O CONTO DA AIA: GRAPHIC NOVEL [QUADRINHO] (2024):

Sombrionauta
10 min readJun 24, 2024

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A MAGNÉTICA IRONIA INFERNAL

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Introdução.

Já falei algumas vezes por aqui que o conceito “inferno” é mais uma noção filosófica reflexiva do que uma punição etérea ou mesmo uma prisão que se repete ad infinitum . Aliás essa última noção de inferno-reciclagem é uma das mitologias mais fortes do pensamento estadunidense como ALAN MOORE (1953) demonstrou em sua série CINEMA PURGATÓRIO [QUADRINHO] (2016).

Sendo assim o “inferno” é outro nome para reflexão, um nome mais adequado a meu ver, porque como SILVIO ALMEIDA (1976) disse certa vez consciência sempre tem algum desconforto.

Justamente quando ele disse isso, pelo que me lembro, se referira a quando ele mesmo foi confrontado com seu machismo e percebeu que mesmo um homem negro estudado pode cair nas malhas desse tipo de coisa. Talvez o que foi chamado posteriormente, e de maneira problemática a meu ver de “machismo estrutural”.

Problemático, porque em verdade não é uma estrutura além humana que impõe essa economia política cultural, e sim, a necessidade de manter mulheres biologicamente aptas à reprodução de mão-de-obra sobre controle, redundando numa vigilância estrita e irrestrita sobre todas as mulheres que gestam, ou não. Então ele não é uma estrutura apenas, e sim, uma conjuntura tecnológica pragmática e funcional nos mais diversos contextos.

NESSA VERSÃO DA HISTÓRIA MAIS PODEROSA QUE JÁ VI SOBRE O IMPACTO DO MACHISMO COMO ECONOMIA POLÍTICA, MARGARET ATWOOD (1939) FAZ UMA IMERSÃO EM TAL INFERNO TECNOLÓGICO, MAS QUE NÃO É DIRIGIDA PARA NÓS HOMENS.

Esse quadrinho é sobre isso.

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UNIÃO DOS INFERNOS MACHISTAS.

As pessoas que leem distopias deveriam entender uma coisa que ATWOOD explicou muito bem: elas são apenas extrapolações de tecnologias que existem . Talvez por isso eu tenha mesmo gostado muito da primeira temporada da série de 2017. “Gostado” é um termo forte e que não se adequa.

EU ME SENTI DESCONFORTÁVEL EM SER HOMEM, COMO SÓ O BLACK MIRROR (2011–2023) ME DEIXAVA.

Mas as duas séries tiveram um final horrível: a esperança. Porque esperança não é tecnologia de luta, e sim, de narcolepsia.

QUEM TEM ESPERANÇA, SEMPRE ESPERA QUE O ACASO OU OUTRA FORÇA QUE NÃO SEJA ELA MESMA, LHE RESOLVA O SEU PROBLEMA.

Por isso desacredito em muita compaixão social, porque “com paixão” quer dizer algo com “empatia por sofrimento corporal”. Logo até espero simpatia pela questão dos negros, vinda de outras etnias, mas nenhuma compaixão.

ESPEREM O MESMO DE MIM.

Então o que podemos pensar aqui é algo bem mais interessante: de como em verdade podemos no máximo ser egoístas, e isso sim, nos ajuda a ser mais simpáticos, na medida em que ao vermos os sofrimentos dos outros e pensarmos: “ok, quando eles terminarem com eles/elas, eu não seria o próximo/próxima? ”

BERTOLT BRECHT (1898–1956) ENTENDEU BEM ISSO.

Esse é um dos pontos que devem ser entendidos nessa narrativa de ATWOOD: ela não é para homens, e sim, para mulheres, em que se analisa como as tecnologias machistas são aplicadas nos mais diversos cotidianos mundiais, inclusive nos regimes de esquerda, e que elas nos parecem invisíveis, como homens, negros ou não, porque dificilmente gostamos que questionar o que nos beneficia.

COMO DISSE UM AMIGO NEGRO CHAMADO MARCOS “NINGUÉM QUER PERDER SEUS PRIVILÉGIOS”.

