O MUNDO DE KRYPTON [QUADRINHO] (1987–1988):

Sombrionauta
10 min readSep 9, 2023

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KRYPTO MOEDA.

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Gosto de pensar sobre como a tecnologia é parte fundamental da humanidade em si mesma. Porém há muita gente que ao pensar nisso, imagina logo os dispositivos e aparelhos de seu tempo contemporâneo e não o que é tecnologia em si mesmas: objetos que tentam emular de maneira mais eficiente determinados movimento e comportamentos humanos.

As armas foram um dos nossos primeiros grandes conjuntos de tecnologias, visto que, graças a elas, pudemos vencer, enquanto espécie a maioria dos animais ao nosso redor. O corpo humano sempre foi em termos de evolução, mesmo hoje, bastante fraco em relação aos outros animais de nosso mesmo porte, pois não temos garras, dentes e força o suficiente para subjugar outros seres.

À medida em que fomos desenvolvendo ferramentas bélicas fomos criando nossas civilizações, conforme o mito africano de MAKOMA [ https://sombrionauta.medium.com/makoma-2006-in-hellboy-a-feiticeira-troll-volume-8-quadrinho-2017-2920fc2ccc5d ]bem demonstra. Talvez aqui esteja uma das faces mais terríveis do pensamento humano, que foi bem diagnosticada por pensadores como MARX (1818–1883), WEBER (1864–1920) e por GUY DEBORD (1931–1994): a tecnologia aplicada vem a mudar as nossas formas de sobrevivência, inclusive mentais e psicológicas.

A construção do pensamento em particular alemão durante as duas guerras mundiais e que se expressa na concepção de EGO, ID E SUPEREGO freudiano já demonstrava que tal construção da subjetividade era em si mesma prenha da guerra. E nas guerras temos vítimas e agressores.

A maioria dos quadrinhos pós Segunda Guerra Mundial (1939–1945) se dedicou a apresentar a visão das vítimas sobre todos os terríveis morticínios e genocídios perpetrados em nome das utopias tecnológicas vitorianas importadas para todos os cantos do mundo.

MAS O BRITÃNICO JOHN BYRNE (1950) APRESENTA UMA VISÃO DAS ELITES SOBRE SUA PRÓPRIA TECNOLOGIA, AO CONTAR A ORIGEM DO MUNDO DO SUPERMAN (1938), KRYPTON.

Esse quadrinho é sobre isso.

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DO UBERMENSH AO SUPERMAN.

É sabido pela maioria dos fãs de histórias em quadrinhos que o SUPERMAN inicialmente era um vilão, muito parecido como o judeu PROFESSOR X dos X-MEN (ambos de 1963), sendo então possuidor de poderes psíquicos que poderiam ser usados para dominar a humanidade.

Acho bastante curioso então como STAN LEE (1922–2018) e o desenhista de origem judaica JACK KIRBY (1917–1994) tenham criado o personagem anos depois. Realmente a originalidade é só um mito burguês. Esses dois autores também criaram o QUARTETO FANTÁSTICO em 1961, que é demarcado pelo historiador dos quadrinhos, mais conhecido como poeta, MOACY CIRNE (1943–2014) como um dos grandes marcos dessa linguagem.

Talvez porque justamente eles eram uma marca na ficção das história em quadrinhos para adolescentes a transição definitiva do poder dado pela superioridade tecnológica DA EUROPA VITORIANA (1837–1901) para os E.U.A. e seu AMERICAN WAY OF LIFE (1919 (?)) conceito identificado pelo outrora marxista e depois conservador religioso radical de origem judaica, WILL HERBERG (1901–1977). Assim era necessário representar a ciência dos estadunidenses como superior à de todos os seus inimigos estrangeiros, e isso explica muito sobre o toda a galeria de vilões dessa equipe.

Mas antes de todos estes personagens da MARVEL (1939), está o primeiro super-herói científico de todos, o SUPERMAN, criado por dois jovens judeus também, sendo um deles canadense, aliás país americano que JOHN BYRNE se naturalizou, depois de deixar a Inglaterra.

