NAPOLEÃO [FILME] (2023):

Sombrionauta
10 min readDec 9, 2023

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SUETÔNIO ESCOCÊS.

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INTRODUÇÃO

Impressionante como as pessoas gostam de história. Sim, gostam, mas aquela que ressoa com suas próprias convicções pessoais. Se for uma fofoca, melhor ainda, e caso seja sobre figuras do poder econômico político é ideal.

Mas a fofoca cumpre funções militares. Sim, rir e ridicularizar o inimigo faz parte da guerra. Muita gente escreve sobre isso, inclusive no Brasil, como por exemplo ELIAS THOMÉ SALIBA (?), de como o riso e a ironia são invenções humanas e que cumprem uma série de funções sociais.

No entanto, convém lembrar que esse tipo de produção literária que se propõe a apresentar o ridículo como forma de narração dos feitos de líderes políticos, em particular de Imperadores, já estava no autor de VIDA DOS DOZE CÉSARES (121)de SUETÔNIO (69–141). Esse autor foi um dos melhores historiadores antes da história ser entendida por ciência que o Ocidente teve. Porque nosso secretário compreendeu um pouco antes da morte do mundo antigo de que rir era um forma de diminuir o poder de quem o detém, usando uma técnica fantástica e vigente até hoje:

BASTA APRESENTAR OS PODEROSOS EM SUA INTIMIDADE, QUE ELES PERDEM O SEU CARÁTER DIVINO.

Porque a divindade não defeca, não solta gases, não fala com a boca cheia, não fica gripada, não fede, não é traída, não se assusta (outros tipo de medo ela pode ter), não tem dúvidas, e sempre, sempre, está centrada na política de seu tempo.

AQUI O “ESCOCÊS QUE LIMPA”, SIR RIDLEY SCOTT (1965) MAIS UMA VEZ LIMPA TODA A DIVINDADE DE UM DOS GRANDES ÓDIOS POLÍTICOS DO POVO INGLÊS MAIS NOBRE E REFINADO: ELES TEREM SIDO QUASE DERROTADOS PELOS BURGUESES REVOLUCIONÁRIOS FRANCESES.

Esse filme é sobre isso.

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COMÉDIA MILITANTE.

As comédias são narrativas poderosas de destruição da legitimidade de qualquer pessoa. São um problema sério, porque fazê-las sem usar recursos mais óbvios como caretas e barulhos dissonantes é difícil e aí realmente se testa a capacidade intelectual do público e da crítica.

Esse problema aparece notadamente no humor inglês, que demanda uma enorme quantidade de referências histórico-acadêmicas para que possa ser entendido. Um exemplo são os humoristas do MONTY PYTHON (1969–2014), que trabalhavam com um humor surreal e absurdo, que só pode ser reconhecido muitas vezes se os espectadores conseguem perceber que o que é apresentado é um exagero sobre parâmetros reais.

O ABSURDO NÃO PASSA DO IDEAL SENDO APLICADO EM TERMOS EXTREMOS. O CASSETA & PLANETA (1986 ) FAZIA ESSE TIPO DE HUMOR AQUI NO BRASIL.

Tanto que o nome adotado nossos ingleses humoristas é uma homenagem, ou insulto, se preferirem ao general britânico LORD MONTGOMERY (1887–1976). Assim pensamento militar e humor do absurdo são um constante na esfera pública cômica inglesa.

ME PARECE MEIO ÓBVIO QUE NAÇÕES IMPERIALISTAS TENHAM ESSA TENDÊNCIA A FAZER ESSE TIPO DE PIADAS CONSIGO MESMAS, AO PERCEBEREM QUE SEU UNIVERSALISMO É MERA CONVENÇÃO FICCIONAL.

Outro inglês que fez esse tipo de excelente de comédia foi o hegeliano CHRISTOPHER NOLAN (1970), e como não se propôs em ser didático nessa produção, ou seja, em acreditar na inteligência das massas, fez com que ela muitas vezes fosse julgada como um drama: BATMAN, O CAVALEIRO DAS TREVAS (2008)

Assim é necessário reconhecer quando um piadista está fazendo uma gracinha com o público, porque ele não vai explica-la, por julgar isso um insulto à inteligência dele.

