DIABINHO E OUTRAS PEÇAS CURTAS [PEÇA] ( 15/04/2022 a 05/06/2022):

Sombrionauta
8 min readMay 4, 2022

--

Kitsch Deidade.

Ouça esse conteúdo no spotify, caso esteja em um celular, ou clique no link abaixo, caso esteja num computador:

Devo estar em uma crise feia com os ingleses, o teatro e a pós-modernidade. Ou não. Depende do referencial de leitura. Sei lá. Bom, o que importa é que estava andando pela paulista e passando em frente ao MASP (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (1947), aquele museu com nome de elitista que se dizia indígena), e soube que havia uma peça sendo encenada ali, no teatro da instituição, que eu nem sabia que existia.

BOM, A GENTE NÃO SABE DIREITO ONDE DIABOS O TEATRO ACONTECE NESSA CIDADE, ALÉM DE OUTROS EVENTOS QUASE GRATUITOS. AGORA SABER DOS PLANOS SECRETOS DOS COMUNISTAS ATEUS É COISA CHEGA FÁCIL NAS NOSSAS REDES SOCIAIS…

Quase gratuito, porque com uma pequena contribuição PIX para a ONG BANCO DE ALIMENTOS (1998) de R$ 5,00 ou um quilo de alimento (ah, como a vida (elitista) imita a arte (periférica)), você pode acessar essa apresentação composta de 04 peças curtas muito boas da autora inglesa Caryl Churchill (1938).

Acho muito interessante a pós-modernidade e seus autores, porque eles tentam nos passar temas clássicos usando novas roupagens e tecnologias. Essas tecnologias não estão centradas em nossos aparelhos informáticos, e sim, nas formas de sentir e de transmitir tais conteúdos.

[SIGA LENDO A PARTIR DAQUI SE VOCÊ VEIO DO INSTAGRAM]

NADA MAIS INOVADOR DO QUE SER RETRÔ MINIMALISTA, NA ESTÉTICA PÓS-MODERNA. [https://sombrionauta.medium.com/a-trag%C3%A9dia-de-macbeth-filme-2021-f484b19260f6 ]

Porque essa estética usa referências truncadas como forma de que seu espectador se sinta inteligente em ler a cultura mais conservadora possível, de maneira fragmentada: algo como pessoas fascinadas em ver vídeos de gente resolvendo cubos mágicos.

Assim, naquela deliciosa arquitetura brutalista (que tende a revelar as estruturas como fiações e concreto armado, de maneira proposital) temos o minimalista mostrando brilhantemente o tradicional ocidentalismo.

As pessoas que me atenderam foram bastante simpáticas, embora tenha sido um pouco difícil achar nossos lugares, uma vez que parece que houve um erro de impressão dos ingressos, logo tudo ficou um tanto aleatório em temos do lugar do espectador: bom, o aleatório é prática do caótico, e o bagunçado do kitsch, logo fiquei me perguntado se era parte da performance, ou coisa fortuita mesma.

PELO QUE VI ERA A SORTE, RUIM, ACONTECENDO.

A montagem é composta pela apresentação de quatro textos de Caryl Churchill, uma autora inglesa que prima, pelo que entendi, por uma estética feminista fortemente influenciada pelo acusado de pedofilia colonial Michel Foucault (1926–1984): logo acho que ela é um tanto liberal, mas muito boa em se manter em uma dessas áreas cinzas onde não sabemos bem se ela é de esquerda ou de direita.

BOM, ACABEI DE DEFINIR OS ATUAIS LIBERAIS.

Sigamos.

Não sei qual foi o pré-requisito de escolha, mas não vi grandes temas feministas ali, porém percebi que era uma releitura de vários temas clássicos do pensamento ocidental, não circunscritos ao pensamento inglês.

Talvez a primeira peça, “VIDRO” seja a com maior ligação com o que conheço dessas pautas feministas, ao mostrar como uma garota, aparentemente feita de vidro (pode ser alguma doença degenerativa de nascença?) vem a se tornar uma espécie de objeto de adorno para sua família, e de beleza e apoio para homens fracos ou violentos.

Achei essa discussão muito boa: nem todos os homens englobam as duas qualidades que citei acima, contudo, ambos os tipos tendem a usar mulheres frágeis como base de apoio para chegarem aos seus objetivos.

E AZAR DELAS, QUANDO ESTES HOMENS OS ALCANÇAM.

Então é um belo conto de como o amor por homens (como espécie, ou gênero, não sei), tende a ser sempre inferior ao amor-próprio que devemos cultivar (agora falo de toda a espécie humana).

