O DILEMA DO MÉDICO [PEÇA] (04/02/2023):

Sombrionauta
8 min readFeb 12, 2023

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UM ANACRÔNICO CÍCLICO.

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Eu adoro o cinema reacionário. Toda a vez que fico desapontado com a esquerda eu vou assistir algum filme desse segmento e me sinto melhor. Porque muitas vezes quem te odeia explica muito melhor o que você é, do quem te ama.

ALIÁS A VESPERA DA TRAIÇÃO GERALMENTE É PRENUNCIADA COM A FRASE “EU TE AMO… MAS…”.

Mas quem te odeia sempre é leal ao afeto autoritário que lhe quer impor.

Um desses reacionários famosos, que seguem bem a linha da HANNA ARENDT (1906–1975), de achar que socialismo soviético e o fascismo italiano e alemão (além de outros) são a mesma coisa, é o cineasta russo ALEXANDR SOKUROV (1951) em sua famosa trilogia sobre ADOLF HITLER (1889–1945), sobre LENIN (1870–1924) e HIROHITO (1901–1989).

Na do líder russo em particular, TAURUS (2001), vemos um humilhante elogio sendo feito: a verdadeira potência da REVOLUÇÃO RUSSA (1917–1924) era ele, e não o proletariado, e com sua morte aquilo tudo ia degringolar em uma autocracia ainda pior.

BOM, FOI O QUE ACONTECEU EM GRANDE PARTE, MAS NÃO TOTALMENTE: AQUI ESTÁ O CHARME DOS REACIONÁRIOS, ELES MORALMENTE ESTÃO CORRETOS EMBORA EXPLIQUEM ISSO DE MANEIRA COMPLETAMENTE EQUIVOCADA EM TERMOS CIENTÍFICOS.

ACHO QUE ISSO SE CHAMA PRAGMATISMO.

Porém em uma das cenas mais interessantes, em delírio, LÊNIN, irado com o luxo que lhe era dado em seu exílio forçado em Gorki afirma que a fartura de comida que lhe era servida estava sendo tirada da mesa dos trabalhadores. Em síncope, caído devido a seu esforço ele fantasia sua mãe morta lhe criticando pela revolução ao que ele só pode responder meio explicando, meio ainda se impondo “Preciso salvar os trabalhadores”.

SE TEM UM COISA QUE EU PENSO QUANDO LEMBRO DO LÊNIN É ESSA CENA.

A peça que estou resenhando abaixo é um dos piores tipos de reacionário: aquele que já foi adepto do pensamento revolucionário. Porque, tal qual SOKUROV, ele tem, em seu corpo de ideias, as frustrações vividas por ter sido um socialista utópico, por ter acreditado na ciência e por ter se decepcionado com ambas as coisas.

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Eu estava dando uma volta na avenida paulista quando um jovem homem me chamou: eis que era um ex-aluno. Dei aula para ele há pelo menos uns vinte anos.

SIM, EU SOU VELHO.

Estávamos na frene do MASP (1947), aquele prédio concebido por um dos maiores capitalistas da mídia brasileira e projetado por uma arquiteta comunista de origem italiana.

OLHA, PENSANDO BEM O LOCAL ERA ADEQUADO AO QUE VI DEPOIS.

De qualquer forma o rapaz me explicou que estava esperando uma amiga (acho que com aspas), para assistir a uma peça, mas ela não pode ir. Enquanto estava procurando outra amiga, suponho, ele me viu passando.

Perante esse fato inusitado, ele me perguntou se eu assistiria uma peça com ele. Como ele foi muito simpático e sou um amante, ainda que meio indisciplinado, do teatro, prontamente aceitei o convite.

Já tinha ido uma vez naquele teatro do MASP, para assistir DIABINHO E OUTRAS PEÇAS CURTAS, então já tinha um boa noção do que veria naquela maravilhosa arquitetura brutalista, que por sinal inspirou e inspira muito a estética do SOMBRIONAUTA.

Depois de tomarmos um delicioso lanche ali no café museu fomos ver a peça DILEMA DE UM MÉDICO (1906) do socialista fascista GEORGE BERNARD SHAW (1856–1950).

Sim, meus jovens, não esqueçam que nem todo o socialista era de esquerda: “socialismo” como conceito é apenas um grupo de pessoas que têm em comum uma determinada gama de interesses sociológicos , e portanto, vem a se associar em busca de torná-los realidade concreta.

POR ISSO RECOMENDO QUE QUANDO SE FALE DE “SOCIALISMO” EM UM TEXTO, SE DEFINA QUAL VERTENTE ADJETIVA VOCÊ ESTEJA FALANDO, SE NÃO VAI PARECER BOBO DA INTERNET.

