HERÓI DE SANGUE (TIRAILLEURS)[FILME] (2022):

Sombrionauta
10 min readJul 19, 2023

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PATRIOTISMO CAFRE.

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Por muito tempo eu pensei seriamente em me converter, ou reconverter, ao muçulmanismo. Isso se deu principalmente devido ao filme MALCOLM X (1992). Mas haviam outros motivos para isso, que estavam meio obscuros para mim na época.

É sabido, também, que eu tenho uma admiração assustadora por meu pai. Ele sempre foi um homem bom, muito sombrio e honesto. Isso me lembra o que certa vez uma moça discorreu, quando resenhava o primeiro PANTERA NEGRA (2018) acerca de T’CHALLA / PANTERA NEGRA (CHADWICK BOSEMAN) e sua relação com asua irmã SHURI (LETITIA WRIGHT) algo como

“É fundamental para toda a criança crescer na presença de um homem bom e honesto”.

Meu pai sempre se propôs a ser esse homem. Desconfio que era isso que vi quando assisti à versão do MALCOLM X feita por Denzel Washington (1954) um homem bom e honesto, porém, sombrio.

“Sombrio” porque ninguém pode entender muito bem ser honesto sem ter antes sofrido, e perpetrado, sofrimento e também ter pagado caro por ter feito ambos. Então a escolha pela honestidade não é dada por algum conformismo, por um medo de não errar, e sim, por ter errado e acertado, e sentido as desvantagens e vantagens de ambos e chegado à conclusão que ser honesto era o que mais lhe adequava.

Homens como meu pai, sempre foram tidos como pouco viris, pouco dados a deixar a brutalidade e a ganância tomá-los.

Sua força foi sempre fazer o possível buscar outros métodos além da brutalidade como meio de vitória, preferindo esperar que ela se cansasse: é a clássica estratégia do boxeador de periferia, esperar o inimigo se perder em sua própria inconsequência.

Contudo também jamais negar a eficiência da violência, como medo de que isso o levasse a se tornar parte dela.

HOMENS COMO ESSE SEMPRE TÊM SUA VIDAS CEIFADAS POR EMPREENDIMENTOS DO IRMÃO-CAPITALISMO, NOTADAMENTE O NACIONALISMO.

Porque as nações sempre se aproveitam desse tipo de sobriedade, de autocontrole, como estratégia para cooptá-los e coagi-los por meio da única coisa que pode levar esse tipo de homens a combaterem em suas guerras.

SEUS FILHOS.

Aqui resenho a tragédia de um pai: ser um homem bom e honesto.

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PÁTRIA SEM NACIONALISMO.

As pessoas têm dificuldade de entender que um povo não é seu território. Essa noção da coligação de pessoas a um espaço estático é novo e tem menos de 300 anos.

QUANDO ALGUÉM FALAR QUE AS COISAS NÃO MUDAM, PENSE NESSE TIPO DE COISA: COM DINHEIRO E UM ESTADO DO SEU LADO, NOÇÃO MILENARES PODEM SER SIM ALTERADAS.

A noção territorial como imprescindível a formação da cultura de um povo então é coisa recente, produzida em certa medida por historiadores notadamente franceses pós revolução francesa e da DEUTSHLAND (1871–1949). Esses historiadores assim como SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA (1902–1982) tomaram como premissa que essa organização territorial era a melhor forma de explicar a noção cultural dos povos que analisavam.

CONTUDO UM POVO NÃO É SÓ O TERRITÓRIO QUE OCUPA, PORQUE A ECONOMIA POLÍTICA ACABA AFETANDO COMO ESSA OCUPAÇÃO VAI SE DAR.

Tomando o caso brasileiro como um exemplo apesar de certo grupo deles serem mesmo empresário em sua gênese colonial, ou empreendedores, eles o eram a custas de outros povos, notadamente os originários. Essa custo era a escravidão deles.

CLARO QUE ESTOU FALANDO DOS GRANDES HERÓIS BRASILEIROS ELEITOS POR HOLANDA, OS ESCRAVISTAS BANDEIRANTES.

Esse modelo mestiço de povos originários com brancos europeus portugueses, mas não só eles, foi tomando territórios graças as alianças consanguíneas criadas por meio de casamento entre mulheres nativas e os invasores, com o intuito de destruir os outros povos que aqui já estavam.

NADA MAIS ALEMÃO DO QUE O CASAMENTO SER UMA INSTITUIÇÃO PARA PROVOCAR A GUERRA.

