A TRAGÉDIA DE MACBETH [FILME] (2021):

Sombrionauta
7 min readApr 29, 2022

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Os Obscurecidos.

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Clássicos são obras de arte que trabalham com refrãos culturais. Significa que eles invocam e apresentam discussões que ainda não foram superadas sobre determinados temas ligados as ações humanas. Como essas dinâmicas ainda estão presentes, volte e meia, é necessário revisitar as primeiras obras que os pensaram, justamente para que seja possível entender como as sociedades vieram a discuti-los e como.

Itálo Calvino (1923–1985) sintetizaria o parágrafo dizendo que os clássicos nunca são lidos, e sim relidos: uma obra clássica, quando alcança esse status, já atingiu os leitores das novas gerações, por meios indiretos, antes mesmo de que eles tenham feito uma leitura pessoal da mesma.

Assim somos influenciados esteticamente pela “sombra” da obra, suas diversas interpretações, antes mesmo de lê-la.

Essa noção pré-renascentista e ao mesmo tempo quase pós-moderna, a de que criatividade não existe integralmente, e que ao mesmo tempo ela pode derivar de uma leitura atual sobre um escrito do passado norteia os clássicos: uma nova leitura revela para quem lê o passado um novo tipo de interpretação.

Logo, o passado é passível de ser sempre novo, se apresentado por novos olhos, por novas formas e isso fragiliza a ideia de história como evolução inevitável e lógica.

A história então não seria assim racional. Seria uma irracionalidade, porque é diversa e não única. Não quer dizer que ela é aleatória, e sim, multifacetada.

Quando assisti essa versão da peça MACBETH (1603 ou 1607), me vi perante uma visão muito pós-moderna sobre a questão do poder, mas também do amor de um casal.

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Eu já assisti várias filmografias sobre essa peça, e ainda não consegui vê-la no teatro encenada: uma grande falha em minha formação, ou não.

Porque assistir à uma encenação não me trará grande conhecimento sobre a obra, mas sim, sobre como os atores e diretores entenderam a obra. Eu a conheço bem, e particularmente fico admirado como a ideia de destino, ou de desejar ter um destino, molda o caráter de um homem.

Mas fico ainda mais admirado como uma mulher, a esposa, molda o caráter de um casal.

Se pensarmos, um casal, oficializado ou não pelas questões jurídicas, é uma instituição que pretende um projeto de reprodução e re-produção de si mesmos: tendem a produzir filhos, mão-de-obra ou elite, e também nessa produção alterar partes de si mesmos visando cumprir uma melhora desse projeto.

Aí está o grande interesse deles em se manterem atualizados com seus objetivos, justamente para irem se alterando constantemente, pensando em outras versões do que podem ou poderiam ser, se fossem mais jovens.

Tudo isso está fadado (ênfase nessa palavra) ao fracasso, mesmo se tiver sucesso: nunca o ideal corresponde ao concreto completamente, mas a ação que criou esse produto falho sempre é perfeita: a última palavra quer dizer grosseiramente “foi feito”, “é fato”.

Nesta linha de pensamento, vemos que a tragédia de Macbeth é em verdade uma apresentação de um glorioso fracasso: Lord Macbeth (Denzel Washington) tem a revelação terrível que será o rei da Escócia, por meio das três bruxas do destino, a jovem, a mãe, e a velha (Kathryn Hunter).

Ao escrever à sua esposa sobre tal revelação, Lady Macbeth (Frances McDormand), ela passa a nutrir pelo marido um novo tipo de amor, a paixão por alguém que pode ser mal (potente) para ter o poder, paixão que existe nela mesma, e que pode ser enfim expressa.

Lady Macbeth se re-apaixona pela ambição que ela tem e verifica existir em Lord Macbeth.

Seu monólogo invocando às forças diabólicas vontade para apoiar o marido em todos os feitos vis para que juntos eles alcancem seu objetivo é algo assustador e ao mesmo tempo atraente.

SE UMA MULHER FALASSE AQUILO PENSANDO EM MIM, OU EU FUGIA, OU CASAVA COM ELA NA HORA.

Essa noção de se apaixonar pelo pior de si, a mais bela e correta das paixões se você acredita em amor próprio, é o fracasso sendo gestado, o que é uma especialidade e marca das obras dos irmãos Joel (1954) e Ethan Coen (1957). Aqui o diretor e escritor apenas foi o primeiro.

Todo filme nos mostra, com pobreza de detalhes de cenário, mas com grandes imagens (é isso que o pessoal chama hoje de minimalismo), o que importa de verdade: a paixão pela autodestruição, a entrega de si à loucura, a potência de quem entra em decadência e o preço disso.

Nosso Lord é de uma perversidade e ao mesmo tempo dignidade que o torna demasiado humano; forte demais para ser aceito, fraco demais para se aceitar. Nesse momento vemos como Denzel Washington é um brilhante mensageiro do poder de quem será inevitavelmente derrotado, ou seja, do desespero honesto e forte.

QUANDO MACBETH EM SEU CASTELO FALA COM AS BRUXAS , IMAGINO QUE SUA VOZ E ROSTO SERIAM ANÁLOGAS AS DE LÚCIFER ESTRELA DA MANHÃ CASO ESTIVESSE CONVERSANDO LIVREMENTE COM SEU PAI, O DEUS CRISTÃO.

A representação das Três bruxas, como decrépitas, horríveis, em posições corporais que lembram gente com profundas deformações físicas, são impressionantemente belas: a fotografia que mostra sua tríade me deixou fascinado, suas invocações e percepções seriam aterrorizantes se me fossem mostradas pessoalmente, mas como espetáculo é uma obra prima de como o desejo conversa com quem deseja.