Como sabemos, nosso caro SHAW, assim como o fundador do fascismo como conceito, BENITO MUSSOLINI (1883–1945) também teve simpatia pelas ideias de KARL MARX (1818–1883) e seu socialismo científico, que em sua versão engeliana, será praticada pelos soviéticos.

O problema é que temos um preconceito logo de saída, de esquerda mais bobinha, para não dizer liberal: a de achar que pessoas brilhantes e bons pensadores não podem ser fascistas.

LAMENTO LHES CONTAR OU LEMBRAR, GENTE COMO CARL SCHMITT (1888–1985), SIM, É INTELECTUAL.

Só que seus interesses não são em prol da humanidade como um todo. Há grande debate sobre isso até hoje, que o racionalismo, de fato, é pensar a ciência em prol de toda as pessoas e não só de um grupo.

ESSA PESSOAS CONCORDAM COM O DITO ACIMA, SÓ QUE ACHAM QUE NEM TODOS NÓS SOMOS HUMANOS; AÍ ESTÁ A DIFERENÇA.

SIGA LENDO PARA A PARTE 02:

Tendo em mente que nem toda a Ciência, para ser ciência, precisa ser uma unanimidade, podemos apreciar o que nosso socialista anti-social (palavras e peça dele, não minhas) pensava sobre a ciência e sobre a sociedade de seu tempo, em especial das mulheres.

Na peça, um médico, Sir Colenso Ridgeon (Sergio Mastropasqua) pensa ter descoberto a cura para a tuberculose. Ele acabou de ganha esse título nobiliárquico justamente por isso e goza da fama e da admiração de seus amigos médicos.

Aqui está a entrada de Shaw: ele acha que todos os médicos ali são uns pilantras.

SIM, É NEGACIONISMO? BOM, SE VOCÊ ACHA QUE ISSO ERA MODERNO, ACERTOU, SÓ QUE É MODERNO DESDE O SÉCULO XVIII.

Esses médicos são apresentados como um bando de salafrários que inventam uma série de doenças apenas para poderem lucrar com tratamentos. Nesse sentido a crítica que é feita é que as doenças são apenas modelos de corpo que podem ser ou não aceitos.

SE VOCÊ DISCORDA DISSO, ENTÃO CONCORDA QUE NÃO EXISTE A GORDOFOBIA, POR EXEMPLO.

Ou pelo menos tende a desconfiar da cientificidade dos tais médicos, que são lordes em sua maioria, tipo aquele racista genocida de africanos que o CIRO GOMES (1957) aprecia, o CHURCHILL (1874–1965).

Aliás, ele perdeu, no momento que escrevo, o processo de discriminação racial, contra o vereador que não acredita em discriminação racial, e que o MANO BROW ((1970)) tentou passar um pano, o FERNANDO HOLIDAY (1996), não foi?

ENTENDERAM ENTÃO A PEGADA DO SHAW? A CIÊNCIA E SEUS CONCEITOS ESTÃO SEMPRE SENDO DISTORCIDOS EM FAVOR DOS PODEROSOS.

Então a produção brinca com essa ideia até o momento em que aparece uma mulher chamada Jennifer (Bruna Guerin) em busca da cura “milagrosa” criada por Ridgeon, para curar seu companheiro, o artista “talentoso” Louis Dubedat (Iuri Saraiva), que na verdade só explora ela, tipo o HONORÉ DE BALZAC (1799–1850) fazia com velhas senhoras ricas].

“TALENTOSO” ENTRE ASPAS, PORQUE SE VOCÊ ACREDITA NISSO, DESACREDITA DO PAULO FREIRE (1921–1997): NINGUÉM NASCE “SABENDO” SOMO FRUTOS DE NOSSO MEIO SOCIAL, E ESSE NEGÓCIO DE “DOM” SEUS ASSEMELHADOS É COISA DE NEGO QUE CURTE O HERBERT SPENCER (1820–1903).

Pelo menos não é o que se espera de alguém que seja de esquerda a lá jacobinos ou soviéticos.

Essa e sinopse que esta apresentada no folheto e na mídia, mas ela vai contra tudo contra o que Shaw sempre defendeu, por tender ao melodramático.

A PEÇA, AO CONTRÁRIO, É DE UMA FRIEZA E IRONIA QUE CONGELAM E FRAGMENTAM TODA A NOSSA CERTEZA NOS HOMENS DA CIÊNCIA.

SIGA LENDO PARA A PARTE 03 (FINAL):

O socialista fascista Shaw nunca foi adepto de romantismo, sendo que escreveu muito sobre como o desprezava. Esse é o problema das sinopses que li sobre peça antes de pensar essa resenha. Mesmo a do grupo que executou, muito bem por sinal, ela parece um clássico drama tolo. Talvez feita assim para atrair o público, vai saber?

