RIPLEY — 1ª TEMPORADA [SÉRIE]- (2024):

Sombrionauta
10 min readApr 16, 2024

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RENASCIMENTO TENEBROSO.

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Introdução.

Tenho ultimamente me atormentado com três coisas: a utilidade da cultura, a crise que o Irmão Capitalismo tem apresentado e, finalmente, minha estranha atração por tecnologia advinda de gente que se aproveita física, mental e psicologicamente de outras pessoas.

Essas coisas não me “atormentam” exatamente: em verdade elas me deixam bastante curioso e estou em um profundo surto de criatividade de uns tempos para cá. É também um método clássico de sobrevivência de minha parentela e do tipo de gente que sou: ficar curioso com o próprio sofrimento ajuda a sobreviver a ele.

Essa postura, tida como sombria, ou seja, que tenta entender os sentimentos produzidos por esse tipo de método de sobrevivência nos levam a questionar quais as vivências análogas a ela e que assim provocam certo sentimento de compaixão e posteriormente de comunidade.

Já disse JOHN CONSTANTINE, O MAGO QUE RI, O HELLBLAZER, O TERRÍVEL SINDICALISTA PROFANO (1985): “SÓ UM CANALHA PODE PERDOAR OUTRO”.

MAS AFINAL, PARA QUE UM CANALHA CONVICTO PRECISARIA DISSO?

Seguindo.

Essa noção de que essa gente que vive em meio a “sombras de [tons] cinzas” precisa de perdão é um dos maiores mitos cristãos e criador de grande parte da fortuna da IGREJA CATÓLICA APOSTÓLICA ROMANA (380).

NESTA PRODUÇÃO O TENEBROSO TOM RIPLEY (ANDREW SCOTT, 1955) RETORNA PARA MAIS UMA VEZ REIVINDICAR SEU POSTO COMO UM DOS GRANDES PRÍNCIPES SOMBRIOS DA CULTURA CAPITALISTA.

E aí de qualquer iluminado que ficar em seu caminho.

Essa série é sobre isso.

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TRADUTOR SUPERADOR

Ripley é um fruto da cultura pop, sendo que em certa medida ele é o desdobramento de um personagem chamado TERROR NEGRO (1941), ou pelo menos de uma de suas roteiristas PATRÍCIA HIGHSMITH (1921–1995), um personagem que até mesmo ALAN MOORE (1952), já trabalhou, sendo ele uma espécie de versão farmacêutica do BATMAN (1939).

De qualquer forma Ripley, assim como BATMAN, parece ser baseado nos mesmos postulados artísticos do primeiro grande movimento cultural do Irmão Capitalismo, o RENASCIMENTO ITALIANO (XII — XVI).

Essa é uma das coisas menos abordadas quando se fala desse personagem, de que ele é uma recorrência relativamente nova na cultura mundial:

O TRAPACEIRO QUE NÃO É PUNIDO.

Em outras culturas tradicionais, como a nórdica, os trapaceiros, tais quais LOKI ODINSON, acabam sendo destruídos em suas missões de reorganização das forças produtivas e tecnologias correlatas.

SEMPRE OS TRAPACEIROS ACABAM TOMADOS PELAS CHAMAS QUE PRODUZEM.

Assim é com personagens tais como o diabólico HANNIBAL LECTER (1981), o malthusiano THANOS (1973), o ilegalista CORINGA (1940), e mesmo o AGENTE SMITH (1999) ou HEISENBERG — WALTER WHITE (2008) E SAUL GOODMAN (2009), junto com THOMAS SHELBY (2013): todos eles em verdade têm seus objetivos e metas de vida tomados por coletivos e por associações com outras pessoas que têm certo peso afetivo.

RIPLEY NÃO TEM ESSE DEFEITO.

Para ele a única coisa que importa é ele mesmo. Por isso mesmo muita gente atribuiu em suas críticas a essa sua nova versão que ele é um psicopata, um monstro danificado e insensível, que padece de alguma doença mental.

Eu aceitaria no máximo que Ripley é um sociopata.

Mas aí teríamos que verificar uma coisa muito interessante sobre sua criadora: ela mesma era fruto das novas sociabilidades que estão acometendo nossa sociedade atual, ou seja, a desintegração dos laços familiares. Segundo a própria, muito de sua escrita foi produzida a partir de seus traumas familiares combinados com vasto acesso à literatura.