SUPERMAN NASCE DA NOÇÃO DE IMIGRANTES FILHOS DE JUDEUS DA LITUÂNIA E DA UCRÂNIA, DE QUE O CENTRO DE PODER SE DESLOCOU DE UM LOCAL DESTRUÍDO POR UM CATACLISMA PARA UM MUNDO MELHOR.

Assim a proposta científica, ou da ficção científica desses dois era criar um novo mundo científico garantido por um imigrante, ou “alienígena” que vai pouco a pouco se tornando mais humano, ou seja, estadunidense, no decorrer de sua criação.

NESSE SENTIDO É UMA DEFESA DE QUE A HUMANIDADE SE DÁ PELA CULTURA E NÃO PELA GENÉTICA UNICAMENTE, DIFERENTE DAS TEORIA DARWINISTAS SOCIAIS COMO AS DE HERBERT SPENCER (1820–1903) QUE DÃO BASE AO NAZISMO (1919-).

Algo bem fácil de se esperar de dois jovens judeus descendentes de europeus judeus fugitivos dos pogroms antissemitas.

BYRNE tenta resgatar e ampliar esse conceito ao construir sua obra, logo, ele apresenta uma casta de kryptonianos elitistas que vive a séculos a base da exploração de versões de si mesmos.

QUEM?

Ora, deles mesmos, meus jovens, em seus presentes, passados e futuros.

O BROTO DO CÂNCER ELITISTA.

BYRNE nos apresenta a uma espécie de história de Krypton que se passa a milhares de anos antes da chegada do SUPERMAN até a terra. Nela somos apresentados à sociedade kryptoniana, que graças a seus fantásticos avanços em genética e eugenia vieram a produzir um evento bem rotineiro que hoje não damos tanto crédito assim: tempo de vida ampliado (imortalidade) alcançado por meios científicos e não místicos.

Rotineiro, porque desde a antiguidade temos tentativas de aumentar o tempo de vida dos humanos, alcançando razoável sucesso em termos de pequenas populações elitizadas: antes da era comum temos verificação de humanos alcançando o tempo de vida de mais de 100 anos.

No entanto aumentar a expectativa de vida era outra coisa.

Entende-se que expectativa de vida é quando se difundi para cada vez mais humanos a faculdade de ter maior tempo de vida, calculada pela média feita a partir da idade daqueles que morreram com a dos que ainda estão vivos no momento do cálculo. Graças a inovação de grandes sistemas públicos de massa de saúde como o SUS (1988) é que esse tempo de sobrevivência foi expandido para as populações mais pobres.

Assim a tendência estatística de quem tinha mais tempo de vida humana nas sociedades antigas, como as romanas, grande base do pensamento imperialista ocidental inglês era das famílias dessas elites, a saber, a nobreza. BYRNE reproduz uma elite semelhante em Krypton, em que as mesmas famílias, ou clãs, ou ainda, aristocracia se mantém no poder a milhares de anos, graças a sua ciência eugênica.

NADA DE NOVO: AS FAMÍLIAS ITALIANAS QUE DERAM ORIGEM AO CAPITALISMO AINDA SÃO AS MAIS RICAS DE FLORENÇA ATÉ O SÉCULO ATUAL.

A base científica que ele usa é a da clonagem, outra grande ciência capitalista, que está em uso desde idos de 1903, e que tem vários significados, sendo baseado na palavra grega “klon” que quer dizer algo como “broto de um vegetal”, e que de modo geral designa uma colônia de organismo derivados de um único progenitor por meio de reprodução assexuada. ]

CLONE É UMA TECNOLOGIA DE PRODUÇÃO COLONIAL QUE TENDE A PRODUZIR UM MESMO PRODUTO QUASE IDÊNTICO, COISA QUE A GENTE ESPERA DE SOCIEDADES QUE NASCERAM DE LATIFÚNDIOS ESCRAVOCRATAS.

E aqui é apresentado todo o drama dessa sociedade pelo nosso canadense naturalizado: as gerações kryptonianas devido a sua alta expectativa de vida tende a ter um tempo de maturidade cultural muito mais lento.

Há então um constante niilismo disfarçado de bom viver, e que está sendo maturado há séculos ali. Essa falta de mudança cultural, ou justamente por haver uma única base cultural perpétua transformou Krypton em um confortável inferno. Porque uma matriz única cultural reproduzida constantemente de uma única base, provoca aquele outro tipo de clone na biologia: câncer.

