A LENDA DE CANDYMAN [FILME] (2021):

Sombrionauta
7 min readAug 31, 2021

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O fel do mel.

Uma dica e um aviso antes de ler essa resenha: descubra o que significa originalmente “cortiço”.

DEPOIS DE DESCOBRIR O QUE SIGNIFICA, LEIA SE TIVER CORAGEM DE DERRAMAR SANGUE INOCENTE (?).

Quando as pessoas pensam num retorno às religiões tradicionais, pensam que podem retornar a sua organicidade original. Impossível: os rituais tradicionais estavam ligados às condições tecnológicas disponíveis no mundo antigo e isso não é mais possível por causa de uma dessas tecnologias em tempos modernos, a saber, nossa própria consciência.

OS ANTIGOS NÃO TINHAM CONSCIÊNCIA DO QUE SEUS RITUAIS FAZIAM ATÉ O MOMENTO QUE FAZIAM.

A premissa acima se explica na brilhante pesquisa sobre poesia no mundo antigo, feita pelo poeta e performer (poeta que não é performer não sabe fazer poesia) Jerome Rothenber (1931) chamada TECHNICIANS OF THE SACRED (1968).

OS RITUAIS NO MUNDO ANTIGO NÃO VISAM UM RESGATE DO PASSADO, E SIM, TECNOLOGIA PARA O PRESENTE IMEDIATO.

Contudo há uma forma de modernização desses cerimoniais: tornar a ritual poesia abstrata pura, narrativa que alinha as palavras ao conceito moderno delas, fazer a performance usando a linguagem contemporânea, que é em verdade, a tecnologia dos antigos para o agora, que é o cerne de todos as crenças deles.

ESSA É A PREMISSA DESSE NOVO CANDYMAN: A ATUALIZAÇÃO DE UM RITUAL QUE JÁ DISCUTI AQUI NO SOMBRIONAUTA.

ESSE É O SEGUNDO AVISO PARA VOCÊ PARAR DE LER.

Nia DaCosta (1989), diretora brilhante, o produtor Jordan Peele (1979), junto com Win Rosenfeld (1978) escrevem o roteiro que é uma invocação de uma das terríveis divindades do mundo antigo, que não podem se detidas, sobre o preço da vida humana ser sacrificada no mundo inteiro: abelhas.

As abelhas sempre estiveram ligadas às mitologias de morte e renascimento, seja no Egito Antigo, seja na Grécia Clássica, ou nos povos nórdicos primordiais: elas sempre acompanham os mortos e sempre são prenuncio da destruição dos vivos.

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O MEL SEMPRE FOI VISTO COMO PRODUTO DE SUA MALDIÇÕES: ELE É ETERNO, PORQUE, QUIMICAMENTE MATA QUASE QUALQUER MICRO-ORGANISMO QUE TENTE APODRECÊ-LO.

Onde existem abelhas, algo terrível vai acontecer, chamadas também de “pássaros da musas”, logo elas são as portadoras da arte terrível, sangrenta e sagrada, seja a menstruação seja o assassinato feito por coletivos.

Isso está no nome científico das abelhas hymenoptera, ou “asas do véu”, que na mulher chamamos de “hímen”.

O rompimento do desse véu leva a como dor, arte e doçura serão libertados em favor de seu terrível exame: o pênis leva a dor a mulher, mas também ao homem: a dor de amadurecer, mudar, metamorfosear-se.

CANDYMAN, O HOMEM DOCE, É LITERALMENTE O PROMETIDO DO HÍMEM O TERRÍVEL QUARTO PRINCÍPIO DO HOMEM NEGRO DE ORIGEM AFRICANA: O FERREIRO, AQUELE QUE CURA PELO FERRO.

Acho que entenderam o que significa o gancho na mão direita de todos eles.

ESSE É SEU TERCEIRO AVISO PARA PARAR DE LER.

Assim, os antigos não trabalhavam com o conceito de “futuro”, projeção de tecnologia para o devir, e, portanto, inevitável repetição dela no passado.