E o grande trauma dela foi justamente não ter traumas do convívio afetivo: isso se deu pela falta de uma ligação com sua mãe. Essa falta de proximidade junto a figura materna produziu alguém que ousou fazer perguntas desagradáveis e brilhantes acerca das relações sociais e como elas se dão.

TEM MUITA GENTE QUE ASSISTIA DEXTER (2009–2013) POR CONTA DISSO.

Mas todos esses personagens citados em verdade são traduções humanizadas do que Ripley é, e que ele mesmo comenta com seu outro igual na série, do qual falaremos em breve:

Ripley é um “le marchand”, ou seja “um mercador”, uma versão de como o irmão sistema se vê.

RESUMINDO: ELE É UMA REPRESENTAÇÃO, OU TRADUÇÃO PARA OS TEMPOS ATUAIS, DOS ARMADORES QUE FUNDARAM O CAPITALISMO.

RINASCITA OSCURA.

As pessoas falam dos Capitalistas, mas geralmente não sabem de suas origens na Itália. Eles surgiram por volta de 1095, com a PRIMEIRA CRUZADA, fazendo um serviço delicioso e perverso: armando os cruzados para que pudessem atacar os muçulmanos.

Nesse momento, os dois portos mais adequados para as invasões ao mundo árabe estavam em Gênova e Veneza, e ali, não por acaso, estão os grandes pensadores do RENASCIMENTO. Isto porque os armadores estavam em “guerra fria” com a IGREJA CATÓLICA, justamente porque sua moral incluía impedir que se emprestasse dinheiro a juros, criação de dívidas a longo prazo, e, de certa forma, lucro de modo geral, o que impedia o aumento do pensamento matemático.

OS ARMADORES TENTARAM CONTORNAR ISSO COBRANDO DOS PRÍNCIPES QUE SE DESLOCAVAM UMA MERCADORIA TERRÍVEL E BASILAR, E QUE EXPLICA O NOME DO PRÓPRIO IRMÃO SISTEMA: PENSAMENTO MATEMÁTICO E FILOSÓFICO, E POR ISSO MESMO MARX (1818–1883) OS CHAMOU DE CAPITALISTAS, OU “AQUELES QUE PROCURAM VENCER COM A CABEÇA”.

Quanto mais os armadores foram se desenvolvendo, ou seja, seus negócios foram se expandindo, mais o seu pensamento matemático, burocrático, financeiro e linguístico foi se desenvolvendo, ao ponto que eles dominaram também a Filosofia e finalmente, a História, e começaram os primeiros passos para transformá-la em uma ciência de mapeamento de consciência para a destruição de seus portadores, ou, no mínimo, em forma de manipulação.

Isso se dava porque eles não tinham poder secular, como exércitos, armas e mesmo uma cultura que lhes fosse favorável. Logo passaram a sabotar a cultura cristã dominante, a mimetiza-la e a usar para que seus inimigos não percebessem que seriam obliterados, traídos e mortos caso ficassem em seu caminho.

Tal proposta gerou o que, a meu ver, foi muito bem defendido pelo maquiavélico tardio BURCKHARDT (1818–1897) todo o conceito de uma beleza para o poder, que NIETZSCHE (1844–1900) tentou sem sucesso executar.

RIPLEY CONSEGUE EXECUTAR E POR ISSO MESMO É INEVITÁVEL QUE ELE SE SINTA MAIS À VONTADE EM VENEZA DO QUE EM ROMA.

A vontade dele é alimentada por sua fome em se relacionar com a beleza, logo aparência, que aquela moral decadente tem, e por sua vez, toma-la daqueles ricos bobos que a usam de maneira instrumental sem apreciar como aquela falsidade foi meticulosamente criada.

Em suma ele é um ser para o prazer sublime.

Talvez nesse momento eu deveria pensar melhor se ele é um príncipe: Ripley não quer mudar o mundo, apenas apreciar suas ações nele, e, grandes mudanças na cultura podem vir a atrapalhar suas ações.