Essa organicidade profissional mestiça, combinada com a religião africana ajudou, junto com a antropologia e sociologia machistas de GILBERTO FREYRE (1900–1987),a criar o mito elitista brasileiro que sim, transcendia a questão racial, por ser justamente portador de uma diversidade enquanto biologia, porém também de uma uniformidade profissional.

Uma espécie de patriotismo infiel, ou como diriam os muçulmanos aos povos que não seguiam sua crença, e que depois foi incorporado como termo pejorativo pelo APARTHEID (1948–1994), um nacionalismo “kaffir” ou “cafre”

É ISSO QUE GENTE COMO O EX-PRESIDENTE JAIR MESSIAS BOLSONARO (1955) ACREDITA.

Então quanto perguntarem para você de onde vem as ideias proto-facistas e “tolas” dele, responda que são originárias de dois dos maiores intelectuais desse país.

VIU COMO UM ESTADO COMPRANDO AS IDEIAS DE INTELECTUAIS PODE MUDAR CULTURAS CENTENÁRIAS E MILENARES?

HOMENS DE ALÁ SUBJUGADOS AO DESTINO NACIONALISTA.

O problema central dessas visões que partem do princípio territorial é que todas elas usam como uma de suas inspirações, e no caso da DEUSCHTLAND, principalmente em seu período mais extremo e eficiente, o nazista (1919–1945), é o de DESTINO MANIFESTO, (1845), termo cunhado pelo jornalista JOHN LOUIS O’SULLIVAN (1813–1895) que evoluiu para a teoria estadunidense de genocídio chamada de TESE DA FRONTEIRA (1893) de FREDERICK JACKSON TURNER (1861–1932).

Essas concepções é que fundamentavam que os brancos e descendentes de Europeus tinha o direito quase divino de exterminar os povos originários que estavam no que hoje chamamos de Estados Unidos da América. Assim um povo tinha o direito, dado pelo belicismo, de tomar o território de outro povo.

ENGRAÇADO COMO AÍ NÃO TEM NENHUMA “LIGAÇÃO” QUASE MÍSTICA COM O SOLO DE NASCIMENTO. NACIONALISMO NO ANUS DOS OUTROS É REFRESCO.

Tal ideia é que vai fundamentar a noção de genocídio e conquista nazistas.

OU É O QUE A CINEBIOGRAFIA SOBRE O NAZISMO QUER NOS OCULTAR.

Pois em verdade, os europeus empreenderam esse tipo de empresa necropolítica por todos os locais onde estiveram. Talvez a grande inovação sobre a TESE DA FRONTEIRA, é aplicar esse tipo de genocídio nos próprios continentes onde os invasores nasceram, o que os alemães chamaram de LEBENSRAUM (ESPAÇO VITAL, 1870–1945).

Porém a TESE DA FRONTEIRA, precisava de muitos soldados para ser executada, logo necessitou que gente que havia sido recrutada para lutar na GUERRA DE SECESSÃO ESTADUNIDENSE (1861–1865) contra os estados confederados.

OS NEGROS.

Nessa produção vemos que mais uma vez os negros são cooptados a lutar uma versão da LEBENSRAUM, só que francês, contra, ironicamente, os alemães da DEUSCHTLAND.

Todavia o que dar de pagamento a esses homens?

ORA, O QUE SEMPRE SE PROMETE A TODOS OS JOVENS: RECONHECIMENTO DE UM GRUPO, LIBERTAÇÃO DE SUA VIDA “PRIMITIVA”, MULHERES BRANCAS, CIVILIZAÇÃO EUROPEIA ILUMINISTA, OU RESUMINDO, A NACIONALIDADE FRANCESA.

Todavia eles, além dos alemães, devem enfrentar um inimigo que se recusa a derrota-los, porque tal qual MAKOMA sabe que isso o fará se tornar um deles.

UM PAI SENEGALÊS-MULÇUMANO.

ESCARAMUÇAS DE TRADUÇÃO.

Em termos de pensamento militar existiam infantarias leves de combate que deveriam servir para conflitos pequenos, quase funcionando como chamarizes para as tropas inimigas. Esse tipo de tropa foi notadamente usado pela França, mas não só por ela.

Exercitadas a partir do século XIX, muitas dessas unidades equipadas de maneira a serem leves e rápidas, foram recrutadas, à força também, nas colônias.

ESSA HISTÓRIA DE “EXÉRCITO PROFISSIONAL” É TÃO RECENTE QUANTO O NACIONALISMO SENDO QUE ATÉ MESMO O NEW MODEL ARMY INGLÊS (1645–1660) DEVE TER USO DESSE TIPO DE RECRUTAMENTO FORÇADO.

