A VIDA NÃO É ÚTIL [LIVRO] (2020):

Sombrionauta
9 min readMar 8, 2024

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CRIMES INCIDENTAIS.

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Introdução

Padecemos do mal de que nossa linguagem tenta emular a realidade mundial, sendo que ela foi cunhada em setores da Europa principalmente. Não que ela não sofra o impacto de nossa localidade, mas muitos de nossos conceitos estão em desacordo com a geografia ou TOPOFILIA local, conceito desenvolvido pelo geógrafo sino-estadunidense YI-FU TUAN (1930–2022), em que existem relações emocionais e de sentimento com os locais que ocupamos, inclusive em termos da construção da memória.

Assim o conceito científico de geografia que usamos é em grande parte influenciada pelo pensamento fora deste continente o que nos leva a aplicarmos eventualmente noções de espacialidade que não correspondem ao que estamos vivendo nesse momento.

Não é algo difícil de perceber, apenas sensível de ser: muitas vezes conversando com meu pai, percebo que ele tem uma visão de mundo que não bate com São Paulo por exemplo. Sua linguagem parece ligada a entender que tudo está vivo, num interessante animismo que não nivela humanos ou natureza, porque para ele natureza e humanos são uma coisa só.

Logo podem ser ambas manipuladas: recentemente eu estava na casa de meus pais e percebi que ela parece uma espécie de jardins suspensos da Babilônia, porque o velho pegou tudo o que era pote e coisa que o valha e transformou em vasos para plantar de cebolinha até …. Qualquer coisa que ele ache que deva plantar. Além de ficar conversando com as plantas, animais, e qualquer coisa que está ali, porque simplesmente acha que as coisas têm sua própria voz e que a intenção de quem fala é tão, ou mais importante, que as palavras.

Essa é uma proposta de bioma, de criação de uma espécie de arquitetura vegetal que se combina com o concreto e aço, propondo uma nova forma, ou resgatando e adaptando, uma velha convivência ambiental.

NESSA OBRA A PROPOSTA É QUE ESSE TIPO DE CIÊNCIA DOS POVOS ORIGINÁRIOS É FRONTALMENTE CONTRA A CIÊNCIA CAPITALISTA, PORQUE ELA NÃO SE ADAPTA A SEUS CONCEITOS ECONÔMICOS GEOGRÁFICOS.

Essa obra é sobre isso.

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INFRAMUNDO .

A obra é composta de 5 ensaios produzidos em 2020, em meio a PANDEMIA DE COVID-19 (2019–2023), sendo que originalmente eram lives e entrevistas. Neles AILTON KRENAK (1953) faz um desenvolvimento muito interessante do pensamento científico dos povos originários.

Esse é o ponto que acho crucial: não são discussões sobre religiosidade no sentido dado pelo pensamento cristão, e sim, de uma visão que traça o pensamento científico indígena como modo de vida e de ligação entre seus membros.

SIM, “RELIGIÃO”, MAS NO SENTIDO DE “LIGAÇÃO”, CONCRETA, ESPACIAL E PRESENTE.

Muito da narrativa de AILTON KRENAK lembra gene como meu pai: o meio ambiente não é separado do indivíduo, no caso os povos originários, e suas práticas não são “folclóricas” ou “cultura popular” e sim, modos de interação mútua entre ambiente e pessoas que convivem.

Nesse sentido, biosfera é a palavra que me ocorre: planeta (que não é a mesma coisa que o mundo, palavra do latim que seria algo como “limpo”) não é ruim, ele apenas está respondendo como qualquer organismo a quaisquer outros organismos que nele habitam e tendem a danificá-lo demais.

AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS SÃO UMA RESPOSTA SEMELHANTE A UM SISTEMA IMUNOLÓGICO, INCLUINDO O COVID-19: NESSE SENTIDO A PANDEMIA É APENAS UMA DEFESA CONTRA A “PRAGA” QUE NÓS NOS TORNAMOS.

E essa praga, acredite ou não, está na nossa linguagem.

UAI?

