COWBOY BEBOP — 1ª TEMPORADA [SÉRIE]- (2021):

Sombrionauta
7 min readDec 17, 2021

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O ESPELHO QUE NÃO SABE REFLETIR.

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Fazer traduções é um trabalho ingrato. Porque nem tudo pode ser traduzido. Isso se dá por causa de uma especificidade que esquecemos: a realidade concreta. Tal especificidade se expressa de maneira espacial, sendo mais conhecida como geografia, porém, para os historiadores é chamada de tempo material (Braudel (1902–1985)), ou infraestrutura (Marx (1818–1883)). Todos as nossas concepções sociais (tempo social/estrutura) e nossa decisões pessoais (tempo individual/superestrutura) demandariam disso.

O PROBLEMA É QUE A NETFLIX NÃO GOSTA DE ACEITAR ESSA IDEIA.

Assim como racistas também não: para afirmar coisas universais, é necessário negar a geografia e as possibilidades e limitações que elas demandam: por isso conceitos como machismo, racismo e homofobia não funcionam tão plenamente como se pensa, e por isso o Irmão-Capitalismo a partir do século XVIII se dedicou tanto a reconstruir as cidades e suas tecnologias de conforto de forma a anular essa diversidade incontrolável.

E NEM MESMO O IRMÃO-CAPITALISMO CONSEGUIU.

Tal determinação material se expressa até nas ficções: por isso a sua falha em adaptar o anime COWBOY BEBOP (1998) para o pensamento ocidental, porque adaptar animes em vez de reprisá-los é apenas mera tradução.

MAS TRADUÇÕES SÃO MATÉRIA DO DESESPERO.

[SIGA LENDO ESSE TEXTO NO LINK DA BIOS]

O problema é; o que era o Anime? Uma reflexão sobre o lumpen-proletariado, sobre os low-life, sobre os losers, sobre pessoas que não são criminosas exatamente, mas que não puderam ser honestas também, devido à falta de tempo social/infraestrutura.

“Honestidade”, aqui quer dizer “capacidade de se manter de maneira legalizada e socialmente aceita”.

TODAVIA O TEMPO SOCIAL/INFRAESTRUTRUA DO ANIME COWBOW BEBOP ERA A JAPONESA: O LIVE-ACTION TENTA ADAPTAR OS PERSONAGENS PARA O LOW-LIFE ESTADUNIDENSE E FALHA JUSTAMENTE POR NÃO PERCEBER A LIMITAÇÃO DISSO.

A Netflix é famosa por fazer adaptações de anime que não dão certo. Não quer dizer que ela faça má adaptações de outras coisas, como por exemplo MESTRES DO UNIVERSO: SALVANDO ETERNIA (2021), todavia, quando a questão é entrar em outras ficções criadas em geografias que não a europeia ou estadunidense, ela falha miseravelmente.

A série live-action acompanha uma série de caçadores de recompensa, chamados de “cowboys” e que viajam juntos numa nave chamada de “Bebop”: São eles o dionisíaco Spike Spiegel (John Cho), o paternal negro Jet Black (Mustafa Shakir), e a trapaceira Faye Valentine (Daniella Pineda).

Essa é uma clássica premissa a lá “o filho, o pai e o espírito santo” ocidental. Mas aqui está o grande erro da Netflix:

O ANIME JÁ ERA UMA PARÓDIA DO QUE O OCIDENTE APRESENTA EM SUA FICÇÃO DO QUE SÃO OS LOW-LIFE.

Então a série faz o que não deveria: apresenta um genérico de ALTERED CARBON (2018–2020), sem a profundidade desta, e tenta adaptar uma adaptação do que os japoneses acham que são os low-life para o que os estadunidenses acham que os japoneses acham que são os low-life estadunidenses.

COMO DIRIA TRENT REZNOR (1965): “A CÓPIA DE UMA CÓPIA”.

Porque o original de COWBOY BEBOP era isso: uma apresentação de uma série de culturas low-life, e como esse tipo de determinação é uma coisa que se repetiria no futuro, pois, atenção, esse tipo de gente é um dos efeitos colaterais do Irmão-Capitalismo:

OU NINGUÉM REPAROU QUE A ESSÊNCIA DA CRÍTICA CYBERPUNK É QUE O PROGRESSO DO CAPITALISMO É TAMBÉM A AMPLIAÇÃO DAS DESIGUALDADES GERADAS POR ELE, E NÃO A SUPERAÇÃO DAS MESMAS?

ALIÁS: QUEM NÃO REPAROU QUE O MUNDO DE COWBOY BEBOP É O MUNDO DO IRMÃO-CAPITALISMO PROJETADO NO FUTURO?

Vou tomar um exemplo desse tipo operação ruim na versão da Netflix, para explicar melhor meu ponto de vista: no episódio em que aparece uma das minhas favoritas culturas outsiders/lowlifes, a de palhaços, representada no personagem Pierrot Le Fou (Joshua Randall) temos um tremendo de um fracasso.

Fracasso em tentar apresentar um palhaço como um sucesso: resumindo, um psicopata genérico.

Aí está a questão: como subentende-se nas falas do palhaço Sergio (Antonio de la Torre) no filme BALADA TRISTE DE TROMPETA (2010), um palhaço geralmente é alguém que está tentando não ser algo que teme, e por isso finge ser o que teme.

CONFUSO? ORA, PALHAÇOS ESTÃO AÍ PARA CONFUNDIR O MUNDO FALANDO O ÓBVIO QUE NÃO DIZEMOS EM VOZ ALTA.

Sendo menos palhaço e mais didático: o palhaço finge ser aquilo que quer nega em si mesmo, para que assim nunca se torne de fato aquilo que nega.