Porque em verdade o que se apresenta é um debate entre economias morais: a de Ridgeon e a de Jennifer, porque em verdade seu marido Dubedat, não é o foco aí, como o material de propaganda dá a entender.

Dubedat não passa do clássico artista que a sociedade acha talentoso, e por isso mesmo, tolerável em toda a sorte de suas transgressões, e elas não são aquelas que nego da esquerda deveria apreciar, mas nego andou abraçando o ex-deputado federal, que teve seu caso de apologia ao estupro arquivado, ALEXANDRE FROTA , logo eu posso estar equivocado.

É o debate entre Ridgeon e Jennifer que nos importa, porque ali está o cerne da peça: o médico se afeiçoa a moça, e promete tratar o marido, no fundo torcendo para falhar e desposá-la, quando aparece um empecilho: um amigo de Ridgeon, Dr. Blenkinsop (Luti Angelleli), médico do sistema de saúde público, pobre e integro, também está com tuberculose.

E ISSO NÃO IMPORTA.

Porque o que importa é que o coitado não é o problema para os planos de Ridgeon, e sim a solução. Ao menos é o que ele pensa.

Nesse momento seria bom definir o que é uma economia moral: esse conceito foi criado pelo brilhante marxista inglês, E. P. THOMPSON (1924–1993) e parte do princípio de que determinados valores morais e culturais são em verdade definidos por necessidades econômicas, coisa que nego da economia nega.

TIPO OS MÉDICOS DA PEÇA EM SUA CURAS E COMPORTAMENTOS.

Seguindo.

Os diálogos do casal demonstram que nossa Jennifer em verdade não sofre e nenhuma aparente enganação: ela vê Dubedat como um investimento a longo prazo mais interessante até mesmo que o médico, pois vê na arte uma função superior à da ciência, opinião que é partilhada pelos médicos da peça em certa medida.

Em um dos melhores diálogos eles debatem um temática e opinião que é bem da economia moral de quem é da elite: para que salvar um pobre honesto, se há tantos? Não seria melhor salvar esse jovem e “talentoso” artista único?

SUAS RESPOSTAS ÀS PERGUNTAS ACIMA DEVERIAM FAZER REPENSAR SUAS POSIÇÕES POLÍTICAS, CARO EXPECTADOR.

Enfim, no decorrer do espetáculo irônico e terrível temos uma força terrível e conservadora se desenrolando, o pragmatismo. Ele sim, não busca mudanças, apenas atualizações me suas instâncias e essa é uma das maneiras que eu gosto de definir os socialistas de tipo fascista:

TAL QUAL OS LIBERAIS, ELES APENAS PENSAM EM REFORMAR A SOCIEDADE E NÃO EM MUDÁ-LA POR MEIO DA CIÊNCIA.

Mas Shaw, esse eugenista, não era um defensor das mulheres também?

SIM. APROVEITANDO SABIAM QUE O SIMBOLO DOS NAZISTAS (1919–1945) É UMA HOMENAGEM A UMA DEUSA?

Siga lendo, para um pequeno agradecimento a um desconhecido familiar, no medium:

Depois dessa excelente apresentação, fico mais uma vez feliz de como eu gosto do teatro inglês e sua ironia, apesar de achar todos os lordes uns desgraçados que deveriam ter o mesmo fim de seus ídolos fascistas.

ORA, DESPREZAR UMA PESSOA NÃO ME FAZ DEIXAR DE RIR DE SUA GENIALIDADE.

Esse tipo de teatro é extremamente lógico, embora sempre conservador. Por isso prefere mais a manutenção da ciência do que sua superação. Coisa de brancos elitistas.

Aproveitando, agradeço ao bom rapaz que me proporcionou essa noite memorável, e que me fez lembrar que, onde amigos e aliados ( inclusive de esquerda) falham, as vezes a gratidão de um ex-aluno triunfa em nos fazer sentir valorizados.

Não é o bem material em si, embora também importante, mas sim sua consideração.

Dito isso, tenho visto que muitos comunicadores independentes de esquerda, que fizeram campanha em prol do atual presidente, têm passado por dificuldades e isso me faz pensar o quanto a esquerda instituída não tende a apreciar a Shaw mais do que deveria.

Inclusive recentemente vi uma pessoa, intelectual de esquerda que foi fazer uma visita à Cuba dizer o infeliz ato falho “lá tem gente instruída, não os trabalhadores daqui”: desconfio que essa pessoa precisa ler o acima citado THOMPSON, urgentemente.

ALIÁS TODOS NÓS DEVERÍAMOS.

SE APRECIOU, 50 PALMAS SERÃO BEM-VINDAS.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).