Essa é a grande diferença entre nossa cronologia de contagem de tempo em relação ao mundo antigo: nós fazemos algo como passado, presente e futuro, enquanto os antigos faziam, presente, passado futuro.

Chamamos essa última cronologia de pragmatismo.

O nome da primeira de que falei acima se chama “esperança”, um mal para os gregos e uma toxicomania para os cristãos, e todas as outras religiões atuais que não fazem questão de saber disso.

Porque nossa tecnologia foi alinhada por meio do cristianismo e suas cronologias, como bem deixou claro Benedetto Croce (1866–1952) ao afirmar que “depois de Cristo, todos nós somos cristãos”, e todos nós nos estaríamos sós, cada um com sua própria cruz.

NÃO ESPERA ISSO NESSA PRODUÇÃO.

Porque como o filme deixa claro, não existe um só Candyman: ele é um coletivo, um conjunto de homens negros sendo assassinados por forças dominantes, artistas que devem ser sacrificados para se tornarem os protetores de suas comunidades.

TODO O RAP INVOCOU, EM ALGUM MOMENTO, CANDYMAN: AFINAL TODOS OS RAPPERS SÃO O PRIMEIRO PRINCÍPIO DO HOMEM NEGRO, O GRIOT, O POETA QUE INVOCA E MANIPULA O MUNDO.

Por isso o Irmão Capitalismo sempre tenta cooptar ou mandar matar essas pessoas. Mas quem mata os griots, de fato?

A POLÍCIA: CANDYMAN SEMPRE ESTARÁ VIVO, PORQUE SEMPRE HAVERÁ RACISMO ESTRUTURAL, OPERADO PELA POLÍCIA, ENQUANTO O CAPITALISMO ESTIVER FUNCIONANDO.

Da costa entendeu bem isso: todo o seu filme mostra como a especulação (ênfase nesse termo) imobiliária na cidade de trabalhadores (negros e negros brancos) estadunidenses, Chicago, criou um mercado terrível, um mel abjeto que todos os brancos gostam de sorver:

RACISMO RECREATIVO. ESSE É O MEL QUE O CAPITALISMO EXTRAI, SOBRETUDO, DOS HOMENS NEGROS.

Todos os brancos, homens, mulheres, lgbtq+ ou não (o filme critica duramente os lgbtq+ mecenas, o que parece uma vingança de Peele em nome de Misha Green (1984)), jovens e adultos usam a tecnologia dos homens negros para sua ascensão, deleite e cura, para depois taxa-los de violentos, incultos, ou simplesmente, pobres.

Sim, este filme não é sobre o racismo como um todo, mas sim, como o machismo do mundo antigo produzia o terceiro princípio do homem negro africano: o caçador. O caçador busca respostas para se tornar os outros princípios, educado para ser o mantenedor de sua família.

CONTUDO, ESSE TIPO DE CAÇADOR NÃO EXISTE MAIS. ENTÃO UM NOVO TIPO DEVE SER CONSTRUÍDO, O PESQUISADOR:

Anthony McCoy (Yahya Abdul-Mateen II) artista visual, logo poeta, pobre e sustentado por Brianna Cartwright (Teyonah Parris), uma diretora de arte, que, a procura novas inspirações para seu trabalho.

Ao ouvir uma narrativa de Troy Cartwright (Nathan Stewart-Jarrett/ uma homenagem a Clive Barker (1955), escritor gay que o filme considera um “broder”) sobre a morte da psicóloga Helen Lyle (Virginia Madsen do primeiro CANDYMAN (1992)) em um incêndio no bairro, agora goumertizado, Cabrini-Green, McCoy passa a se sentir novamente inspirado em fazer sua arte.

