LOVE, DEATH + ROBOTS — VOLUME 03 [SÉRIE]- (2022):

Sombrionauta
8 min readMay 25, 2022

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Lovecraft Universe.

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Cada vez mais começo a questionar as pessoas que produziram conteúdo que apreciava quando jovem. Isso se origina devido a um simples fato: ficar velho e se ter consciência que é trabalhador, depois que se é proletário, e finalmente que é proletário negro. Assim o que me divertia antes não me afetava, logo eu não ficava irado, logo não questionava.

Suponho que muita gente já passou por esse processo: os que não passaram não devem ser negros ou proletários. E mesmo alguns passaram por isso , vieram a negar essa consciência e logo depois preferiram se unir ao “lado negro da força”.

E NÃO ESTOU FALANDO DE NENHUM MOVIMENTO ANTI-CAPITALISTA.

O que em verdade leva a esse tipo de conformação é não se passar por nenhum processo de politização explícita, e que force a pessoa tomar uma posição no mundo, sua tendência então é assumir a neutralidade, que no fim é ficar do lado de quem já venceu.

Em pouco tempo esse tipo de pessoa passa reproduzir em suas práticas, inclusive trabalhista e artística, os preconceitos que outrora criticava. Uma vertente disso é o racismo recreativo.

O racismo recreativo é basicamente apresentar ou colocar negros em situações de dor e sofrimento, sem questionar o motivo que aquilo está acontecendo. Muita gente acusou a série THEM (2021) de fazer isso, mas esqueceram de perceber que os protagonistas vêm a enfrentar e contestar o que lhes acontece.

HÁ UMA LINHA MUITO TÊNUE ENTRE A CONSCIENTIZAÇÃO E A ACEITAÇÃO DO QUE O IRMÃO-CAPITALISMO FAZ, MEUS CAROS.

Nesse ínterim destaco aqui como o terceiro volume da série que resenho confirmou, infelizmente, uma coisa que já havia percebido desde o volume 02: David Fincher (1962), diretor aclamado e produtor da série caiu para uma variante de racismo recreativo.

Vejamos.

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Já havia destacado quando resenhei o filme MEDIDA PROVISÓRIA (2022) que distopia sem ciência não é distopia, e sim, moralismo.

E quando não é moralismo, ou seja, se propõe a ser uma investigação / provocação da literatura científica, tende a explicar revoltas de trabalhadores, como discuti na resenha do volume anterior .

Para julgarmos se é mero racismo recreativo, ou não, devemos analisar como como os responsáveis por tais revoltas são apresentados.

No decorrer das volumes (não entendo bem essa designação), assim como aconteceu com BLACK MIRROR (2011-), o papel dos trabalhadores foi ainda mais reduzido quase a seres sem qualquer autodeterminação.

Nesse volume em particular, isso ficou ainda mais grave, e vemos que até mesmo alguns parâmetros científicos foram abandonados para dar lugar uma versão horrível daquela space opera imperialista e racista do Alex Raymond (1909–1956), o FLASH GORDON (1934).

Nesse contexto somos apresentados a várias narrativas que tentam nos explicar como os coletivos são basicamente opressivos e que apelam para que neguemos nossa inteligência humana em prol de alguma felicidade natural.

BEM COISA A LÁ SPENGLER (1880–1936).

A primeira narrativa, THREE ROBOTS: EXIT STRATEGIES: resume o que iremos ver no decorrer desse volume: praticamente versões de episódios apresentados nos volumes anteriores. Novamente os três robôs de uma civilização que herdou a terra após o fim da humanidade vasculham os escombros da civilização humana em busca de entender como se deu sua extinção.

PARECEM UM BANDO DE ARQUEÓLOGOS BRANCOS OLHANDO AS PIRÂMIDES INCAS E CONJECTURANDO SOBRE A BRUTALIDADE DOS “SELVAGENS”.

Mesmo assim, o episódio tem o mérito de demonstrar, quase subliminarmente, que os variados planos dos capitalistas para sobreviver à devastação ecológica que estão fazendo dariam errado. Mas o fechamento é uma coisa meio “ah, você sabe que é só brincadeira”.

DISTOPIA NÃO É PARA BRINCAR, É PARA LEVAR O TERROR AO CORAÇÃO DOS CAPITALISTAS E DE GENTE QUE NÃO GOSTA DE NÃO GOSTAR DE CAPITALISTAS.

