MATAR OU MORRER [QUADRINHO] (2016–2018):

Sombrionauta
9 min readOct 20, 2023

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ALGUNS SÉCULOS DE FÚRIA.

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Muitas vezes esquecemos que a mídia dos quadrinhos, é mídia.

“AINNNN JURAAAAAAA?”

Juro.

Dizer o óbvio as vezes é necessário. Essa linguagem em verdade é um conjunto de valores pensados originalmente e predominantemente, mas não unicamente, para a venda. Não importam os níveis dela. Até mesmo webcomic’s e fanzines, tem como fim último um futuro mercado de venda. Quem me ensino isso foi minha experiência com o fanzine do Sombrionauta. Eu antes o distribuía como panfleto gratuito, até que percebi que era o único fazendo isso ,e portanto, estava atrapalhando o negócio dos fanzineiros.

QUEM DISTRIBUI FANZINE DE GRAÇA, ESTÁ FAZENDO PROPAGANDA, OU É ALGUÉM QUE NÃO PRECISA DO DINHEIRO E, CONSCIENTEMENTE OU NÃO, ESTÁ DESTRUINDO LENTAMENTE UM MERCADO.

Dito isso é necessário entender então que mídias via de regra almejam o máximo de alcance, mas têm em si uma persona nas quais se focam. Ou seja, têm um mercado para o qual são direcionados. A minha persona por exemplo é um a das piores possíveis, pois almejo proletários, coisa que nego prefere morrer do que se referir a si mesmo assim.

Em parte, é culpa da mídia liberal de esquerda, que ao criticar a exploração do trabalho, ataca o trabalho em si mesmo. A meu ver uma má interpretação de DIREITO À PREGUIÇA, (LE DROIT À LA PARESSE, 1880) do suicida socialista PAUL LAFARGUE (1842–1911). Esse tipo coisa é feita por quem raramente trabalhou como assalariado, então tende a não perceber que o orgulho do trabalhador, vem do fato de ser trabalhador.

O CAPITALISMO E O CHEFE SÃO OS QUE QUEREM DESTRUIR ESSA AUTOESTIMA.

Porque a função básica de chefe a atrapalhar todo o tipo de autogestão de proletários, porque vai que eles viram anarquistas, depois socialistas e finalmente comunistas. Aí já viu.

Assim sendo proletários parecem não ser a grande persona da mídia em geral, embora essa mídia tenha que acessar certos traços deles para construir suas histórias, logo alguns de seus valores.

O FASCISMO (1919) FEZ E FAZ ISSO MUITO BEM, A MEU VER.

E quem conhece trabalhador, sabe muito bem que ele odeia quem não trabalha. É uma coisa quase ontológica. Logo criminosos são uns dos grandes ódios de proletários, os quais, a mídia dos quadrinhos estadunidense geralmente chama “cidadão comum” ou no Brasil de “cidadão de bem”.

E GERALMENTE SEUS HERÓIS NESSE MÍDIA SÃO HOMENS BRANCOS LIBERAIS HETEROSSEXUAIS COM CRISES DE MASCULINIDADE.

Esse quadrinho é sobre isso.

ESTEREOTIPO IDEAL.

Basicamente milícias de justiceiros são uma constante na história dos bairros de trabalhadores pós-capitalistas, sendo que elas acabam evoluindo com o tempo para se tornarem organizações de controle do crime e pacificação das populações nos municípios onde são criadas.

PRATICAMENTE TODA A HISTÓRIA DAS CHAMADAS “MÁFIAS” SEGUEM BASICAMENTE ESSE ESQUEMA PROCESSUAL.

E geralmente no começo desse processo estão uma série de homens, quase sempre brancos, mas não só eles, heterossexuais, com alguma experiência em guerras e treinamento militar, desempregados ou com pequenos comércios, que se vem assolados por alguns tipos de pequenos criminosos (batedores de carteira, assaltantes, pedófilos e estupradores, e outros indivíduos que parecem muito com eles mesmos).

Assim sendo,ser do sexo masculino é uma das bases desse tipo de grupo o que explica os filmes de ação, responsáveis por celebrizar esse tipo de gente, raramente terem como protagonistas mulheres, a não ser que adotem o papel da matrona, ou seja, de uma mãe, insana e violenta, tipo aquela deusa que os nazistas usaram como seu símbolo máximo.