AO ENXERGAR A HIPOCRISIA DA ÉTICA (CRISTÃ) ELE PERCEBE A MORAL SECULAR: A BELEZA DA MENTIRA SEDUZ A RIPLEY E O FAZ QUERER EXECUTÁ-LA.

DO SOMBRIO ZEN, OU, O OVO NEGRO DA FÊNIX

A mitologia ligada a representação das cinzas é de uma recorrência assustadora no pensamento religioso do mundo antigo e cristão. Logo esse tipo de estética geralmente remete ao mito da Fênix, que incinera a si mesma, e de um de seus ovos renasce, porém em verdade, é posto um segundo ovo, e o que nasce dele, ninguém sabe ao certo.

A MEU VER É ALGO COMO RIPLEY.

Esse aspecto estético é fundamental para se entender a série, e me pareceu genial tal decisão do STEVEN ZAILLIAN (1953): filmar a produção completamente em preto-e-branco, justamente para demonstrar como nos vemos o mundo, mas não como nosso Mercador Armador vê.

A fotografia maravilhosa evidencia uma falha moral, que foi explicitada pelo RENASCIMENTO: o mundo não é bom e mal, certo ou errado, preto e branco.

O MUNDO TEM CORES, PARA QUEM PRECISA VÊ-LAS.

É uma das discussões estéticas mais fantásticas que a série faz: como nossos modelos de cultura, são modelos teóricos, logo formas estéticas de produção de consciência, que nos dão capacidade de manipular a realidade por meio da persuasão de humanos que usam tais consciências.

Por toda a narrativa Ripley consegue ler a indiferença que acometeu a sociedade em que ele está e usar isso em seu próprio benefício: seu uso da burocracia, desse “poder cinza” (tradução dessa palavra) é fantástico. Logo ele percebe que a apatia que ele sente pelo mundo, não é só dele.

Em verdade nosso sombrio Mercador de Veneza percebe que o mundo é bastante shakespeariano e que as pessoas seguem os papéis que acreditam que o mundo lhes impingiu: um exemplo é o pai de Dickie Greenleaf (Johnny Flynn ) Herbert (Kenneth Lonergan ), que como todos os pais burgueses tem uma ojeriza de criar seus próprios filhos então, os desconhecem e os mimam com dinheiro.

RIPLEY CONHECE DICKIE MELHOR QUE SEU PAI, E SABE QUE O INDUSTRIAL NÃO ESTÁ PERDENDO NADA.

Eu achei isso de uma zen-budismo perverso: Herbert lamenta mais lamentar a morte de seu filho do que a morte em si e Ripley percebe isso. Ao contrário de suas últimas versões não há uma paixão Ripley por Dickie e nem mesmo a construção do playboy como alguém perverso, para que tenhamos alguma compaixão cristão pelos atos do Mercador Armador.

DICKIE É DESPREZÍVEL: ELE SÓ É UMA PONTE A SER ATRAVESSADA PARA DEPOIS SER QUEIMADA, UM MEIO PARA UM FIM E O FIM QUE JUSTIFICA OS MEIOS SANGRENTOS.

Tudo ali é para Dickie e ele não sabe explorar aquela cultura, riqueza e bom gosto. Ele apenas finge que aprecia, em seu papel canastrão, apoiado por sua beleza padronizada, que alimenta até hoje a arte visual, inclusive o Cinema. Ripley percebe isso e mais:

Percebe que tudo é pantomima, espetáculo, representação fútil e tola em meio aos ricos playboys que nunca lutaram por nada ali.

ELE SIM LUTA, LOGO, MERECE AQUELA CULTURA DE SINISTROS BANQUEIROS E BUROCRATAS.

Aproveitando, sabiam que a cor do Zen e do Kung fu é cinza, justamente porque seus praticantes entendem que bem e mal, são apenas aspectos abstratos e não verdades concretas na realidade de fato?

RINASCIMENTO OSCURO

Com tudo isso a série faz um aceno para uma coisa curiosa: que o nosso caro Irmão Sistema parece estar à procura de novos príncipes para lhe gerir. Isso tem se mostrado com a atual crise do Império Estadunidense e a inevitável vitória da China. O novo cenário mundial parece denunciar que essa procura se torna necessária.

Gente como ELON MUSK (1971), entre outros, tem se candidatado ao cargo de príncipe capitalista. No entanto, gente como ele padece ainda de certo moralismo econômico, de uma necessidade de mais do que terem poder, é em declararem publicamente que têm poder.

