BETTER CALL SAUL — 6ª TEMPORADA [SÉRIE]- (2022):

Sombrionauta
5 min readAug 20, 2022

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À esquerda de Albuquerque.

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O Cinema estadunidense de alto nível tem em uma de suas tônicas discutir o socialismo americano proletário.

É SÉRIO.

Mas ele apresenta sempre esse socialismo sobre o viés do lumpemproletariado. As produções sempre recrutam atores terríveis que tem a noção, cínica e, portanto, consciente, que estão lá para representar o que seriam se não estivessem no cinema, ou seja um bando do losers (perdedores): gente condenada a ser sempre condenada.

Filmes nesse sentido são: COMO ERA VERDE O MEU VALE (1941), VIVA ZAPATA! (1952), SINDICATO DE LADRÕES (1954), AMOR SUBLIME AMOR (1961),CHINATOWN (1974), UM ESTRANHO NO NINHO (1975), ROCKY: UM LUTADOR (1976), F.I.S.T. (1978), TOURO INDOMÁVEL (1980), GANGUES DE NOVA YORK (2002), e toda a filmografia (1984–2021) dos IRMÃOS COEN (1954/1957).

Muitos dos atores que representam os protagonistas trabalhadores, em suas vidas reais, são bêbados, estupradores, abusadores, espancadores de mulheres e viciados. Me pergunto o quanto o dinheiro os tornou assim ou apenas lhes deu a oportunidade de serem assim.

Essa oposição entre os winners (vencedores) e os perdedores é constante na sociedade estadunidense e se estende desde o cinema até os textos de gestão empresarial ], sendo também tema dos best-sellers de auto-ajuda.

Mas o cerne dessa conceituação é que ser um perdedor é uma opção, uma escolha.

BETTER CALL SAUL aplica esse conceito com maestria, porém o trapaceia.

MAS O QUE ESPERAR DE SAUL GOODMAN?

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Eu comecei a assistir essa série porque me falaram que o ALAN MOORE (1953) gostava dela, eu confesso. E sempre achei que era uma produção sobre proletários espertos.

Nessa temporada final somos apresentados a derrocada de Saul Goodman /”Jimmy” McGill (Bob Odenkirk), coisa que já sabíamos que iria acontecer. A graça toda da temporada é descobrirmos como isso se deu.

Desde BREAKING BAD (2008–2013) sabíamos dessa queda, de como as forças que se opõe a Goodman eram mais poderosas que ele, e que mesmo assim nosso querido trapaceiro nunca desistiu de tentar superá-las.

NEM MESMO QUANDO SE RENDE, APARENTEMENTE.

Durante toda a temporada somos apresentados aos personagens contidos na cidade de Albuquerque, local que o Pernalonga tenta chegar e que sempre erra a direção à esquerda e vai parar no México, no Himalaia, na Escócia e até na Alemanha Nazista, se não me engano.

Aliás, tem alguém mais loser do que o Pernalonga? Tem: o Patolino, e para mim essa série é o que aconteceria se fizessem um live-action do maldito pato preto.

Seguindo.

Todos os personagens, todos, dessa temporada precisam um momento ou outro de Goodman para realizar seus sonhos e planos: como disse no meu texto sobre as outras temporadas, ele é o óleo negro que faz as engrenagens da sociedade capitalista funcionar.

E ELE TEM CONSCIÊNCIA DISSO.

Então demonstra constantemente sua astúcia enquanto enfrenta gente mais violenta e cruel do que ele, apenas com sua lábia e seu conhecimento, reconheçamos, enciclopédico do Direito.

Essa é uma marca dos personagens desse universo: todos eles são dedicados trabalhadores, tentam estudar o máximo possível, mas por algum motivo foram tomados por alguém, trapaceados, e enganados e agora não buscam redenção, mas apenas serem um pouco melhores para as pessoas que amam.

NACHO VARGA (MICHAL MANDO) É EXEMPLO DISSO.

Contudo Mike Ehrnabtraut (Jonanthan Banks) talvez seja um dos personagens que eu mais aprecie : ele é um homem destruído, que se recusa a morrer, mas não faz muita questão de viver.