Aqui, um câncer cultural. E ele em breve se mostrará.

SECESSÃO MATRONAL.

A tecnologia clônica aplicada kryptoniana consegue consertar a maior parte dos danos que eles possam sofrer, de maneira extremamente rápida. Como?

Ora, cada kryptoniano tem o direito de ter três clones de si, em diversas idades (suponho que criança, adolescente e adulto), que podem ser usados como bancos de órgãos em caso de doença ou acidente.

SE NINGUÉM PERCEBEU AS TRÊS NORNES, ME AVISE.

Há muito tempo tal sociedade não convive com a guerra, pois sua ciência conseguiu impedir esse evento. Aqui está um dos grandes mitos liberais sobre a guerra: que ela pode ser evitada pelo avanço científico e não que o próprio avanço científico é a causa da guerra.

Desconfio que usar muito a base darwinista e não a kroptikiniana é o cerne do problema : temos uma noção constante de que a competitividade hostil é a base da evolução, coisa que outros ramos da ciência anarquista contestam.

MAS TEM MUITO MARXISTA QUE DEIXA ISSO DE LADO DEVIDO A CERTO PRECONCEITO ENGELIANO.

Seguindo.

Nos deparamos com uma sociedade de casamento arranjados (SE É QUE EXISTE OUTRO TIPO), a partir das heranças genéticas das famílias elitistas. Os jovens não pensam muito nesse tipo de coisa, pois são basicamente criados juntos desde tenra idade, então se casarem, mesmo sem paixão, parece uma coisa meio óbvia.

ROMANTISMO, QUE NEGO RELEGA AOS NAZISTAS, É MAIS COISA DE POBRES DO QUE DA ELITE.

Ali vemos dois jovens Van-L e Vara, destinados, literalmente a se casar. No dia da festa da maioridade de Van-L, ocorre um fato inédito em séculos na sociedade kryptoniana: um feminicídio. Na verdade dois. Na verdade um.

Quem perpetrou esse assassinato foi Kan-Z, que é visto por toda a sociedade do momento com um literal “filhinho da mamãe”. Sua mãe Nyra, não acha que nenhuma mulher está a altura de seu filho.

De repente ela anuncia que ele irá casar. Em meio a comemoração da maioridade de Van-L Kan-Z invade o casamento e assassina sua mãe, depois de ter assassinado sua noiva Kyla. Depois desse assassinato, sim assassinato e não assassinatos, ele tenta se suicidar, mas é impedido por Van-L.

Qual o motivo desses feminicídios, ou melhor desse feminicídio? Nyra retirou um de seus clones e lhe concedeu consciência para que seu filho se casasse com ele.

ALGUMAS MÃES ACHAM QUE SÃO AS ÚNICAS DIGNAS DE SEUS FILHOS. E A CIÊNCIA AQUI PROPICIA ESSE TIPO DE CULTURA MATRIARCAL ELITISTA.

Esse ato de violência leva, assim como o assassinato de FRANS FERDINANDO (1863–1914), a uma guerra mundial pelo direito a vida plena dos clones

Assim, Byrne também escolheu pinçar um dado da história estadunidense para dar sentido a sua narrativa: a GUERRA DE SECESSÃO ESTADUNIDENSE (1861–1865) onde os direitos do negros e não dos clones foram o cerne da questão.

ENSINO REMOTO.

Discussões sobre a ideia de guerra por direitos de clones e de transplante de órgãos não são uma novidade na ficção científica: O MONSTRO DE FRANKENSTEIN (1818) já debatia esse tipo de problema, além de quadrinhos como OS MICRONAUTAS (1979), onde se apresentava, de maneira mais honesta do que na obra que resenho, uma coisa chamada “banco de corpos”, onde vemos que os ricos dessa sociedade se mantinham sobrevivendo graças a manterem os pobres endividados, e, literalmente, tirar seu órgãos para pagarem seus débitos.

STAR WARS: THE CLONE WARS (2008) seria outra dessas visões, mas não só ela.

Também o filme REPOMEN (2010) faz menção a sistemas de saúde privados que retomam os órgãos daqueles que não podem pagar as mensalidades, fazendo um paralelo com a escravidão por dívidas romana.