É o que podemos entender do primeiro ensaio “NÃO SE COME DINHEIRO”: ao acreditarmos que a economia é inesgotável e imparável, passamos a não perceber que os recursos do planeta são limitados, pois são materiais. Desastres feitos por mineradoras recebem sempre condescendência por estarem aliadas a esse tipo de discurso. Eles sempre saem limpos.

TIPO FISICULTURISTA QUE ACHA QUE PODE BATER EM BOXEADOR EXPERIENTE, SÓ PORQUE É MAIS JOVEM E FORTE.

Ou não acha coisa nenhuma, e apenas fez aquilo tudo para poder arrecadar dinheiro. Assim nossas ações estão mediadas por uma linguagem que escamoteia o próprio funcionamento do Capitalismo.

NOSSA LINGUAGEM FOI COMPROMETIDA PELO CAPITALISMO: NÃO TEMOS COMO REALIZAR O QUE ESTAMOS DISCURSANDO.

A economia é só um discurso ilusório de gente em cidades que em meio aos prédios perdeu sua ligação com a biosfera, então acredita em qualquer discurso meritocrático infinito e abstrato.

O PLANETA IRÁ SOBREVIVER A NÓS, MAS NOSSO MUNDO NÃO.

LUGAR DE TERROR .

No segundo ensaio “SONHOS PARA ADIAR O FIM DO MUNDO”, temos uma abordagem muito interessante do pensamento teórico como um local do onírico. Nada de coisas transcendentais, e sim pensar soluções a partir de uma espécie de presente contemplativo. Nesse sentido o capítulo anterior nos ajuda muito: a linguagem que KRENAK usa quer dizer aquilo mesmo que ela fala, ou seja, não está procurando subterfúgios em algum abstrato universal, e sim na situação espacial local de onde ele fala.

ISSO SIM É “LOCAL DE FALA”.

Só que tal local não é individualista, como apresentam nossos liberalismos, sendo em verdade um coletivo, uma instituição de sonhadores que absorvem linguagens para pensar soluções. Seguindo essa linha, sonhar é teorizar para solucionar.

Os sonhos são então instituições de saber coletivo, executados por indivíduos em nome do todo que compõe. Em certa medida todos respondem a esse grupo e a si mesmos simultaneamente.

PARECE FANTÁSTICO, MAS EU MESMO SENTI ISSO QUANDO FIZ GREVE EM 2015: ESTÁVAMOS TÃO DEDICADOS QUE CONSEGUÍAMOS DAR FALAS ALINHADAS E MUITO EFICIENTES E EFICAZES, MESMO SENDO DE LINHAS POLÍTICAS ADVERSAS.

Mesmo assim não vencemos.

Penso que as instituições de direita monopolizaram o sonhar, logo não temos como vencer tão fácil: desconfio também que essas instituições são os Aparelhos Ideológicos do Estado de que falei anteriormente.

E DESCONFIO QUE VLADIMIR SAFATLE (1973) CONCORDA .

Isso porque as narrativas estão sendo contadas pelos historiadores e contadores do Irmão-Capitalismo.

A isso, KRENAK contrapõe a necessidade de pajés e outros que mantém em suas narrativas a ligação entre indivíduos e cosmogônia, ou melhor, mostrando que entre as pessoas e o meio ambiente não existe esse “e”.

TODOS SÃO BIOSFERA: AO NOS SEPARARMOS DELA, VIRAMOS CORPO ESTRANHO, LOGO, ALGO COMO UM VÍRUS.

Nesse sentido o grande sonho capitalista é a evolução, mas aquela que nega a associação, que talvez seja o grande tópico desse texto onde explicitamente se nega a noção de predestinação.

LOGO, O CABRA CONCORDA COMIGO QUE DESTINO É UMA LOSNA.

Para tanto, é preciso uma espécie de “reboot” tecnológico, que nós costumamos chamar de “Revolução”, a meu ver. Nesse sentido a América Latina do século XX foi um celeiro dessas tentativas que foram esmagadas pelas forças dos E.U.A., também das corporações e multinacionais.