Houve, portanto, escaramuçadores no Norte da África, na África Negra, na Indochina. Havia também esse tipo de soldado recrutado na Córsega como o próprio NAPOLEÃO BONAPARTE (1769–1821).

Assim o exército profissional até idos do século XIX era basicamente formado de gente que não acreditava em combates em nome de seus países. A inovação desse tipo de exército, em que os indivíduos acreditam e dividem causas em comum, vem da profissionalização do exército, ensaiada pelo NEW MODEL ARMY e a defesa da liberdade religiosa como estrutura militar eficiente. Com o tempo, e com a REVOLUÇÃO FRANCESA (1789–1792) vai se substituindo a noção de que a religiosidade dever ser necessariamente transcendental, evoluindo para o que particularmente chamo de “a religião do Estado”, civil, aparentemente laica, que chamamos de patriotismo.

Toda essa construção é que concorre para criar exércitos multinacionais e multiétinicos, recrutados de maneira forçada para lutarem nas guerras imperialistas, pois o critério de mérito, combinado com remuneração e possibilidade de aposentadoria, seja por por terras, como houve na GUERRA DE SECESSÃO ESTADUNIDENSE, quanto nesse filme possibilitam que mesmo que tomados à força, os soldados que não eram brancos, inclusive os trabalhadores, fossem com o tempo cooptados por tal estrutura empregatícia (se pensar bem, as forças armadas usam esse tipo de organização em sua divisão de tarefas), somado com o discurso de que eles seriam alçados à nacionalidade dos seus colonizadores.

Isso funciona em grande medida com os jovens dessas comunidades, que veem a possibilidade de suplantar a autoridade de seus próprios pais e outros anciãos, coisa corrente no pensamento africano continental, e também muçulmano.

NESSE TIPO DE LINHA DE PENSAMENTO, OS IDOSOS TÊM MAIS VALOR QUE OS JOVENS, POR ELES JUSTAMENTE ESTAREM MAIS ACLIMATADOS, PELO TEMPO, ÀS SUAS PRÓPRIAS CULTURAS.

Quando retirados destas, o culto do Estado, dado pelo ensino escolar branco, acaba dando a esses jovens uma vantagem nunca dantes prevista em suas próprias matrizes civilizacionais.

POR ISSO O BAKARY DIALLO (OMAR SY) É PRATICAMENTE IMUNE AO CHAMADO NACIONALISTA FRANCÊS, AO CONTRÁRIO DE SEU FILHO THIERNO DIALLO (ALASSANE DIONG).

Logo ele não é um “herói de sangue” como a tradução safada, nacionalista e praticamente eugenista dá a entender: o poder de Diallo é sua fé e sua cultura. Quando seu filho é capturado para a tropa de escaramuçadores francesas imperialistas ele decide ir resgatá-lo se alistando voluntariamente.

APROVEITANDO O TERMO FRANCÊS PARA ESCARAMUÇADORES É TIRAILLEURS

A MORTE DO PAI SOMBRIO.

Omar sy tem montado sua carreira como ator basicamente fazendo filmes e séries sobre a possibilidade de uma comunhão entre franceses e seus imigrantes, notadamente de origem africana. Ele também se esforça muito em demonstrar que a cultura francesa, mesmo a mais clássica, ganha em muito ao ter um viés negro, e tal qual o bastante criticado ator MORGAN FREEMAN (1937), parece querer demonstrar que os pretos participaram em larga escala da história imperialista de suas respectivas nações.

ELE E FREEMAN SERIAM O QUE MALCOLM X CHAMARIA DE “NEGRO DE CASA”.

Particularmente eu chamo de classe média de origem negra.

Sigamos.

Bakary e seu filho Thierno vivem com sua família no Senegal e basicamente são criadores pequenos de gado. A grande sacada da cena de abertura é mostrar isso sem o peso daqueles horríveis filmes brasileiros que apresentam a vida de pequenos agricultores como horrível e penosa: eles vivem uma vida de esforço, todavia estão bem adaptados a ela, à sua cultura e sobretudo à sua religião, o muçulmanismo.

Essa é a escaramuça desse filme: apresentar que os islâmicos, mesmo contra sua vontade, podem fazer parte do ideal francês de civilização, mesmo como a constante ascensão de uma nova extrema-direita que é tão racista quanto a velha, porém mais adaptada à democracia, tal qual ADOLF HITLER (1888–1945) e o NAZISMO eram.