Antes disso, convém também lembrar do MERCADOR DE VENEZA (1596–1598) de WILLIAM SHAKESPEARE (1564–1616) onde o mercador judeu (armador?) Shylock faz um acordo de empréstimo a Antonio, outro mercador, no qual se ele não o pagar, terá um libra de sua carne cortada.

SIM, O ALTO DA COMPADECIDA (1955) SE INSPIRA NESSA PEÇA: COMO DISSE, ORIGINALIDADE É UM MITO BURGUÊS.

Mas hoje também esse comércio continua, afetando os mais pobres em várias partes do mundo.

Então a ficção científica que BYRNE e MIKE MIGNOLA (1960) criaram aqui tem um dos pré-requisitos fundamentais desse gênero: que a tecnologia envolvida exista já na realidade onde ela está sendo escrita.

A guerra por direitos dos clones leva a devastação de Krypton devido aos atos do grupo terrorista MÃO NEGRA (1911–1917), perdão ZERO NEGRO, que incluem a detonação de bombas nucleares.

Séculos depois um dos descendentes de Van-L, um tal do Jor-El se vê em uma sociedade que evita a todo custo o contato físico, como se fosse algo pandêmico. E está mesmo acontecendo uma pandemia.

QUE NA VERDADE SÃO EFEITOS DE ATOS DO ZERO NEGRO: A CRIAÇÃO DE UM METAL RADIOATIVO CHAMADO KRYPTONITA.

JOR-El compreende que sua sociedade é por demais dada a uma espécie de etiqueta que eximiu de si todos os traços das paixões, como forma de eliminar eventos como as guerras que acometeram seu ancestral. Mas ele não gosta disso, pois está apaixonado por duas coisas: as guerras clônicas e uma mulher que nunca viu pessoalmente, e que será a mãe de seu filho, KAL-EL, LARA.

Repare duas coisas: a sociedade kryptoniana, apesar de avançada, continua sendo patriarcal: as mulheres não têm sobrenome. Porque ela é centrada no pensamento eugênico, logo, despido de qualquer romantismo.

JOR-EL em verdade aprende a vida por meio de telas, como nós ficamos no pós pandemia, com jovens sonhando com mundos em guerra que nunca viram, mas que adoram, graças as narrativas imagéticas gloriosas que os perpetram em seu imaginário.

ESTAMOS MAIS PRÓXIMOS DE KRYPTON DO QUE PENSAMENTOS.

Mas BYRNE E MIGNOLA, astutos e servis como sempre, evitaram colocar uma ciência em discussão em sua obra, como sempre o fazem: a economia.

Krypton é um mundo sem dinheiro. E por meio disso, fica difícil descobrir que em verdade o que está havendo é uma espécie de luta de classes, pelos direitos dos clones, tidos como irracionais.

E SEMPRE QUE PODE BYRNE CRITICA O ZERO NEGRO COMO UM BANDO DE FANÁTICOS.

Nada de surpreendente neste talentoso submisso ex-britânico.

Pobre KAL-EL, fugir de um mundo destruído pelo capitalismo para cair em outro prestes a o ser também.

POST SCRIPTUM

Recentemente minha mãe padeceu da necessidade de fazer uma operação em sua coluna, que necessitou colocar pinos e parafusos de titânio em suas costas. O plano de saúde dela veio a tentar negar a operação, alegando que ela era estética.

SIM, É ISSO MESMO.

Tivemos que entrar com um processo contra o plano de saúde, e felizmente, ela conseguiu seu direito e agora está em uma boa recuperação.

Porém quem teve que convencer grande parte da minha família da necessidade dessa operação dela, fui eu. Sou um homem da ciência de fato. Não acredito em sorte, e sim, em tecnologia.

Contudo gente como eu só é útil para o início do processo. Nós intelectuais somos apenas isso, na maioria das vezes.

DEPOIS SOMOS ESQUECIDOS ATÉ QUE UM JOR-EL DA VIDA NOS ACHE EM ALGUMA TELA DE ENSINO REMOTO.

Terrível, não? Ser valorizado por gente apaixonado pela guerra e não por aqueles que a querem evitar.

Se gostou desse texto, 50 palmas serão bem-vindas e agradecidas.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).