Então literalmente temos que assistir a narrativa que não e endereçada a nós, para que possamos entender como somos herdeiros dessas mulheres violadas, física, mentalmente, culturalmente e que tendemos a atribuir isso a uma espécie de versão “fantasmagórica” de que “ é a cultura daquele povo”, com se cultura não fosse uma tecnologia econômica de sentido do cotidiano, tão montada e construída quanto qualquer dispositivo ou máquina.

E NÓS HOMENS TEMOS TENDÊNCIA A VER AS MULHERES AO NOSSO REDOR COMO MÁQUINAS, “MEIOS”, A NOSSA DISPOSIÇÃO , ASSIM COMO OS BRANCOS PENSAM OS NEGROS.

Nessa ficção ATWOOD catalogou uma série de tecnologias do cotidiano machistas usadas pelos mais diversos regimes econômicos políticos.

SEM MULHER GUERREIRA, MAS COM MULHERES QUE LUTAM.

ATWOOD não vai trabalhar então aqui com o mito masculino da mulher guerreira que falei no programar anterior, e que MOORE em certa medida dá a entender que existirá em V DE VINGANÇA (1982–1989, QUADRINHO)

E POR ISSO MESMO, JUNTO COM AS TÁTICAS DE SUBMISSÃO ÀS MULHERES, A ATWOOD TAMBÉM APRESENTA SUAS TÁTICAS DE SOBREVIVÊNCIA COLETIVAS.

Aqui acho que é a grande sacada desse quadrinho, o de apresentar as diversas nuances de mulheres, que convivem juntas, mas que necessariamente não são coletivos umas das outras. Algumas estão lá para manter as mulheres férteis sobre controle, ou seja, as mulheres produtivas (ouso dizer proletárias), que também são uma espécie de mão-de-obra subalterna, como acontece em sociedades como a hindu.

Então a confiança de gênero, a sororidade, aqui é questionada a todo o momento. E muito bem a meu ver: porque o poder hierárquico está a todo momento sendo apresentado, e ao mesmo tempo, sendo questionado, porque ao se basear no sempre falho universal cristão, dá mostrar de que ele é apenas isso mesmo: poder material em tempo material, logo falho, limitado e com data de validade razoavelmente prevista.

Aqui destaca-se algumas diferenças: assim como V DE VINGANÇA, à medida em que ela teve suas adaptações pelo cinema imperialista estadunidense, os traços mais radicais de esquerda foram sendo suprimidos. Recentemente me perguntaram se eu confio em todos os progressismos, incluindo o feminismo liberal.

A RESPOSTA É: LEIA ESSE QUADRINHO.

Porque ele é uma das versões que foi feita dessa obra, sendo que existe um filme estadunidense-alemão DIE GESCHICHTE DER DIENERIN (A DECADÊNCIA DE UMA ESPÉCIE na pior tradução possível, 1990) e mesmo uma opera em 2000. Cada uma delas cumpre e sofre os problemas de suas adaptações, ou seja, de como sua mensagem foi modulada para o meio onde se encontrava.

Então nesse quadrinhos maravilhoso e terrível temos a ilustradora canadense RENEÉ NAULT(?) como fundamental a esse processo.

Maravilhoso, porque ao organizar nossa leitura por meio de seu traço ela tem o cuidado de nos apresentar a narrativa de Offred em primeira pessoa, tal qual os romances biográficos em quadrinhos mais famosos, semelhantes aos de SARTRAPI (1969) , deixando claro de maneira sutil ponto de vista da protagonista e suas ações sempre em relação a outros coletivos, majoritariamente de mulheres.

OFFRED ESTÁ CONSTANTEMENTE DEBATENDO DE QUEM EXATAMENTE ELA PERTENCE.

RESULTADO CERTO, MOTIVOS ERRADOS.

Como disse NAULT tem o cuidado de mudar o traço desse quadrinho de uma maneira que ilustra, literalmente, como Offred (literalmente “aquela que pertence a Fred”se sente, sendo que quando estamos lidando com seu presente ele é bem definido e quando são lembranças dela, ele aparece como se fosse uma aquarela.