O final deduz que é preciso novos sonhos, que nascem de novos afetos e assim criam novas tecnologias que nos reconfigurariam a circular nessa biosfera.

SENHORES DA TERRA DOS MORTOS.

Dando prosseguimento a sua narrativa Krenak em “A MÁQUINA DE FAZER COISAS” descreve como no pensamento dos povos originários não há exatamente a ideia de destino, de uma circularidade ou fatalidade das coisas inevitáveis, mas sim um constante fluir da vida. Esse tipo de pensamento inspirou a produção de coisas como a SAGA DO MONSTRO DO PÂNTANO (1982–1987) escrita por ALAN MOORE (1953).

Essas divisões de “bem e mal” capitalistas estão em verdade ligadas ao pensamento utilitarista ligado, por sua vez, ao lucro que o norteia quase que permanentemente. Como isso é uma das bases de seu pensamento econômico, junto com certo pensamento colonial tende a impor essa visão a todos os povos não brancos também.

Por conta disso, toda as tentativas de conter o desmatamento e outros desmandos no meio-ambiente falham, pois estão também ligados a tal pensamento fatalista quase apocalíptico.

NÃO É COMO OS KRENAK PENSAM.

Assim o que está nos orientando seriam nossas memórias coletivas, o que faz com que alguns se acreditem até mesmo alienígenas de outro lugar que não essa biosfera. Em verdade o problema é que nossa memória está ligada a topofilias que não são as que estão presentes nos coletivos da floresta, o que leva a tal estranhamento.

NOS SENTIMOS O SENHORES DE TODAS AS TERRAS, MAS APENAS ESTAMOS USANDO AS MEMÓRIAS DE GENTE QUE JÁ ESTÁ MORTA E NÃO ENTENDIA O PROBLEMA EM QUE NOS METEMOS.

Aqui, os povos originários por meio de suas memórias podem adquirir influência sobre o meio ambiente justamente ao estarem dentro de memórias que literalmente os coligam a essas forças sejam elas terranas (não terráqueas, por que isso nos estranha dessa biosfera), ou astrais.

ESSA É A LOUCURA QUE KRENAK DENUNCIA: COMO PODEMOS NOS SENTIR À PARTE DA BIOSFERA? É ISSO QUE NOS FAZ A OLHAR DE CIMA, COMO UM BRINQUEDO E NÓS, COMO CRIANÇAS TOLAS E BIRRENTAS.

Tal noção é uma ficção, uma ficção científica horrível que nos prende nessa noção juvenil de que o mundo tem donos e não participantes. E que todos nós temos um planeta para consumir, em vez de percebermos que nós também somos esse planeta.

Logo inclui todos os seres da biosfera, sejam eles enormes ou microscópicos, e nossas falsas divisões de fauna, flora e seres brutos.

A tal ficção científica que se fala é acreditar que existe um consumo infinito imaterial localizada nessa fase financeira do capitalismo surgida na segunda metade do Século XX que nos exige constante pensamento predatório ligado a um luxo que não condiz com a realidade concreta.

ESSA MÁQUINA TEM UM FIM CONCRETO, QUE NÃO É O MEIO COMO SE APRESENTA.

TERRA SEM MALES .

Finalmente em “O AMANHÃ NÃO ESTÁ À VENDA” o autor discute como a noção fatalista de destino foi golpeada duramente pela PANDEMIA DE COVID-19. Uma concepção que é apresentada é de que nosso comportamento é análogo ao de um vírus, coisa que MATRIX (TRILOGIA) [FILME] (1999–2003) já havia aventado.

Durante a discussão uma noção trabalhada anteriormente mostra que não tivemos tempo para um luto, com alegações como “a vida não pode parar”, mas literalmente, muitos setores ficaram paradas com a Pandemia, demonstrando que essa ideia de perpétuo progresso imparável não passa de uma imposição teórica do próprio Capitalismo, coisa que deveríamos pensar melhor, antes que percamos a memória disso.