Os batalhões de linchamento de negros, segundo ANGELA DAVIS (1944) EM WOMEN, RACE AND CLASS (1981), surgiram por meio desses homens, apoiado justamente por esse padrão de mulheres brancas.

E, se não me engano, grande parte do discurso fascista é defensor de proteger as mulheres dos “horrores perpetrados pelos comunistas gays, sádicos, pervertidos, lésbicos, depravados, antinaturais, etc, etc e etc”. Logo todo a sorte de moralismos que advém, sim, da classe trabalhadora, sem necessariamente mencioná-la, está presente nesse tipo de produção.

Com o tempo, a crítica mais liberal de esquerda ajudou, ainda mais, em afastar as causas econômicas desses justiceiros, não sem críticas da direita liberal ( exemplificadas nas produções de pessoas como SÉRGIO LUÍS BIANCHI (1945)), ao se restringir a abordar as razões psicológicas desse tipo de criminoso justiceiro.

POR ESSAS E OUTRAS EU NÃO GOSTO DO ADORNO (1903–1969).

Aproveitando, “liberal de esquerda”, para mim, é gente que acha que dá para ter socialismo revolucionário, sem uma revolução, tipo o ELIAS KHALIL JABBOUR (1975), talvez o intelectual ocidental que mais conheça sobre o processo econômico chinês atual. “Direita liberal”, é aquela, para mim, rapaziada que acha que o Irmão-Capitalismo pode ser domado por meio de reformas sociais e concessão de direitos, abastecidas por meio de impostos tipo taxação de grandes ricos, sem passar pelo processo de revolução.

RESUMINDO; POR MOTIVOS DIFERENTES, AMBOS CONCORDAM EM DISCORDAR DO LÊNIN (1870–1924).

O protagonista dessa história, Dylan, bate com esse perfil acima citado de membro das milícias.

O PERDEDOR QUE SE ACHA.

ED BRUBAKER (1966), o roteirista desse quadrinho e um dos melhores argumentistas acerca da temática dos perdedores, ou low-life’s, ou ainda, do lumpemproletariado. Muitas vezes essa obra que resenho é comparada a BREAKING BAD (2008–2013), contudo, em verdade, segue a linha argumentativa tradicional de representar os dramas e alegrias dos desse limpemproletariado, com seu senso de justiça, falta de emprego e tendência ao empreendedorismo criminal.

LOGO, ESSA OBRA É SÓ UMA ATUALIZAÇÃO DESSE CONCEITO DE LOSER.

Mas é uma grande atualização. Grande porque nosso roteirista percebe uma coisa que estava à nossa frente o tempo todo.

HISTÓRIAS EM QUADRINHOS SÃO PARA ESSE PÚBLICO TAMBÉM.

Por tudo isso vemos uma atualização do conceito de super-heróis, seguindo o velho espírito de gente como o MOORE (1953) e mesmo do ENNIS (1970), em que ao contrário de nosso espartano MILLER (1957), os sacrifícios de uma vida pessoal por uma vida gloriosa são apenas efeitos de você ter um vida pessoal inglória.

DYLAN É UM HOMEM ADULTO, FAZENDO AINDA FACULDADE, SEM NAMORADA. É UM ADOLESCENTE EM CORPO DE ADULTO.

Por conseguinte, apesar de ser filho de desenhistas, ter boa estabilidade econômica e razoável base intelectual, está preso num perpétuo pesadelo adolescente.

SE VOCÊ ACHA QUE A ADOLESCÊNCIA DEVERIA DURAR MAIS, LEIA ESSE QUADRINHO E CRESÇA, SEU VELHO BRANCO BABACA.

Sim, esse é um dos detalhes deliciosos: Dylan tem esses sonhos de grandeza de adolescente branco: de ser injustiçado, que realmente os poderosos é que dominam e cerceiam as vontades dos mais fracos, que estamos presos dentro de um simulacro de ideologias falhas, corruptas e imperfeitas.