O PASSADO ONÍRICO NUNCA É TÃO DEFINIDO QUANTO O PRESENTE DA SOBREVIVÊNCIA.

Aqui está uma das bases da obra, uma constante narrativa, que é muito interessante porque nos revela uma tecnologia de esquerda antiga e que é pouco falada.

FALO DELA DAQUI A POUCO, SUA CURIOSA.

E também de uma série de tecnologias de opressão aplicadas às mulheres à revelia de sua posição política e sim do projeto da economia política em que estão inseridas. Tive recentemente essa discussão onde percebi que muita gente de esquerda abandonou uma parte importante de seu ideário; o do uso da tecnologia aplicada, alicerçada pelas ciências humanas para mudar a realidade / substância da concretude.

IDEOLOGIA DE ESQUERDA SOBRE TECNOLOGIA DE DIREITA NÃO PASSA DE CENTRO DIREITA.

Sim, porque o que importa não são as intenções, e sim, o resultado. Se não deu resultado de esquerda, não é esquerda.

APRENDE ISSO ESQUERDA CAVIAR.

Nos vários capítulos estão desenvolvidas essas tecnologias, que são de tempos históricos, e, portanto, geográficos, variados e que foram aplicados em algum momento, logo são métodos testados e com sua eficiência comprovada em seu objetivo de manter as mulheres produtivas sobre o controle dos improdutivos.

SE QUER UMA METÁFORA MELHOR PARA O PROLETARIADO FEMININO, DESISTA.

São 15 capítulos, sendo que e 7 deles, são chamados de “Noite” (I, III, VII, IX, XI, XIII, XV), e eles servem de certa forma para introduzir os capítulos posteriores, ou fazer conclusões infernais sobre os anteriores e as tecnologias de dominação aplicadas:

Sobre esses outros capítulos, eu lhes dou os nomes e as tecnologias discutidas ::II — “Compras”; controle de consumo e transito; IV — “Sala de espera”; controle ginecológico com abuso obstétrico e sexual, V — “Um Cochilo”; culpabilização das mulheres por sofrerem abusos sexuais, VI — “Pertences de casa”; em que elas são apresentadas como parte das propriedades dos Comandantes, VIII — “Dia do nascimento”; liberalismo dos costumes como abuso psicológico tácito, X — “Escritos da Alma”; divisão sexual do trabalho disfarçada de “aqueles que são mais merecedores” com ênfase no masculino; XII — “A Casa de Jezebel”; onde se mostra que os privilégios de uma sociedade apresentada igualitária sobre uma hierarquia escondem as falhas científicas e de costumes da mesma, sendo este também o mais longo, XIV — “Salvamento”; aqueles que lutam contra esse regime são apresentados como os que perpetram os atos que ele sanciona.

E finalmente “Notas Históricas”… que eu não posso revelar sem dar spoiler

NÃO PERMITA QUE OS BASTARDOS REDUZAM VOCÊ A CINZAS.

Uma das tecnologias de resistência que esse quadrinho apresenta é a fita cassete, criada em 1963, e usada por vários países africanos como suporte de discursos políticos subversivos, inclusive os que ressignificaram o pensamento cristão colonizador em favor dos próprios africanos, como chamado KIBANGUISMO (1921) .

OFFRED ESTÁ ATACANDO POR MEIO DESSA TECNOLOGIA MAGNÉTICA À MEDIDA EM QUE SE MOSTRA SUBMISSA.

Eu poderia falar mais disso, mas o spoiler seria maior ainda. E isso foi ignorado na série, fingindo que não se ignorava outra coisa: os negros, ou melhor, as negras.

Em um trabalho meu, que devo lançar em breve, demonstrei que, acreditem ou não, os quadrinhos são mais racistas do que a cinema.

QUEM DIRIA...

Mas se a mídia televisiva e cinematográfica dá com uma mão, toma com os punhos fechados: logo o final desse quadrinho mostra uma coisa que estava me incomodando desde o começo, a falta de mulheres negras em sua composição e as tecnologias de dominação específicas delas.

Pensei muito no porquê disso, desde de levar em conta que talvez a autora como canadense não tivesse muito acesso a esse debate, devido à pequena população negra de seu país, certa de 2,5 %, de acordo com o censo de 2006.