O NAPOLEÃO, DE JOAQUIM PHOENIX E RIDLEY SCOTT, DEVE SER LIDO POR ESSA CHAVE.

Assim o que temos não é uma proposta de leitura histórica factível com os livros escolares e acadêmicos acerca do último grande imperialista civilizador que a humanidade conheceu , e sim, uma piada absurda de como alguém tão ridículo pode alcançar o poder militar que quase pôs o planeta sobre seu controle.

E aqui o insulto se torna elogio: realmente NAPOLEÃO BONAPARTE (1769–1821) está liderando um projeto de poder legislativo e militar cômico, se pegarmos a origem linguística do termo: “comédia” quer dizer “comuns”, gênero literário e teatral fundado na GRÉCIA ANTIGA (XIV — IX A.E.C. ) justamente para rir do drama, ou seja, das narrativas traçadas e tramadas pela elite grega, notadamente ateniense, para impor em termos subjetivos seu poder sobre a Hélade e posteriormente criar seu império, que não aconteceu, a não ser que levemos em conta um dos ídolos de BONAPARTE, o real fundador do helenismo, o maçônico ALEXANDRE, O GRANDE (356 A.E.C. -323 A.E.C.).

UM ILUSTRE SÁTIRO.

Muita gente tem reclamado dessa chave satírica de leitura sobre corno, perdão, o corso NAPOLEÃO BONAPARTE. Sei porque, mas não entendo o espanto em relação a isso. Raramente os revolucionários, de esquerda, são representados bem nas produções do Irmão-Sistema, até quando elas tentam, e o filme MARICHELLA (2019) é exemplo disso.

A maioria dos desenhos animados, seriados e outras produções derivadas do cinema sempre apresentaram BONAPARTE como louco, bobo, exacerbado, bêbado e geralmente corno. Talvez a exceção estivesse no filme mudo feito sobre ele em 1927 na França, que em verdade deveria ter sido uma série de oito, que não deram certo, e logo depois a METRO-GOLDWYN-MAYER (1924) comprou os direitos do filme.

Logo, geralmente as representações do corno, digo, corso, o relacionam à loucura em produções como ONE HYSTERICAL NIGHT (1929) , e assim foi por toda a cultura pop.

ENTÃO, VOCÊS ACHAVAM MESMO QUE O SCOTT IA SAIR MUITO DIFERENTE?

SCOTT é filho de militares, assumidamente conservador erudito, e acima de tudo um bom inglês logo, portador de certo desprezo para com os franceses. Não é a primeira vez me que ele os retrata de maneira injuriosa, sendo que O ÚLTIMO DUELO [FILME] (2021) é uma dessas produções, que por sinal é mais uma dos elogios desse diretor ao matronato que apoia o machismo.

Logo, como não achar que ele não acharia totalmente tolo um homem francês que publicamente declarava seu amor a uma mulher?

COMO SCOTT NÃO VAI ACHAR RIDÍCULO UM HOMEM COMO NAPOLEÃO NÃO MANDAR EXECUTAR ESPOSAS QUE PUBLICAMENTE O TRAÍRAM?

Essa é a verdadeira piada sobre nosso Imperador Corno, digo, Corso: ele não tem o poder para executar seus direitos machistas, ou sendo mais claro, seu machismo estrutural, garantido pelo Estado Francês desde a IDADE MÉDIA (476–1453)?

NÃO TEM. E AQUI ESTÁ A GRANDE COISA QUE ESTÁ SENDO RIDICULARIZADA.

NAPOLEÃO, assim como todos, está sobre um novo conjunto de leis que impede que ele faça isso, o verdadeiro caluniado nessa produção o CÓDIGO CIVIL FRANCÊS ou CÓDIGO NAPOLEÔNICO (1804).

Não que esse código seja feminista, longe disso. Mas ele é bem mais brando do que as antigas legislações, e, simultaneamente talvez a maior herança e pior derrota da REVOLUÇÃO FRANCESA (1789–1792): pois até 1795, as mulheres participavam efetivamente da REVOLUÇÃO, inclusive como braço armado. O CÓDIGO eliminou isso, mas não totalmente.