Todavia, fiquei ainda mais admirado por Lady Macbeth : que mulher má, perversa, bela em aceitar a vitória ou a destruição de si, entendendo que o que o “ou” que citei anteriormente é inevitavelmente um “e”.

ESSE É O TIPO DE MULHER QUE LHE CONVIDA A TENTAREM TOMAR JUNTOS O TRONO DO PRÓPRIO INFERNO. E O CÉU? O CÉU NÃO IMPORTA, É UM LOCAL DE GENTE DEMASIADA APAIXONADA EM PERDER SUAS PAIXÕES. QUEM GOSTARIA DE GOVERNA UM LOCAL TÃO ESTÉRIL?

Frances McDormand é uma das grandes atrizes de nosso tempo: tudo que é bom é sentido nela de maneira tão morta e apodrecida, quanto crer na bondade sem interesse próprio: sua interpretação de Lady Macbeth faz o personagem atingir o seu auge.

A montagem em preto e branco, sintética e fria, a meu ver deveria ser a nova estética dos filmes de terror: o mais sedutor dos medos é o medo de si.

E O MEDO DE SI SE CHAMA DESEJO: SENDO BEM PRETO NO BRANCO.

Em alguns momentos eu fiquei impressionado como as pessoas e as sombras de fundiam sendo elas mesmas passíveis de serem quase entidades.

Exemplo disso é a cena em que Macduff (Corey Hawkins) chega ao castelo do regicida Lord Macbeth: toda a cena é de uma iluminação que beira o amadorismo proposital em dialética com o quarto escuro em que Lord Macbeth está: a luz é tão forte que deixa o quarto ainda mais escuro, e mesmo assim conseguimos notar a silhueta sombria do personagem assassino.

ELE É SOMBRA QUE QUANTO MAIS ILUMINADA É, MAIS ESCURA SE TORNA.

Não há claridade celestial suficiente para anular a escuridão de Lord Macbeth.

NESSE SENTIDO ESCOLHER UM NEGRO COMO PROTAGONISTA É EVIDENCIAR O MEDO QUE A SOCIEDADE TEM DESSE TIPO DE GENTE.

A obra trabalha então com esse constante jogo de luzes, de intenções, de paixões, que não precisam ser sexualizadas, porque são evidentemente humanas: nós somos seres que desejam se reproduzir e se re-produzir o tempo todo.

O SEXO COREOGRAFADO E PUBLICIZADO POR NOSSO MEIOS DE COMUNICAÇÃO DE MASSA É APENAS MEDO DE SE REPRODUZIR DE FATO.

Nesse sentido devemos dar parabéns a Bruno Delbonnel (1957), o diretor de fotografia, esse homem formado em filosofia. A fotografia do filme evoca o que é de pior no ser humano, sem tentar ser gore.

PARA QUE SANGUE E TRIPAS, SE O CORAÇÃO OBSCURO DA HUMANIDADE É APENAS METAFÓRICO E MESMO ASSIM CAPAZ DE AFETAR O REAL?

Assim, Lord Macbeth deve ser destruído porque ele é o profano que assumiu o sagrado. O diabólico com uma carta de passagem ao poder assinada pela mão do próprio deus.

ELE É O ERRO DE DEUS APOIADO PELO AMOR HONESTO DE SUA ESPOSA CUJOS SEIOS TEM APENAS LÍQUIDO NEGRO PARA NUTRIR, NÃO A VIDA DO INFANTE INOCENTE, MAS SIM, DE UM ASSASSINO CONVICTO DE SUA PRÓPRIA DIVINDADE.

Homens devem derrota-lo, porque só paixões conseguem detê-lo. E homens como Lord Macbeth sempre produzem vítimas apaixonadas o suficiente para tal feito.

Enfim, é uma montagem que impressiona ao mostrar como a falha é bela, como o poder é efêmero, como o amor verdadeiro não é aquele que traz a redenção, e sim, o que corrompe.

E SÓ OS GRANDES FEITOS VIS CRIAM O AMOR MAIS CORRUPTO.

Já se apaixonou hoje, cara pessoa que acompanhou esse texto? Já se sentiu amado?

JÁ SE SENTIU CORRUPTO E ACEITOU ISSO HONESTAMENTE?

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É uma das coisa mais incríveis essa peça ter sido inspirada em um rei real Mac Bethad mac Findláich, ou Maelbeatha (1005–1057): William Shakespeare (1564–1616) se baseou nessa história real da ascensão e queda desse homem para fazer um exame do que ele julgava ser o pensamento da realeza e da nobreza.

Uma coisa bem interessante, essa marca inglesa do autor, a de usar a história factual para um exame filosófico das intenções humanos, de suas paixões, que no fundo é o que interessava às pessoas que eram seu público, ou seja, geralmente os pobres.

A política para quem é pobre sempre dever ser apresentada pelas paixões: abstrações demais são coisas de quem observa a vida, inclusive a própria, à uma distância segura.

Sendo assim, desconfio que nossa dramaturgia, com exceção do profano celestial Nelson Rodrigues (1912–1980) padece do mal de não ser perversa o suficiente para se olhar no espelho.

MAS O QUE ESPERAR DE GENTE QUE OBSERVAVA DE SEUS CASARÕES OS NEGROS COLHEREM SUA RIQUEZA?

Se gostou desse texto, 50 palmas serão bem-vindas e agradecidas.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).