eu particularmente aprecio muito esse tipo de humor irlandês, como já disse antes.

Logo, assista, mas não espera nada dramático desse diretor, apenas um humor terrivelmente consciente de sua própria sobrevivência.

Se apreciou, 50 palminhas serão bem-vindas.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).