SUA BUSCA DE LIBERDADE, DE AUTORIDADE SOBRE SI, VAI LEVAR MCCOY AO SEGUNDO PRINCIPIO DO HOMEM NEGRO AFRICANO: O PRÍNCIPE (A MEU VER, NO SENTIDO MAQUIAVÉLICO), AQUELE QUE SE RESPONSABILIZA PELA COMUNIDADE.

Sem perceber, à medida que entra no mito de Candyman, ele realiza o ritual que produz um novo.

Mas este Candyman, esse terrível horror, sempre foi invocado por mulheres brancas: somente elas gostariam de amar um homem que domina os quatro princípios do homem africano, não por admiração, e sim por fetiche, além de sua habilidade de ferreiro.

SAIBA QUE, MULHERES NEGRAS SEMPRE TRABALHARAM E TIVERAM MAIS RENDA E ESTUDO DO QUE HOMENS NEGROS NAS AMÉRICAS, CONFORME AS PESQUISAS DE JESSE SOUZA (1960) APONTAM.

Para entender isso assista o filme, QUE HORAS ELA VOLTA? (2015).

Logo, mulheres negras ou negras brancas, não se casavam, e não se casam (geralmente) com homens negros artistas se puderem: sempre era melhor se casar com homens brancos da baixa burguesia, como as pesquisas do MEMÓRIA DA ESCRAVIDÃO EM FAMÍLIAS NEGRAS DE SÃO PAULO (1988), coordenadas por Maria de Loudes Janotti (?) apontam.

Porém, Brianna Cartwright, entende isso tudo que falei acima, e portanto, ela também pode escolher superar o que Souza explica. Ela é o ápice. Ela sim, é responsável por fazer surgir um Candyman que não derrama sangue inocente.

Como?

ESSE É O QUARTO AVISO PARA QUE VOCÊ PARE DE LER.

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ELA TERÁ QUE DERRAMAR UM SANGUE “AZUL”, TIDO COMO SEMPRE INOCENTE PELAS REDES DE TELEVISÃO, E, PROGRAMAS TAIS COMO O BRASIL URGENTE (1997), PARA ISSO ACONTECER.

Agora é tarde demais, vocês não vão poder se negarem a lerem o que está abaixo:

Cartwright faz surgir uma terrível divindade dos cortiços, dos bairros, das municipalidades, o mesmo tipo de divindade dos coletivos das pequenas coisas, como areia, formigas, gafanhotos, abelhas, trabalhadores, artistas, empregados e burocratas, que sempre será o coletivo que defende uma comunidade.

Essas divindades transformadas pelo Cristianismo Europeu, ora em monstros, ora em líderes, mas sempre retornando, pois não podem ser eliminadas, porque são a resposta da opressão, algo que nunca será derrotado definitivamente, algo fruto dessa angustia vinda das grandes coisas, como pirâmides, dos palácios, do concreto, do açúcar, dos que perseguem os imigrantes nos desertos, daqueles de destroem as flores para terem lucro, dos patrões, dos mecenas aproveitadores, dos chefes e gerentes, essa elite dita solar que sempre tenta suprimir a vida do coletivo.

O inimigo jurado e sempre ferido, sempre renovado, sempre incansável, sempre sem nada a perder, e pronto a arriscar tudo, sempre se opondo àqueles que julgam ser o sol que paira e domina à todos do alto de suas construções.

Há vários nomes para esse tipo de manifestação simbólica a luta de classes que E. P Thompson (1924–1993) e Karl Marx (1818–1883) descreveram.

OS EGÍPCIOS A CHAMAVAM DE SET.

Sim, o terrível enxame de homens negros, que são cada, um quarteto, e não uma tríade cristã, foi invocado pelas mulheres negras para, mais uma vez, ser Candyman, porém uma versão que não será machista como no mundo antigo, e nem, submetido pela masculinidade tóxica branca.

E DOCE SERÁ O SANGUE NÃO-INOCENTE QUE ELE IRÁ DERRAMAR EM SEUS NOMES.

Se você apreciou esse meigo sangramento sobre vocês, deem 50 palmas, meus doces.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).