Assim, a obra padece de um dano interno, presente em todo o internacionalismo e cosmopolitismo: a branquitude. Embora Nault tente compensar isso nas ilustrações, no decorrer da narrativa podemos ver vários tipos de mulheres, mas todas parecem ser brancas. Assim a “sororidade” parece ser um defeito de pensamento inerente a esse tipo de feminismo.

ISSO VALE PARA VOCÊ QUE ACHA QUE AS MULHERES, E HOMENS, QUE MARCHAM CONTRA A PL 1984, PERDÃO 1904 , IRÃO ESTAR A SEU LADO QUANDO HOUVER UMA MANIFESTAÇÃO DE AUMENTO DE SALÁRIO DAS DOMÉSTICAS.

Eu mesmo estava em uma dessa passeatas. E acreditem, eu sei quando uma passeata tem a classe média alta e quando não tem, em sua maioria:

EM PASSEATAS POPULARES SEMPRE EXISTEM DRONES. EU NÃO VI NENHUM NA QUE ESTAVA. TIRE SUAS CONCLUSÕES.

E na verdade a ironia maior, e autocrítica mais feroz dessa obra é justamente a frase que foi replicada ad infinitu nas várias redes sociais durante o tempo da série : “Nolite te bastardes carborundorum” e que dá título à essa parte desta resenha.

Ora minhas caras, o que é um bastardo, senão alguém que foi criado apenas por uma mãe?

O QUE FORAM OS FASCISTAS (1919) HISTORICAMENTE DO QUE UM BANDO DE BASTARDOS DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL (1914–1918)?

Por isso gosto de ATWOOD e a acho uma autora de esquerda.

PORQUE ELA, ASSIM COMO MOORE, COLOCA QUE A VÍTIMA TAMBÉM TEM CULPA DE SEU SOFRIMENTO, LOGO, A HABILIDADE PARA SUPERÁ-LO.

POST SCRIPTUM

ERNEST MILLER HEMINGWAY (1899–1961) foi o típico esquerdo macho e teve o final de muitos deles, o suicídio. No entanto ele levantou um problema que me parece muito bom até hoje e celebrizado em sua famosa citação:

“– Quem estará nas trincheiras ao teu lado?

– E isso importa?

– Mais do que a própria guerra.”

Porque no fundo ATWOOD está fazendo a mesma pergunta: tem certeza que todas as mulheres feministas acham que o feminismo é para todas as mulheres?

AS MULHERES PRETAS JÁ SOUBERAM ESSA RESPOSTA, CONTUDO PARECE QUE A MAIORIA DELAS SUCUMBIU À DJAMILA RIBEIRO (1980) STYLE.

Logo, pense bem e se pergunte: quem me apoia contra abusadores hoje, será que defende meus direitos trabalhistas amanhã?

EU SEI A RESPOSTA. PORÉM QUERO EVITAR O MANSPLAINING.

FICHA TÉCNICA

O CONTO DA AIA: GRAPHIC NOVEL [QUADRINHO] (2024) — TITULO ORIGINAL:THE HANDMAID’S TALE: GRAPHIC NOVEL — PÁGINAS :240 — NACIONALIDADE : BRASIL/CANADÁ 2024 — ROTEIRISTA:MARGARET ATWOOD — DESENHISTA: RENEÉ NAULT — DISPONÍVEL (ATÉ O MOMENTO DA PUBLICAÇÃO):EDITORA ROCCO.

Se gostou desse texto, 50 palmas serão bem-vindas e agradecidas.

REFERÊNCIAS.

https://www12.statcan.gc.ca/census-recensement/2006/dp-pd/tbt/Rp-eng.cfm?A=R&APATH=3&D1=0&D2=0&D3=0&D4=0&D5=0&D6=0&DETAIL=0&DIM=0&FL=A&FREE=0&GC=01&GID=837928&GK=1&GRP=1&LANG=E&O=D&PID=92333&PRID=0&PTYPE=88971%2C97154&S=0&SHOWALL=0&SUB=0&TABID=1&THEME=80&Temporal=2006&VID=0&VNAMEE=&VNAMEF=

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).