A segunda (BAD TRAVELLING , dirigida por Fincher) é aquele tipo de coisa que nego adora apresentar: como a massa em perigo tente a sacrificar os ideais da humanidade, e um herói (convém lembrar que do grego a palavra quer dizer “semideus” que geralmente significava matar uma grande quantidade de pessoas):

Durante uma pesca de tubarões uma tripulação se vê lutando com um impressionante ser do mar que deseja devorar uma comunidade pesqueira. Um dos membros dessa tripulação, branco, resolve impedir que isso aconteça, mesmo que tenha de sacrificar seus companheiros contrários a isso.

É uma posição bem a lá José Ortega y Gasset (1883–1955) em A REBELIÃO DAS MASSAS (1929), em que se vê os coletivos como arrogantes e inconsequentes e o individualismo como heroico. Um pensamento bastante influenciado por Gustave le Bon (1841–1931).

FREUD (1856–1939) DISCORDARIA EM PARTE DISSO, PRINCIPALMENTE NO QUE SE REFERE À REVOLUÇÃO FRANCESA (1789–1792) E GEORGE LUKÁC’S (1885–1971), MAIS AINDA.

Muito da série se tornou uma bela, e fútil, apresentação de maravilhosos efeitos visuais que visam nos fazer esquecer de algumas premissas científicas que parecem bem estranhas e na verdade, superadas. É o caso da quarta narrativa THE VERY PULSE OF THE MACHINE, uma exposição pseudo-feminista que acredita no sagrado feminino (aquela versão do patriarcado para mulheres ricas) em que uma astronauta tem uma série de interações curiosas com algum ser que se alega uma máquina vinda da natureza.

CARA, ISSO É O MECANICISMO, QUE TEM ORIGENS LÁ NO SÉCULO XVI.

Esse negócio é uma concepção deísta safada disfarçada de “iluminação”: entrar em contato com seu “eu feminino interior”, coisa de madame figurante de narrativa da CONFINADA (2021) do Leandro Assis e da Triscila Oliveira. Ambos sem datas localizadas de nascimento.

Leia esse quadrinho e acompanhe o Instagram dos dois, para ver como madame mística é algo desprezível.

Sigamos.

NIGHT OF THE MINI DEAD tem o mérito de apresentar a inconsequência humana e sua importância na escala cósmica: ou seja, minúscula.

Mas ali está sintetizada todas as clássicas narrativas sobre mortos-vivos, algo de punição pela sexualidade e moral cristã que perdura em muitos filmes de horror, e por isso todo o neopentecostal assiste e finge que não assistiu.

REALMENTE A MORAL CRISTÃ UNIVERSAL É MICROSCÓPICA.

Temos outra narrativa que parece uma versão de um uma das narrativas do primeiro volume THE SECRET WAR (2019), só que em versão mais idiotizada estadunidense: KILL TEAM KILL é uma daquelas ficções que na verdade são filmes da ação em que os estrangeiros são transformados em ciborgues ou insetos, para não deixar claro que se está falando de povos não ocidentais. Inconsequente e boba como uma história do DeadPool (1991).

Daqui para frente tudo parece uma versão estranha de algum romance do Lovecraft (1890–1937) na sua pior versão: não a discussão feita por LOVECRAFT COUNTRY (2021) em que se mostrava a questão do horror cósmico como um reflexo do pensamento branco elitista ( que Alan Moore (1953) destacou e dissecou de 2003 até 2016), mas sim um desdobramento dele, com as nuances racistas tornadas explicitas: SWARM apresenta aquela histórias que fingem que criticam o capitalismo, mas que adoram uma noção spengleriana de realidade, onde em meio a uma série de contatos entre civilizações intergaláticas, um negro, Simon Afriel (Jason Winston George) com tendências imperialistas tenta se “apropriar” (o termo certo seria roubar) a tecnologia de seres aparentemente irracionais para assegurar uma melhora da humanidade.

Para tanto, precisa da ajuda da pesquisadora que conhece esses seres, conhecidos como enxame, chamada Galina Mirny (Rosario Dawson). Tudo ali confirma coisas que já havia visto no volume um, na narrativa ZIMA BLUE (2019): uma tendência a apresentar os negros como seres que desejam retornar a certo primitivismo.