A DIFERENÇA É QUE ELE NÃO TEM CORAGEM DE ASSASSINAR PRESIDENTES, MONTAR PARTIDOS COMUNISTAS, E INSTILAR O MEDO E HORROR NOS MILIONÁRIOS: NÃO, NÃO, NÃO; É MAIS FÁCIL MATAR CRIMINOSOS DE RUA, GERALMENTE ESTRANGEIROS OU DE QUALQUER ETNIA NÃO BRANCA.

Dylan é o VIGILANTE (1941), O PACIFICADOR (1966), JUSTICEIRO (1974), ou quaisquer desses personagens que se recusam a destruir o poder do capitalismo de fato, porque sabem que se o fizerem, vão morrer em menos de dois meses. Inclusive o protagonista de UM DIA DE FÚRIA (1993)

LOGO, SÃO UNS COVARDES.

Mas um covarde violento, pode ser bem apresentado como um herói se você o representar como vítima. Então BRUBAKER aqui faz algo parecido com o eu fez em LIVROS OF DOOM (2006): apresenta a intimidade desse tipo de gente.

MEU QUERIDO DIÁRIO DE GUERRA.

Lembro que MILLER em BATMAN, O CAVALEIRO DAS TREVAS (1986) coloca uma fala que era mais ou menos essa: “armas de fogo são para covardes, hoje se mata muito por causa disso”. Bom o Miller não quer debater que esse processo de proliferação de armas de fogo é culpa do IMPERIALISMO CAPITALISTA VITORIANO (1837–1901) que vai redundar no armamento de populações proletárias para lutarem na PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL (1914–1918) coisa que o já citado LÊNIN condenou.

Mas o conceito não está tão errado assim: realmente armas de fogo empoderam gente com baixo treinamento militar, graça a enorme acumulação de técnicas presentes nelas. Realmente, armas de fogo são um problema, principalmente para as populações dos povos originários no Brasil.

Em suma, os covardes citados por MILLER são verdadeiros e geralmente são brancos. Esse quadrinhista de Direita sempre teve bons acertos, que precisavam ser melhor discutidos, inclusive em pensar que nossos heróis na década de 1980–1990 eram basicamente terroristas, evolução própria desse tipo de justiceiro moral.

A TENTATIVA DE IMPUTAR A TODO A CAUSA PALESTINA A CULPA PELOS ATOS DO HAMAS (1987) É PARTE DESSE TIPO PARTE DESSE TIPO DE SENSO-COMUM CRIADO POR ESSAS MÍDIAS PARA TRABALHADORES..

Pegue os índices de pessoas mortas por armas de fogo, e verá que em sua maioria são negros, pelo menos nas grandes cidades do Brasil, e suspeito, de toda o Continente Americano, talvez com exceção do Canadá, e olhe lá.

O quadrinho reflete bastante sobre isso. Dylan é aparentemente um bom atirador, quase inato. Me faz pensar se isso é verdade, ou se as armas que ele usa, não foram predominantemente usadas para matar populações pobres, desde de o início da escravização negra nos E.U.A, logo, é por isso que ele atira bem.

Ele mesmo se pergunta, em dado momento, em sua atividade de justiceiro sobre os motivos de estar realizando tudo aquilo. E esse é ponto alto dessa produção. Seguindo a tradição do narrador em off que é o próprio protagonista, o que acontecia muito nas histórias do JUSTICEIRO vemos os motivos que o levam a se tonar um vigilante.

NADA MUITO COMUNISTA, ACREDITEM, EMBORA ELE TENTE PASSAR POR ISSO.

Em verdade um dos maiores feitos aqui é demonstrar que ele é uma pessoa passando por uma terrível depressão, provavelmente hereditária. Porém, tal qual a Inglaterra fez, com gente do HAMAS, ou seja, empoderar radicais religiosos para sua luta contra o socialismo de esquerda, nosso personagem também dá um ar religioso para suas tendências homicidas.

DOCE DESEJO DE MATAR.

Dylan está oprimido por várias coisas, as quais, são todas pré-requisitos para criar um bom americano, e que por sinal, com exceção da nacionalidade, são ótimos pré-requisistos para se criar um nazista alemão.