NEGO ESQUECE QUE OS NAZISTAS NÃO DERAM GOLPE NA DEUSCHTLAND, APENAS FORAM ELEITOS E INDICADOS.

Todavia é sabido e discutido entre as comunidades daquela região que os franceses estão vindo e recrutando de maneira forçada jovens para lutarem na PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL (1914–1918). Bakary e sua esposa (que não achei citada em site nenhum) tentam esconder seu filho, mas literalmente, como nas razias feitas pelos muçulmanos para capturarem africanos para serem entregues posteriormente ao escravismo do Irmão-Sistema ele é capturado.

Bakary então entra numa missão para resgatar seu filho. No entanto Thierno que num momento estava pronto a resistir ao recrutamento forçado passa a se sentir atraído pelos prazeres imperialistas de seguir a ordem Capitalista racista.

Também o fanatismo democrático aparece na figura do filho do General Chambreau (François Chattot), o jovem comandante Tenente Chambreau (Jonas Bloquet). Ele é um personagem fundamental porque ele demonstra como a crença na democracia também é prenhe de uma ditadura de classe social.

A loucura da frente de Verdun é apresentada de maneira didática, onde homens pobres, negros ou não, são levados a serem feitos em pedaços por meio da liderança de um oficialato tomado por ideais religiosos civis criados racionalmente, ou seja, a loucura chamada nacionalismo, e toda a loucura tem algo de contagiosa.

Bakary a todo momento tenta evitar, mesmo pelo seu filho,romper com suas crenças religiosas e sua cultura, e mesmo quando o faz, é porque seu dever como pai é manter-se um exemplo para Thierno.

UM PAI SOMBRIO, PRONTO A ENFRENTAR A LUZ DO SOL ILUMINISTA FRANCÊS, QUE ALIMENTA MAS QUEIMA, E QUE PROJETA SUA SOMBRA COM O INTUITO DE PROTEGER SEUS FILHOS.

Bakary tenta a todo custo salvar seu filho, entretanto cai vítima de sua própria crença: porque o pessoal esquece que o islamismo também acredita em livre-arbítrio, logo, seu filho traça o caminho que irá seguir.

A BAKARY SOBRA APENAS O QUE TODO HOMEM BOM E HONESTO PODE CONCEDER A SEU FILHO; SUA BENÇÃO.

Porém até isso é tomado dele, pois o filme quer mostrar que não há saída para os negros, não importa sua religião, não importa sua etnia, e que a democracia racista, imperialista, republicana, não lhes dará qualquer opções a não se lutar por elas, com outras democracias igualmente racistas, imperialistas e republicanas.

NO FINAL, COMO DISSE O CRÍTICO DA REVOLUÇÃO FRANCESA E ADMIRADOR DE LÊNIN (1870–1924 ), ANATOLE FRANCE (1844–1924), OS DEUSES DA REPÚLICA FRANCESA TÊM SEDE.

Sede de sangue de seus cidadãos.

POST SCRIPTUM

Os anarquistas estavam certos: nacionalismo é uma idiotice, não importa se é de esquerda ou de direita, porque a ideia em si foi forjada pelo Irmão-Sistema e tem muito dele, o que impossibilita garantir o bem estar pleno das populações pobres.

Todo ele é uma organização que inevitavelmente irá redundar em separações por biologia e leis inócuas contra o racismo e outras segregações profissionais de cunho corporal, que tenderam a criar castas profissionais.

Tal instituição é constantemente sustentada,por sepulturas póstumas coletivas para as grandes vítimas desses empreendimentos capitalistas, seus povos, como o túmulo ao soldado desconhecido, do qual falei anteriormente

Nós negros não podemos nos ver reféns desse tipo de projeto, pois somos os verdadeiros trabalhadores do mundo que precisam se unir e gente como JONES MANOEL (1990), em breve, provavelmente, expulso do PCB (1922), talvez seja a melhor prova atual de que nós só servimos ao ILUMINISMO (1685) como seus sombrios soldados, mas ao final de sua empresa a única moradia e homenagem a nós destinada (no pior sentido termo) é o esquecimento frio da tumba e depois, mais uma vez, sermos explorados mesmo no post-mortem.

É O QUE ESSE FILME QUER DIZER, EM CERTA MEDIDA.

Que as nações fiquem com a morte, seu grande produto. Eu prefiro a vida.

Se gostou desse texto, 50 palmas serão bem-vindas e agradecidas.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).