Tudo é que é frágil, nesse contexto, é algo a ser endeusado, protegido, logo, que nos anima a ser violentos para conosco e para com os outros: todos os monstros justificam suas ações torpes por meio de protegem os delicados, ou, indefesos: lembre-se disso na próxima vez que for a julgamento e lhe tirarem um papel de interpretação em uma franquia da Disney (1923).

A segunda peça “MATAR”, tem relação com isso.

NÃO COM A DISNEY E NEM MESMO COM A WARNER, POR FAVOR.

Mas sim com a ideia de sacrifício aos deuses: monólogo poderoso, apoiado por um cenário muito bom, justamente por ele ser profundamente minimalista: os objetos ali estão para citar conceitos, como poder, prisão e ordem (resumindo, uma caixa, por exemplo).

Ali a atriz/deusa/imago, sei lá, invoca os deuses (gregos e romanos…) que não existem (palavras dela, não minhas) para justificar todos os atos de violência dos humanos: em nome da vingança pelas vítimas da injustiça, ou seja, pelos indefesos, os outrora indefesos irão criar mais vítimas e se tornarem monstros.

POR TRÁS DE UM MONSTRO SEMPRE HÁ UMA VÍTIMA, E MONSTROS SEMPRE DEIXAM SOBREVIVENTES DE SEUS ATOS.

Assim ,todos têm as justificativas factuais necessárias para machucar os homens (espécie): não procure o certo, onde está o justo, porque ele nem sempre coincidem, como diria Amanda Waller.

É um texto poderoso, que não cita nomes, mas que se você conhece o mínimo da mitologia greco-romana clássica reconhece.

No decorrer da fala da imago, sabemos como os deuses manipulam a humanidade.

MAS ELES NÃO EXISTEM, LOGO, SABEMOS QUEM NA VERDADE ESTÁ ANIMANDO AS MÃOS DESSES ASSASSINXS JUSTICEIRXS.

Somo todos culpados, de algo, sempre, em alguma situação. Seja como atores ou como espectadores.

Esse é o mote da terceira peça curta, “BARBA AZUL”: um grupo de pessoas (de ambas as sexualidades) debatem os crimes de seu querido amigo Barba Azul, alguém sedutor, engraçado e que matou algumas mulheres, mais do que duas e menos que cem: vão ver a peça e descubram o número exato.

A narrativa nos faz percebe que há algo de perverso em gente passiva, que não quer dizer pacífica; aqueles que discute crimes e assassinatos de mulheres, algo como acompanhar aqueles sites que narram crimes: existe um prazer medonho em saber os detalhes de gente massacrada.

TALVEZ ISSO EXPLIQUE PORQUE ATUALMENTE O VELHO TESTAMENTO BÍBLICO FAÇA TANTO SUCESSO.

Aqui é que percebemos o que é estar em um espetáculo pós moderno: o tema dos feminicídios é aqui relativizado, porque ele sempre esteve entre nós, em nossa cultura humana. Em nosso tempo é que as feministas, radicais, mostraram o quão baixo é nosso prazer em discutir as mulheres massacradas e agredidas.

Nossa cultura clássica, tradicional e de bem, sempre se deliciou, alegando “nos educar”, em publicar, republicar, filmar, fazer memes, piadas, quadrinhos (procure um texto chamado “mulheres na geladeira” por sua conta e risco), a morte e tortura de mulheres. [ https://deliriumnerd.com/2018/04/06/mulheres-na-geladeira-tropo/ ]

NÃO A DE HOMENS, ESSES A GENTE CHAMA DE HERÓIS.

Bom, esse tipo de pessoa é para isso mesmo, assim como nacionalistas soldados: motivos para as pessoas se tornarem monstros como eles, para que eles mesmos não existam mais…

SE PERCEBERAM ALGO ERRADO NO PARÁGRAFO ACIMA, PARABENS, JÁ PODEM SER GENERAIS DE NAÇÕES COLONIALISTAS (SE APROVAREM) OU COMUNISTAS (PRECISO DIZER MESMO O PORQUÊ AQUI?).

Portanto, a peça é cheia de falsos becos sem saídas, cujo túneis de fuga são os lugares-comuns mais elitistas possíveis.

Em nome da denúncia, vem o massacre recreativo: para saber se você está nesse quesito, basta se perguntar quantas vezes se arriscou a ter ferimentos físicos ao defender uma pessoa que julgou estar em perigo (não conta debate na internet, por favor).

Essa falha, esse prazer industrial pelos milhões de pequenas carnificinas que criam a grandiosidade do poder, distribuído por meio dos nossos meios de comunicação de massa, quase como se fossem safras de vinhos é muito bem apresentado na última peça “DIABINHO”.