BOM, TROCA NACIONALIDADE POR NACIONALISMO QUE A COISA DÁ CERTO.

Filho de um artista frustrado suicida que fazia quadrinhos pornográficos, ele já tentou o suicídio várias vezes. Quando tenta mais uma vez, incentivado pelo clássico esquema apresentado em CLUBE DA LUTA (1999), onde todo o drama vem de uma paixão mal resolvida por uma mulher mais liberal, ele se salva.

MAS DO NADA APARECE O DIABO DE UM DEMÔNIO DIZENDO QUE AGORA ELE DEVE TODOS OS MESES MATAR ALGUÉM PELO BENEFÍCIO DE TER SIDO SALVO.

Que demônio mais agiota esse.

Aqui está a grande sacada para apresentar esse tipo de proto-facista: ele se achar especial. Porque o que eu conheço de demonologia aponta que não é tão fácil assim invocar um demônio, e eles têm toda um esquema bem especializado de prestação de trocas de almas por benefícios.

VAI VER O DEMÔNIO É UMA REENCARNAÇÃO DO RAY CROC (1902–1984).

Então no decorrer dos quadrinhos vemos nosso Dylan matar gente, se perguntar a moralidade disso, e continuar assim mesmo matando gente. Corrupção policial, pedofilia, proteção de mulheres, russos mafiosos, assaltantes negros, movimento punk, e toda a sorte de preconceitos atribuídos à esquerda, presentes em toda a sorte de filmes, inclusive o recente SOM DA LIBERDADE (2023) ali aparecem. Tudo parece funcionar para ele, graças às suas atividades de vigilante, essa força de vontade dos feridos que o leva a melhorar suas técnicas de combate e angariar mulheres no processo. Inclusive com o tempo, até mesmo em termos ideológicos essas mulheres vão se render a seus ideais, o que é em verdade uma crítica bem sutil a certos desdobramentos do feminismo mais liberal, mas não só ele.

POR TUDO ISSO ESSE QUADRINHO É MUITO BOM: PORQUE MOSTRA QUE A IDEOLOGIA DOS QUADRINHOS É SIM TENDENCIOSA, E QUE APESAR DAS CRÍTICAS A ELA TEREM SIDO ABSORVIDAS, ELA SIMPLESMENTE VAI CITÁ-LAS E LOGO EM SEGUIDA IGNORÁ-LAS.

Existem sim, produções boas de esquerda, mas elas não ganham incentivo. V DE VINGANÇA (1982–1989) e em certa medida LA CASA DE PAPEL ( 2017–2021) são as exceções que comprovam a regra, pois são transformadas lentamente nesse tipo de liberalismo de esquerda.

Ao final temos uma suspeita bem grande de que fomos enganados, de bom grado, e nos divertimos bastante. Porque sim temos algo de Dylan: sabemos que tem algo errado com o mundo, que a classe dominante é a grande responsável por isso, e que podemos fazer alguma coisa se nos propormos a isso.

COMO COLETIVO. DYLAN COLOCA QUE O COLETIVO É O PROBLEMA.

Quando nos propormos a fazer o mesmo que BRUBAKER, mas termos um herói coletivo, como MOORE no fundo propôs, aí finalmente estaremos livres do demônio que atormentou o personagem e nos atormenta.

O INDIVIDUALISMO TOLO, CELIBATÁRIO, PORNOGRÁFICO E MAGOADO.

POST SCRIPTUM

Dificilmente os quadrinhos policiais defendem os ricos, isso é fato. No entanto atribuem suas atividades à algum individualismo safado. Então existem ricos maus e não riqueza que provoca danos sociais.

Mesmo assim a composição dos personagens não deixa de ser fonte para uma boa pesquisa sobre as atividades dessa gente. Adoro isso, cá entre nós. E falta essa orientação em outras mídias mais à esquerda.

Sei que falo muito disso, caro seguidor (detesto esse termo), porém convenhamos, que losna é essa de mídia que não se propõe a criar produtos culturais de esquerda com uma linguagem mais acessível?

A QUE NÃO QUER SE ACESSÍVEL

Seja de esquerda liberal ou de direita.

Se gostou desse texto, 50 palmas serão bem-vindas e agradecidas.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).