Daí vem todas as verdadeiras chacotas que o filme quer fazer: em verdade essa produção está dizendo que os franceses são tolos, corporificados por NAPOLEÃO, porque ousaram dar mais liberdade às mulheres.

A COROA DE CHIFRES DOS IMPERADORES.

Existe uma longa tradição em se ridicularizar homens poderosos por meio de suas companheiras. Está em vários mitos, desde as aventuras de ZEUS (3300 A.E.C.) passando por outras como a mitologia celta na figura de CERNUNNOS (VII A.E.C.).

Nesse tipo de tradição os seres masculinos poderosos tem como uma de suas qualidades estéticas serem portadores de chifres, epíteto da virilidade, e também são anexos ou submissos à figuras femininas que representam o feminino sagrado.

Essa relação, entre perigo para a biografia política e relações conjugais está presente também na vida um dos ídolos de NAPOLEÃO, JÚLIO CÉSAR (100 A.E.C. a 44 A.E.C.): aconteceu quando uma de suas esposas, não a CORNÉLIA CINILA (94 A.E.C. — 69 A.E.C.), e sim, a POMPEIA SULA (? — ?) foi questionada de ter traído o futuro líder romano. Daí veio a seguinte frase atribuída a ele

‘“A mulher de César deve estar acima de qualquer suspeita. A mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”

Fofoca que seria digna de SUETÔNIO, e se não me engano, foi propagada pelo mesmo.

Logo ligar Imperadores à falta de virtu, em termo maquiavélicos, é para lá de uma manobra maquiavélica antes mesmo do próprio MAQUIAVEL (1469–1527).

Todo o filme privilegia narrar o relacionamento do corno, digo, do corso com JOSEFINA DE BEAUHARNAIS (Vanessa Kirby), que por sinal o traiu bem menos que sua outra esposa, MARIA LUÍSA DE ÁUSTRIA (1791–1847), dizem as más, e bem informadas, línguas.

Aqui é que o filme poderia ser mesmo uma boa biografia histórica, mesmo se focando no cotidiano, se tivesse abordado os motivos desses casamentos e divórcios.

A BIOPOLÍTICA DA REALEZA.

É sabido que toda a base da política europeia pós capitalismo é baseada na transmissão de pode por meio da herança biológica, quase como uma tentativa de clonagem que a banda, cujo vocalista foi acusado de abuso, e inocentado, RAMMSTEIN (1994) abordou em seu clipe ADIEU (2022).

A política europeia, e estadunidense, se lastreia na estabilização de suas elites por meio de casamentos entre eles mesmos, inclusive consanguíneos, para garantir a hegemonia de poder.

Quando JOSEFINA se mostra infértil é que se tem a sua separação de NAPOLEÃO. A produção aborda brevemente isso, o que a meu ver, poderia ter sido o seu foco. E mais, poderia ter apresentado, que em verdade, ninguém da nobreza estava muito preocupado com fidelidade no final das contas, desde que as traições se mantivessem em âmbito da realeza, garantindo assim uma prole “pura”.

POR ISSO TAMBÉM OS BOLCHEVIQUES (1903–1924 (?)), EXECUTARAM SUMARIAMENTE OS ROMANOV DA CASA OLDENBURGO (1613–1917) EM 1918.

E também é por isso que KILLMONGER (1973) queima as ervas do coração em PANTERA NEGRA (2018): tanto ele quanto os soviéticos veem os perigos da materialidade que compõe essa biopolítica estarem disponíveis para serem usados contra os mesmos no futuro.

INCLUSIVE ISSO VOLTE E MEIA É USADO TAMBÉM CONTRA A REPRESENTAÇÃO DE NAPOLEÃO NOS QUADRINHOS, O DOUTOR DESTINO (1962)

NEW MODEL ARMY X NOUVEAU MODÈLE D’ARMÉE.

Apesar desses percalços o filme não pode esconder uma coisa: a capacidade militar de BONAPARTE.