É público e notório que na ficção científica temos uma tendência a ver o superação do racismo por meio da ciência (pergunta para o Marx (1818–1883) e o Engels (1820–1895) escrevendo sobre a Guerra de Secessão Americana (1861–1865), para o NEW YORK TIMES (1851-) que você entende) . Tanto que até temos o AFROFUTURISMO (1994-) como uma ficção científica ligada a esse tema e desenvolvida por negros.

ESSA INTERPRETAÇÃO DE VOLTAR AS RAÍZES IGUAL A VOLTAR AO MUNDO ANTIGO É COISA DE ELITE QUE NÃO SABE COMO AQUILO ERA UMA DESGRAÇA.

Isso é uma coisa que a próxima narrativa IN VAULTED HALLS ENTOMBED deixa claro, usando o velho recurso de apresentar os povos orientais como insetos.

CARA, E OS ALEMÃES DURANTE O NAZISMO NÃO ERAM ALGO SEMELHANTE? ALIÁS NÃO ERAM OS GREGOS QUE ACHAVAM QUE A ESPIRITUALIDADE PERFEITA ERA A DAS DAS ABELHAS?

Assim, esse episódio apresenta mais uma postura de inspiração lovecraftiana; a de apresentar os países orientais como antros de deuses-insetos.

Já ia esquecendo, de Mason’s Rats, que vem antes da narrativa anterior e que pode ser considerada a mais ligada ao pensamento trabalhador: uma variante de coisas que foram apresentadas no volume 02 no episódio AUTOMATED CUSTOMER SERVICE (2019): como máquinas e vendedores são uma coisa detestável as vezes. Aqui um fazendeiro de aparência escocesa (clássica representação de trabalhadores para os ingleses ) passa a ter problemas com ratos que se desenvolveram geneticamente e que se parecem bastante com ele. Logo, para que brigar afinal?

Finalmente temos JIBARO, que é uma versão, até mesmo em termos de estética de outra narrativa da série, que teve bastante polêmica devido a sua nudez: THE WITNESS (2019). Tanto que as duas narrativas são do diretor Alberto Mielgo (1979). Tem algo de anacrônico, de mostrar cavaleiros em uma Porto Rico colonial que sabem linguagem de sinais para surdos, criada por volta de 1755 em uma conquista que aconteceu por volta de 1493.

Ali nos é apresentado um exemplo de estética de perseguição que culmina com uma profunda violência sexual, que pode emular o problema do colonialismo. Parece um pastiche de POCAHONTAS da Disney (1995) com Gilberto Freyre (1900–1987): ou seja de se apaixonar por seu estuprador/ colonizador.

SEI NÃO DISSO AÍ.

Conheço relatos desse tipo de coisa, mas me parecem mais problemas de brutalidade patriarcal do que amor propriamente dito.

Logo, temos nesse volume uma ficção científica combinada com narrativas anacrônicas fantásticas, que cada vez mais tendem ao reacionarismo, disfarçadas por efeitos especiais e alta qualidade técnica.

NADA DE NOVO.

Fincher, um dos meus diretores ex-favoritos tende a fazer isso em suas produções, a saber, apresentar conflitos atuais e os resolver de maneira reacionária, na maioria das vezes.

ATÉ AÍ, O MAURÍCIO DE SOUSA (1935) TAMBÉM.

Gostaria de saber qual o critério desse comportamento adotado pela Netflix (1997), porque o do Maurício eu sei: a moral da classe média mediada pela legislação.

Será que nosso futuro ficcional científico vai se restringir a isso?

A UM CONSTANTE PRESENTISMO REACIONÁRIO, NÃO IMPORTA O QUE FAÇAMOS?

NÃO.

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Por tudo isso acima discutido, eu saudarei mais uma vez a Jordan Peele (1979) , Misha Green (1984) e Nia da Costa (1989) [ . Eles têm criado toda uma série de produções ligadas ao horror, terror e ficção científica que discutem o racismo sem se render a conclusões elogiosas, fáceis ou pacíficas. Assim temos um setor da classe média negra que não está satisfeito com a sublimação atual do pensamento econômico político atual (a famosa superestrutura).

E essa insatisfação em breve criará novas produções.

E A DISTOPIA QUE APARECE EM O NASCIMENTO DE UMA NAÇÃO (1915), PODE SER REALIZADA E SUPERADA: OS NEGROS SE LIBERTAREM, MAS NÃO COMO ESTUPRADORES, E SIM, COMO CLASSE TRABALHADORA.

Se apreciou, 50 palminhas serão bem-vindas.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).