Competente, brilhante, dedicado e bom chefe, ele tenta fazer com que o ambiente de trabalho onde está seja funcional. Apesar de ser letal, ele não vê motivo para o ser de maneira inútil.

SE TODO O CHEFE FOSSE ASSIM, O CAPITALISMO JÁ TINHA VINAGRADO.

Todos os personagens dessa série e de seu original são assim; competentes, profissionais e infelizes, porque não são reconhecidos: o amor, e nem mesmo a riqueza não os fazem plenos, sendo que preferem sim serem apenas vistos como portadores de excelência em seus trabalhos e funções.

SE ISSO NÃO É SOCIALISMO PROLETÁRIO, NÃO SEI MAIS O QUE É.

E o catalisador disso é Goodman: como ele não é de confiança, e imprevisível, no entanto, por não gostar de parecer incompetente, é alguém que queremos sempre lutando por nossas causas.

TENHO UM AMIGO MUITO QUERIDO QUE É ASSIM.

LÁ VEM SPOILER.

Goodman mesmo em seu disfarce como gerente de lanchonete, ele trabalha duro, e quando é preso, antes de pensar em sua liberdade, liga para onde trabalha a fim orientar suas trabalhadoras do que devem fazer.

MESMO NA PRISÃO VEMOS QUE ELE SE DEDICA COM AFINCO A SUA FUNÇÃO DE PADEIRO.

A triste realidade é que Goodman é mesmo um bom homem trabalhador injustiçado.

FIM DE SPOILER.

Contudo, como é uma produção sobre perdedores estadunidenses, ela sempre tem uma marca de inocência, uma mulher Kim Wexler (Rhea Seehorn). Ela é o ponto fraco verdadeiro de Goodman, mas não é sua força.

Aqui está a maestria do uso do conceito de loser nessa série.

Wexler abandona Goodman não porque não o ama, mas simplesmente porque ela teme o quanto se sente livre com ele, e essa liberdade inevitavelmente os leva a machucarem e ferirem a quem está a seu redor.

Sua consciência a levará decisivamente a se separar de Goodman, mas a forçará a nunca o abandonar. E isso vai conduzi-la ao Direito novamente de maneira inevitável.

Esse é o grande golpe de Goodman: mesmo aprisionado ele conseguiu uma coisa que sempre quis, e não, não foi ele ter derrotado todos os que o subestimaram, de ter vencido o FBI (1908), o sistema jurídico estadunidense, o tráfico ou tantas outras coisas.

Ele conseguiu alguém que vê sua competência.

MAS NÃO É SÓ WEXLER.

À chegada dele à prisão, o reconhecimento dos prisioneiros, a admiração que sentem por ele: mesmo aprisionado, McGill consegue finalmente o que sempre quis: ser visto por suas obras e não por ele mesmo, o que todo o empregado deseja.

No final ele não precisa ser mais Goodman: essa persona já não é mais necessária. Ele escolheu perder, ser um loser, porque percebeu que todos os valores que as pessoas com poder tinham lhe mostrado não se mostraram eficientes em termos de satisfação nem para eles. Tudo o que precisavam era de alguém que acreditasse nos próprios.

Wexler volta a acreditar nele, no momento de sua fantástica e proposital escolha em ser derrotado. Vencer é fácil e esperado, perder, para conseguir o que se deseja de fato, e coisa de loser, ou de proletário.

SAIBAM QUE A RIQUEZA É MUITO POBRE EM TERMOS DE DESEJO PESSOAL.

E para quem ficou triste com final, como eu fiquei, pensemos: acham mesmo que McGill e Wexler vão resistir muito tempo ao desafio de libertarem Saul Goodman?

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Assim Vince Gilligan (1967) continua a longa tradição do cinema proletário estadunidense, agora nas séries, com atores competentes e que não estão no padrão de beleza estadunidense e que até o momento que escrevo, não se envolveram em nenhum tipo de agressão a mulheres e outras pessoas.

Parece que as coisas estão melhorando nesse sentido, afinal.

Vemos então que o produtor continua sua longa jornada desde ARQUIVO X (1993–2018), mostrando toda uma série de personagens que não têm deus no coração e que só tem a perder suas próprias correntes.

Se apreciou, 50 palminhas serão bem-vindas.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).