KATE [FILME] (2021):

Sombrionauta
4 min readSep 21, 2021

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O abismo puro deseja dançar.

O público feminino de filmes de ação tem reivindicado filmes de ação que se adequassem às suas próprias concepções de mundo, com protagonistas mulheres que não fossem apenas meras “mulheres fingindo ser homens”. Não tem sido essa uma empreitada com muito sucesso.

Entendamos: todas as formas narrativas são limitadas em termos e conteúdo; a linguagem é efeito realidade, logo ela não tem a capacidade de se expressar além do que aquela materialidade permite, sem cair em alguma forma de escapismo inverossímil sendo SUCKER PUNCH (2011) uma grande amostra desse tipo de erro.

ESSE FILME QUE RESENHO É UMA EXCEÇÃO.

Vejamos porquê.

Filmes como THE OLD GUARD (2020) e AVA (2020) caem na armadilha acima, em que assistimos e pensamos que nada ali consegue transmitir a impressão de que o protagonista tem de ser do sexo feminino: o segundo até tem cenas assim, mas são basicamente reciclagem da ideia de femme fatale com mais cenas de ação.

Isso porque esse tipo de filme para adolescentes tem como premissa fazer seu protagonista amadurecer, e, por conseguinte, mostrar a seu público uma fruição e um caminho para isso.

Esse talvez seja o motivo de THE OLD GUARD (2020) ter dado errado: difícil crer em imortais que imaturos, apesar de terem vivido por séculos: mesmo em HiGHLANDER (1986), Connor MacLeod (Christopher Lambert) mostra sinais de envelhecimento mental no decorrer do filme, e, entendemos que ele é solitário, mas não imaturo.

Porque envelhecer é ter mais experiência, e amadurecer, se resume em perceber que não se tem tampo tempo assim a se dedicar a algo que você ama: logo, esse processo é mais qualitativo do que quantitativo.

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Envelhecer também é, ver seu corpo falhar e sua mente ficar cada vez mais lúcida: toda a premissa de Frank Miller (1957) em O CAVALEIRO DAS TREVAS [QUADRINHO] (1986) está resumida na frase anterior.

Nos filmes de ação é apresentado o amadurecimento masculino, de maneira conservadora na maioria das vezes, que se dá pela violência dedicada a proteger/vingar/ se redimir outro ser que não pode exercer a violência (procure o significado da palavra “inocente”), por não estar apto a executá-la naquele momento.

Geralmente esse tipo de ser é uma menina, mas pode ser um cachorro: a franquia JOHN WICK (214–2019) está aí para provar que o conceito se encaixa bem em vários formatos, e o conservadorismo é mais elástico que se pensa, desde que se entenda qual é sua base e os limites dela.

Resumindo, poderia dar quatro regras básicas (não precisam estar todas na produção) para se fazer um filme de ação que possa dar certo:

1. O PROTAGONISTA DEVER SER CAPAZ DE SER VIOLENTO, OU NOS SER SUGERIDO QUE ELE POSSA VIR A SER.

2. ELE TEM DE TER UMA AVASSALADORA CULPA, ADVINDA DE SUA CAPACIDADE/POTENCIALIDADE PARA A VIOLÊNCIA.

3. TEM DE TER ALGUÉM QUE É O DUPLO DE ALGUMA PESSOA QUE ELE MATOU/FERIU/SACRIFICOU: PODE SER UM INTERESSE AMOROSO, CONTUDO, ELE DEVE TER UMA RELAÇÃO DE FIDELIDADE, E NÃO DE AMORES CARNAIS: FILHOS, ESPOSA E NAMORADA, SIM, AMANTE E AMIGOS, NÃO.

4. O PROTAGONISTA DEVE SER FERIDO O TEMPO TODO, OU SOFRER DE UMA DECADÊNCIA FÍSICA NO DECORRER, COMO FORMA DE EXPURGAÇÃO DE SEUS ERROS/PECADOS.

Esse maravilhoso filme faz isso tudo, e isso é ruim.

A protagonista Kate (Mary Elizabeth Winstead/ agora sim, uma personagem digna do papel de Caçadora, e que foi mal utilizada em Birds of Prey (2020)), uma assassina que foi treinada desde criança por Varrick (Woody Harrelson), fica traumatizada ao assassinar um mafioso Yakuza, perante sua filha e de seu avô, resolvendo assim, deixar essa ocupação.

No entanto, semelhante ao que acontece no excelente thriller MORTO AO CHEGAR (1988, que por sua vez é um remake de um filme de mesmo nome de 1949), ela é envenenada de maneira inequívoca e impossível de ser curada: Kate então passa o resto do filme em busca de seu futuro assassino.

LEIA OS DOIS PARÁGRAFOS ANTERIORES E VEJA SE ESSA SINOPSE NÃO SE ENCAIXA NAS QUATRO PREMISSAS ACIMA.

Porém há um problema: Cathy Yan, diretora de Bird of Prey não errou ao fazer a Caçadora confusa e tola, porque ela acertadamente percebeu a Regra 5 desses filmes, que é radicalmente contra o feminismo.

QUE REGRA 05?

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5. MULHERES TÊM ÚTERO (SÃO TIDAS COMO MÃES) ATÉ QUANDO NÃO PARIRAM.

No decorrer do filme Kate passa a ser tomada por um “instinto materno” ao proteger Ani (Miku Martineau) a filha de sua vítima Yakuza: assim ela passa por todo um processo de maternidade, compartilhado com a menina, que é bonito, verossímil e descaradamente conservador no nível máximo possível.

Ainda não é dessa vez que teremos outra SÉRIE MILLENIUM (2009, porque não adianta que o último eu não considero uma continuação, no máximo uma versão), em que uma mulher é apresentada num triller, sem necessitar tem um homem como interesse amoroso, ou, ser apresentada a maternidade compulsória (estou falando da sueca, que a americana já cai fácil para a regra 4).

E o pior: esse filme quase passa no teste de Beckdel.

Contudo é um começo divertido: a cena da invasão do prédio da Yakuza vai você fazer se lembrar da sua mãe e o jeito que ela marchava, buscando justiça, quando alguém falava mal de você na escola, ou te batia sem um motivo que ela considerasse válido:

COMO ALGO QUE INSPIRA COMPAIXÃO E MEDO, COMO KALI, TIAMAT, TELMUT, TEMIS, TEHOM E KUAN HIN PROVOCAM; O ABISMO QUE NIETZSCHE (1844–1900)OLHOU E ENLOUQUECEU.

SE APRECIOU, 50 PALMINHAS SERÃO BEM-VINDAS.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).