Nessa ultima narrativa, um dos mitos mais ocidentais possíveis é apresentado: o de ter um diabinho na garrafa; eu sei que você caro cidadão temente ao deus Irmão-Capitalismo acha que é coisa de caipira pobre pé-de-barro, descendente de índios que você agride e joga para fora de seu Uber, mas em verdade é um mito cristão chamado de Famaliá.

Quem acredita nesse tipo de coisa atribui a São Cipriano (250–304, um daqueles bruxos que descobriu que se converter ao deus cristão lhe daria mais poder para cometer maldades, perdão, levar a palavra aos pecadores) : basicamente é aprisionar um Cramunhão, que apesar do nome é um pequeno ser diabólico, o qual atende aos desejos de seu amo… ou ama.

Contudo, aqueles que conhecem bem esse tipo de coisa logo percebem que na verdade isso é possivelmente inspirado nos espíritos lares, provavelmente os penates, romanos: você tem uma versão deles, e chama de Fido, Rex, Mimi, ou qualquer nome que dê a um pequeno ser que vive na sua casa e serve para lhe defender ou lhe dar afeto em troca de comida.

Na peça, dois casais, um de idosos primos que vivem juntos, e outro, da sobrinha destes e um pai habitante de rua, estão às voltas com seus próprios dramas e desejos, que se resumem a torturar uns aos outros basicamente porque se amam.

AMAR NÃO É PERDOAR, E SE VOCÊ CONDICIONA O SEU PERDÃO A ISSO, DEVERIA LER OU OUVIR DE NOVO O PARÁGRAFO EM QUE CITO A AMANDA WALLER.

Esse tipo de coisa é bastante referencial, mas também auto referencial: a pós modernidade tende a nos confundir bastante nessas infinitas e limitadoras insinuações, nos fazendo acreditar que por termos bom conhecimento geral sobre o poder, além de termos algumas coincidências em nossos foros íntimos com pessoas que o exercem, que nós também podemos exercê-lo.

TOLICE: PODER É ORGANIZAR PESSOAS, E ISSO SIGNIFICA SE ORGANIZAR PARA QUE NINGUÉM LHE ORGANIZE PRIMEIRO, COMO BEM DISSE O QUERIDO WILLIAM BLAKE (1757–1827).

Assim o medo de punir quem se ama, e a necessidade de fazer justiça ao que se ama, se fundem nessa pequena história, cujo final é …

VAI LÁ VER A PEÇA, PICARETA QUE ADIANTA FILME NAS PLATAFORMAS DE STREAMING.

Finalmente tenho a dizer que foi uma apresentação muito eficiente e eficaz, sobretudo dos atores mais velhos, Noemi Marinho (1953) Norival Rizzo (1952), eles são tão rabugentos, briguentos, irritantes, doces, letais e adoráveis, que é difícil você não lembrar dos seus pais.

PERDÃO, TENDO A ACHAR QUE MEUS PAIS SÃO DEUSES ROMANOS.

Enfim, confiram: as apresentações são dos dias 15/04/2022 a 05/06/2022.

Enfim, dois, também é uma boa introdução ao pensamento do poder tornado místico, pelo pensamento ocidental, se você é adulto e não sabia para que diabos servia aprender sobre os deuses gregos nas aulas de arte e filosofia.

[SIGA LENDO A PARTIR DAQUI SE VOCÊ VEIO DE OUTRAS PLATAFORMAS]

SPOILER: PARA O NADA, COMO DIRIA O PROFESSOR DE HISTORIA.

Tudo ali nos mostra que a brutalidade é apenas disfarçada pelo verniz da cultura: seguindo esse raciocínio, procuramos sentidos além-mundo para coisas materiais.

Precisamos disso, logo fazemos se podemos.

Se não podemos, esperamos o momento de poder.

Esse poder é que deveríamos nos questionar: poder ser tudo é impossível porque se isso fosse verdade nada seria concreto.

Por trás de toda a glória das imagens, está o concreto armado das necessidades sólidas. Mudar o mundo não é mudar de gostos, e sim, de necessidades.

Tal é esse nosso problema, mudar para não necessitar mais daquilo que julgamos, arbitrariamente e coletivamente, ser passível de superação.

Superar para se tornar autônomo em harmonia com os outros humanos, sem ferí-los desnecessariamente. Que sonho tolo, que desejo fútil, esse meu.

E, PORTANTO, UMA TENTAÇÃO IRRESISTÍVEL À MINHA ARTE, MEU OFÍCIO E MINHA ARROGÂNCIA.

Se gostou desse texto, 50 palmas serão bem-vindas e agradecidas.

--

--

Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).