Porque o corso em verdade representa um novo estilo de guerra revolucionária. Sim, NAPOLEÃO corporifica e exerce um novo princípio científico de guerra, que foi inclusive tema de cursos do Exército do Povo do Vietnã (1944) dados por um dos maiores estrategistas militares do século XX, o centenário general VO NGUYEN GIAP (1911–2013) que ironicamente combateu os franceses, e também os estadunidenses.

Até a REVOLUÇÃO FRANCESA, Os sistemas de combate seguiam a mesma biopolítica perpetrada pelas elites da realeza, ou seja, suas forças armadas eram organizadas e hierarquizadas por meio de seus títulos nobiliárquicos, com ênfase nas habilidades de combate ligadas à esgrima. É sabido que esse estilo de combate, assim como a pintura, depende de grandes expedientes de tempo para que se torne funcional.

NO ENTANTO, A FOTOGRAFIA, TANTO QUANTO AS ARMAS DE FOGO, DEPENDEM DE UMA CAPACIDADE TÉCNICA MAIOR, LOGO DE EXPEDIENTE DE TREINAMENTO MENOR E MAIS ACESSÍVEL.

Nesse ponto a narrativa, e SCOTT, tem um falso xeque-mate, assim como o que BONAPARTE deu no falso autômato TURCO (1770–1854) em 1809. O falso xeque-mate, é o mesmo que atribuo a quem acha que a direita está perdendo depois da vitória do atual presidente da república brasileiro, e que me parece justamente o contrário, pelo menos quando vejo coisas como a privatização da SABESP ser sancionada por meios violentos e prisões recentemente: o de que chamar o inimigo de “burro,ou corno, como faziam com MUSSOLINI (1883–1945) , faz ele ser mesmo sem habilidade.

NEM SEMPRE A FRASE DE MAQUIAVEL DE PREVALECER A APARÊNCIA SOBRE A ESSÊNCIA DÁ CERTO, JOVENS DA GERONTARQUIA DE ESQUERDA.

BONAPARTE era revolucionário inclusive em seus meios de combate, com a melhora do conceito introduzido pela REVOLUÇÃO FRANCESA de cidadão-soldado, no qual o nacionalismo tem sua face mais libertadora: todos devem lutar pela pátria, mas para isso acontecer, é necessário que ela abranja a todos os interesses possíveis da população, lhes concedendo o treinamento físico e intelectual para tanto.

O exército revolucionário e depois napoleônico é baseado numa hierarquia de mérito e não de descendência, uma meritocracia de fato, que só os exército revolucionários acreditam. O próprio BONAPARTE cresce no seio desse exército por ser um excelente calculista de trajetórias de artilharia, que definiram as guerras até quase 1939.

Isso aparece na cena em que se mostra uma das maiores vitórias do general francês, a BATALHA DE AUSTERLITZ (1805), em que seu uso brilhante de canhões garante a vitória de seu exército. Mas até isso é mais um truque do turco SCOTT: porque o exército e sua estrutura não são apresentados como um dos trunfos da França.

Assim, por trás de todas essas fofocas, pela ausência, localizamos o verdadeiro interesse da produção, diminuir um mito, já diminuído, da esquerda, o governante que se propõe a fazer uma legislação mais laica, apoiado por cidadãos-soldados comprometidos.

Por tudo isso, esse filme mostra o que já foi mostrado muitas vezes: se não pode apagar uma vitória revolucionária, tente ridicularizá-la.

POST SCRIPTUM

No final das contas, fofocas só interessam se são de gente conhecida. O resto é apenas história. E parece que não há grande interesses nisso.

Pelo visto a noção de cidadão-soldado está acabando, porque esse tipo de gente tende a ser mais incisiva em suas cobranças a seus líderes, justamente porque detém os meios para isso. Nenhuma liderança política quer esse tipo de base atualmente, e o jeito como as outras forças sociais têm sido ignoradas nessa gestão federal parece deixar isso claro.

No momento que escrevo, uma série de pessoas está sendo mantida presa depois da privatização da SABESP e ainda não vi manifestação de nenhuma força partidária a não ser gente ligada à APEOESP (1945), e a U.P (UNIDADE POPULAR (2016)).

Realmente, cidadania sem soldados não existe.

Se gostou desse texto, 50 palmas serão bem-vindas e agradecidas.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).