PENSA NUM CRISTÃO PREGANDO O LIVRE-ARBÍTRIO E VAI ENTENDER.

No anime fica claro que a batalha entre Spike Spiegel e Pierrot Le Fou é uma questão que se tornou pessoal, apesar de seu encontro ter se dado por acaso, e que não pode ser terceirizada: Spiegel, cujo nome significa “espelho” em alemão, acabou de encontrar alguém que também é um espelho.

E COMO NEIL GAIMAN (1960) EXPLICOU BEM, O ESPELHO É O SÍMBOLO DO DESESPERO.

E o que dois espelhos, um na frente do outro refletem afinal?

O QUE OS DOIS ESPELHOS NEGAM AO SE APRESENTAREM PARA A REALIDADE: TUDO O QUE ELES SÃO EM SUA PROFUNDIDADE.

Nesse episódio do anime entendi o anime, e na série, é o episódio que entendi onde a série não ia funcionar.

No anime Spiegel não quer enfrentar Le fou por ódio,competição, ou apenas medo: ele percebeu que o palhaço finge ser tão infantil quanto ele finge ser. Le Fou é também alguém que foi abusado pelo Irmão-Capitalismo, mas que aprendeu a apreciar o resultado de tal coisa, assim como Spiegel.

O anime deixa claro essa postura nos personagens: todas aquelas pessoas que caçam e são caçadas, em verdade conseguem entender que não há salvação para elas, também porque as mesmas não a estão procurando: estão em paz consigo mesmas, com suas terríveis vidas. E a morte?

MORRER É SÓ OUTRA PARTE DA VIDA.

Eles vão tentar evitar isso, mas se acontecer, tudo bem.

Com isso tudo, vemos que eles em verdade são um bando de canalhas caçando canalhas, porque canalha que é canalha entende o que canalha sente e merece.

Sintetizando, na voz de Garth Ennis (1970), falando pelo grande modelo dos melhores quadrinhos low-life estadunidenses, John Constantine:

“SOMENTE UM CANALHA PODE PERDOAR O OUTRO”.

E perdão, para o canalha, é morrer nas mãos de alguém que sabe o que é ser um canalha. Um grande filme sobre isso é FOGO CONTRA FOGO (1995). Spiegel sabe que merece morrer nas mãos de Le Fou e vice-versa, sendo assim, qualquer resultado vai valer a pena.

MAS CANALHAS NÃO SE ENTREGAM TÃO FÁCIL.

Essa é a falha da Netflix: não entender que os personagens que estava adaptando eram o que os japoneses achavam que eram os low-live/outsiders. Para isso eles deveriam ter descoberto o conceito japonês equivalente dessas pessoas, o Meifumadou.

Meifumadou, é uma espécie de caminho dos mortos, onde as pessoas que ali vivem perderam toda a noção de civilidade, logo de humanidade. Elas podem tentar toda a sorte de estratégias, pois não têm nenhuma ética os prendendo, talvez apenas a sobrevivência e essa não é tão interessante assim.

Se essas pessoas já foram honestas, entendam sobrevivência como “vingança”.

O GRANDE PERSONAGEM DE MANGÁ NESSE TIPO DE CAMINHO É ITTO OGAMI E SEU FILHO ( QUE SÃO UM SÓ, A MEU VER) DAIGORO: O FAMOSO LOBO SOLITÁRIO (1970–1976). ALIÁS ESSE CONCEITO, MEIFUMADOU, FOI CRIADO NESSE MANGÁ.

Então o engano nessa adaptação é aquela tendência, que alimenta o racismo estrutural, e que permeia o ocidente, ou seja, de negar que existam geografias diferentes, tempos sociais diferente, infraestruturas diferentes, logo, tempos individuais e superestruturas diferentes, apesar de análogas.

Então era impossível fazer a versão ocidental do Meifumadou?

NÃO.

EXISTE ALGUÉM HONESTO, UM SAMURAI, QUE ANDOU PELO MEIFUMADOU, MAS NÃO SABEMOS O NOME DELE INFELIZMENTE. APENAS SEU APELIDO, O NOME QUE O OCIDENTE GOSTA DE DAR A SEUS PERSONAGENS PRESOS NO JIGOKU:

JACK.

Aproveitando, o que diabos é Jigoku?

[SIGA LENDO A PARTIR DAQUI SE VOCÊ VEIO DE OUTRAS PLATAFORMAS]

Esse conceito vem do budismo e o ocidente o usa como análogo de “inferno”. Mas ignore, pois, o ocidente acha que Croce (1866–1952) está certo, e todos nós somos cristãos no mundo inteiro.

Todavia Jigoku é variável de região para região no Japão, assim como o conceito de inferno: ele varia de acordo com a geografia e o tempo material, pois, o sofrimento dos humanos pode ser categorizado, mas não individualizado plenamente.

Sofrimento e alegria então são variáveis pelos valores socialmente aceitos nos locais onde se desenrolam.

Contudo, o que existe mesmo no mundo inteiro são pessoas que estão na periferia de seus sistemas-econômicos e com o Irmão-Capitalismo se tornando um sistema-mundo, tendemos a ler essas pessoas de maneira igual.

Como disse, o problema dessas adaptações é não perceber que “sofrimento” não é uma unanimidade, pois os corpos sofrem de maneiras diferentes. No fundo essa é a mensagem de ICHI, O ASSSASSINO (2001). Todos sofremos e alguns sofrem por não sofrer.

E no final todos sorrimos como Kakihara (Tadanobu Asano), porque ele riu desse jeito antes do Coringa (Heath Ledger) dar sua última risada.

Se gostou desse texto, 50 palmas serão bem-vindas e agradecidas.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).