ATITUDE PERIGOSA: QUANDO SABEMOS QUEM É O PRÍNCIPE, PODEMOS DEDUZIR ONDE ATINGI-LO.

Talvez isso nos mostre que ser rico, não te imediatamente culto.

Na série Ripley tenta ficar o máximo possível discreto, gerindo todos os possíveis anseios sobre sua pessoa.

Ripley aprende muito como seu modelo cultural, um dos fundadores da estética CHIAROESCURO (XVI), e do TENEBRISMO (XVI), o artista assassino CARAVAGGIO (1571–1610) que a meu ver foi um dos modelos que HIGHSMITH usou para criar seu personagem. Assim a série também é uma espécie de curso de arte, onde a questão da luz e das sombras denuncia o que realmente as pessoas conseguem ver, nesse mundo de aparências que podem ser poder de fato, apenas se seus admiradores e espectadores acreditarem em tais passe de ilusão.

Por tudo isso, a profundidade de uma pintura, e de um personagem, estão alocadas em seu modo de manipular luzes e sombras e os usá-los em seu favor, a partir da observação que fazem de seu mundo circundante.

Todos os personagens parecem não entender que Ripley tem essa consciência obscura de si e de todos, o que não faz que ele seja humilde ou ignorante, sendo que essa escuridão é evidência de grande profundidade de conhecimento, que ele vai aumentando no decorrer da produção.

Somente outro consegue entender o que ele é Reeves Minot (John Malkovich) e entender que está perante uma versão mais jovem dele mesmo. Tanto dentro como fora das séries é uma grande sacada de roteiro esse personagem, pois mostra que se ele não vai perdoar Ripley, pelo menos aceita seus motivos e ações.

O PEQUENO DIÁLOGO ENTRE OS DOIS NOS CAPÍTULOS FINAIS, DEMONSTRA QUE O NOVO MERCADOR ARMADOR TEM AS BÊNÇÃO DO VELHO PARA CONTINUAR SUAS OBRAS.

Mas não é um perdão.

Perdão é para quem se arrepende e Tom Ripley está além disso.

RIPLEY CONHECE O PECADO E SABE QUE ELE NÃO EXISTE, QUE É OUTRA FORMA DE ARTE DA LUZ E SOMBRAS. COISA QUE NEM MESMO MAQUIAVEL OUSOU ACEITAR.

FICHA TÉCNICA

RIPLEY — 1ª TEMPORADA [SÉRIE]- (2024) — TITULO ORIGINAL: — DURAÇÃO :1 — NACIONALIDADE :2024 — DIRETOR: — ROTEIRISTA: STEVEN ZAILLIAN — DISPONÍVEL (ATÉ O MOMENTO DA PUBLICAÇÃO):NETFLIX.

POST SCRIPTUM

Finalmente, eu adorei assistir essa produção, mas demorou para eu entende-la no decorrer de seus episódios porque, como dá a entender nas atuais programações da NETFLIX, ela não está almejando mais os jovens.

Uma decisão ousada, ou não: os jovens estão cada vez mais decepcionados com os mercados de emprego, e estão começando a abandoná-los, vivendo vidas mais medíocres sustentados por seus pais e sistemas alternativos de renda. Logo eles tendem a não ser muito pacientes.

O FIM DO TRABALHISMO, FOI O FIM DESSA MORAL EMPREGATÍCIA.

No Brasil, a queda desse projeto foi demarcada quando da derrota de LEONEL BRIZOLA (1922–2004) para presidente LULA (1945) nas eleições presidenciais de 1994.

Essa crise se mostra hoje no final da ideia de trabalhismo, decadência da ideia de empregado e finalmente ascensão da noção de empreendedor.

SE AS PESSOAS NÃO ENTENDERAM QUE PARA SEREM EMPREENDEDORES DEVEM SER TOM RIPLEY, RECOMENDO ESSA SÉRIE.

Pense que é uma forma de EAD, caro desempregado ou aspirante a príncipe maquiavélico.

MAS NÃO ESQUEÇA QUE OS PRÍNCIPES NUNCA FORAM PÁREO PARA OS MERCADORES.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).