Isso seria necessário de ser lembrado visto que questiona o próprio conceito de liberdade, proposto pela branquitude: a da necropolítica, montada desde a modernidade capitalista de idos do século XV, mais conhecida como ANTROPOCENTRISMO (XV).

E que talvez essa ideia tenha chegado a seu esgotamento material.

Destaque para duas coisa interessantes: o covid matava humanos somente, e, preferencialmente os idosos como se quisesse eliminar justamente essa memória do passado que prejudica a biosfera.

MAS ATÉ ISSO É ILUSÃO: QUEM QUERIA CONDENAR ESSES ANTEPASSADOS FOI A GESTÃO DO PRESIDENTE BOLSONARO (1955).

E ao final temos uma espécie de conclusão em “A VIDA NÃO É ÚTIL”, onde ideias anteriormente defendidas chegam a conclusões, tais como: o que devoramos exacerbadamente está eliminando o que nos alimenta, ou seja, nosso consumo exacerbado do planeta não o está destruindo, apenas o mudando para algo que não possa mais nos sustentar.

VOLTO A DIZER O FIM DO MUNDO NÃO É O FIM DA BIOSFERA, APENAS DA MATERIALIDADE DA QUAL ESTAMOS ACOSTUMADOS, EM TERMOS TECNOLÓGICOS, A EXPLORAR.

Isso não é novo e até na cosmovisão do homem branco existiu já uma apocalipse, o dilúvio, logo isso acontecer não é exatamente uma novidade, e não deveria surpreender ninguém.

MAS SURPREENDE PORQUE ESSE CICLO DE DESGASTE ESTÁ SENDO IGNORADO POR NOSSA FICÇÃO FINANCEIRA CÍCLICA.

Nesse sentido o que Krenak percebe que o fim do mundo que vemos não é o do planeta ou da biosfera, e sim da relação de nossos corpos como nosso meio ambiente.

O QUE ESTÁ MORRENDO É NOSSA RELAÇÃO COM A BIOSFERA.

Então pensar soluções que não lidem com o Irmão Capitalismo é apenas outro modismo que tenderá a ser inócuo ou pior, que aumentará a erosão dessa relação.

Não é o caso em particular de coletivos como os próprio KRENAK ele permanecem em suas terras violadas, porque estão abraçando o abismo que elas se tornaram, literalmente.

CRIAR UMA NOVA RELAÇÃO, OU MORRER TENTANDO.

Sem nenhuma pretensão de que aquilo seja útil, apenas que seja fluído e relacional para tudo envolvido.

Não há nenhuma poesia dionisíaca nesse pensamento, há apenas concretude: ou mudamos nosso mundo ou a biosfera apenas vai deixar morrer a parte dela que nós “usamos”.

O DESERTO DO REAL ESTÁ AÍ PARA SER ATRAVESSADO: VAMOS?

Eu particularmente gostei muito da forma como esse livro é narrado, justamente porque ele me lembra o jeito que meu pai narra o mundo: como se tudo estivesse vivo, e se pensar bem está.

Minha mãe também tem essa noção forte de biosfera, que lembra o animismo, mas sem aquela coisa de que alguém manda em tudo.

Talvez seja coisa dos baianos criados no interior, coisa que os dois são. Logo é muito prazeroso ler Krenak e assistir suas intervenções porque eu não sinto nenhum tom de ameaça, coisa que vejo muito pastor fazer e sim de síntese: ou você muda, ou será mudado, quer goste ou não, pelo mundo ou pela biosfera.

Então, mais uma vez convido:

VAMOS MEUS MOISÉS, OU SETS, VAMOS DAR UMA VOLTA NO DESERTO.

FICHA TÉCNICA

A VIDA NÃO É ÚTIL [LIVRO] (2020) — TITULO ORIGINAL:A VIDA NÃO É ÚTIL — PÁGINAS :128 — NACIONALIDADE :BRASIL — EDITORA :COMPANHIA DAS LETRAS — AUTOR :AILTON KRENAK — DISPONÍVEL (ATÉ O MOMENTO DA PUBLICAÇÃO):LIVRARIAS.

Se apreciou, 50 palminhas serão bem-vindas.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).