A QUEDA DA CASA DE USHER [MINISSÉRIE] (2023):

Sombrionauta
9 min readNov 17, 2023

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SÁDICA SERVIDÃO.

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INTRODUÇÃO.

O horror e o terror são gêneros prenhes de erotismo. Se não me engano foi STEPHEN KING (1941) que afirmou que longe de serem celebrações da morte, eram homenagens à vida, porque muitas vezes seus personagens estavam presos em momentos de marasmo e rotinas exacerbadas e o medo da destruição de si os levava mais uma vez a se sentirem vivos.

Aqui está um ponto interessante, debatido pelos liberais geralmente: como o conforto leva inevitavelmente à melancolia, nome antigo dado à depressão. Esse tipo de argumento é usado em termos filosóficos para justificar que não se deve conceder quaisquer direitos sociais lastreados por dinheiro público.

No fundo esse tipo de narrativa irá criar as bases do romance gótico surgido em idos do século XVIII foi para muitos, o momento em que os motivos espirituais das pessoas foram substituindo os religiosos: aqui a literatura que posteriormente irá produzir a psicologia e a psicanálise.

Porque desde o advento do pensamento iluminista por volta e 1685, cada vez mais os motivos e ações dos homens, e depois do humanos (porque foram incluindo lentamente o das mulheres, negros e outros seres que não eram considerados humanidade), passaram a ser demonstrados por meio da interpretação da grande ciência criada pelo ILUMINISMO, a HISTÓRIA. Assim a materialidade da vida das pessoas produzia as interpretações e motivações de suas ações, o que foi condicionado a ser chamado de “espírito”, para depois receber o nome de “psique”.

ROUSSEUAU (1712–1778) o doce canalha que inspirou muitos dos revolucionários franceses acreditava que a mudança material dos homens os levariam a uma mudança de seus espíritos.

MAS O GRANDE CRÍTICO DELE, O REVOLUCIONÁRIO DE FATO, MARQUÊS DE SADE (1740–1814) DISCORDA DISSO.

Para SADE todos os idealistas e servos anseiam provocar a dor que receberam, quase como uma homenagem a seus dominadores.

Aqui, nessa deliciosa homenagem a EDGAR ALAN POE (1809–1849) o gótico encontra o sádico, para mostrar que a punição sempre é um desejo secreto de quem comete um crime.

Essa minissérie é sobre isso.

GENEALOGIA INFIEL.

Um dos grandes méritos dessa adaptação não é tentar ser fiel aos textos de POE, e sim, a pensar como se expressa os dramas expostos por ele em suas obras. Portanto, teremos uma ambientação moderna da obra gótica a partir de um de seus temas centrais: as genealogias de poder e os danos causados a quem pertence a ela.

Se ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES (2023) discute os efeitos do patriarcado e do paternalismo nos que geralmente são vítimas deles, aqui é discutido os danos auto infligidos à quem participa ativamente deles. A obra de POE é prenhe desse momento em que as grandes genealogias de poder dos nobres entram em decadência desde a REVOLUÇÃO FRANCESA (1789–1792) e se pensarmos bem, desde a REVOLUÇÃO GLORIOSA (1688–1689).

Como estadunidense a obra desse autor é cheia de temas caros ao pensamento místico europeu, que estavam sendo debatidos em termos intelectuais nos E.U.A. e que acabam repercutindo Na GUERRA DE SECESSÃO AMERICANA (1861–1865). Logo a esfera mística é substituída por uma proto fenomenologia do espírito, ou seja, que as ações dos indivíduos no mundo material têm repercussões em suas faculdades mentais.

O ESPÍRITO PADECE DA VITÓRIA QUE O CORPO CONSEGUIU E QUE NÃO É APROVADA POR ELE EM TERMOS ESPIRITUAIS.

Escritores como DOSTOIÉVSKI (1821–1881), também falaram bastante sobre o peso mental de se adquirir vitórias cujos os métodos não são aceitos pela moral dos vencedores.

Assim nesse minissérie somos apresentados a uma família, os USHER que em verdade padecem do mal de não terem consciência, sofrendo do mesmo pesar que foi muito bem discutido nas obras PATRICIA HIGHSMITH (1921–1995) em seus dois mais famosos romances que viraram filmes do TALENTOSO SR. RIPLEY (1955):

A DOR MORAL DE NÃO TER MORAL.

Paradoxo letal, mas como disseram; o horror e o terror são as deliciosas dialéticas, que muita gente de hipocrisia, que fazem com que funcione o pensamento das genealogias de poder industrial que vão se formando nos E.U.A. Esses danos conscientes às suas psiques e espíritos os fazem mais cruéis e cada vez mais frágeis.

SE RIPLEY COM O TEMPO VEM A SUPERAR ESSE PARADOXO, OS USHER NÃO PODEM, PORQUE ESTÃO TODOS SENDO MORTOS POR UMA FORÇA TERRÍVEL.

Seus próprios desejos, corporificados em uma estranha espécie de feminino sagrado. Como já dizia um ditado árabe, cuidado com o que deseja, você pode conseguir.

E os USHER conseguem tudo o que desejam, menos seus verdadeiros anseios, serem reconhecidos pelo grande patriarca da família Roderick Usher (Bruce Greenwood). Do jeito que ele e sua irmã gêmea Madeline Usher (Mary McDonnell) sempre planejaram.

SE OS POBRES E PROLETÁRIOS SOUBESSES, OU ASSISTISSEM ESSA MINISSÉRIE, NUNCA MAIS DESEJARIAM QUE SEUS FILHOS FICASSEM RICOS.

Porque algo pode atendê-los. E é isso que aconteceu com Roderick (Zach Gilford ) e Madeleine (Willa Fitzgerald) quando jovens

SIGA PARA A PARTE 02:

UM OMBRO INIMIGO.

Os irmãos Roderick e Madeleine (respectivamente interpretados por Lincoln Russo e Graham Verchere ) quando crianças padeceram de grande sofrimento por serem filhos ilegítimos de um magnata da indústria farmacêutica William Longfellow (Robert Longstreet). Esse é um dos maiores insights da série, o de apresentar como os estadunidenses conseguiram aguentar nesses dois últimos séculos os seus mais variados crimes de guerra, seja eles domésticos e internacionais:

SE ENTUPINDO DE MEDICAMENTOS E OPIOIDES.

É sabido que regimes ditatórios de extrema-direita, como o fascismo em suas versões japonesas e alemãs, só conseguiram perpetrar parte de suas atrocidades e genocídios, graças a grande quantidade de drogas que os mesmos ingeriam.

TODA A EXTREMA-DIREITA DE FATO NÃO PASSAM DE NÓIAS BEM VESTIDOS. E ALGUNS NEM ISSO.

Aliás esse é umas das melhores discussões que poderíamos fazer atualmente, se não estivéssemos todos, TODOS, chapados com toda a sorte de antidepressivos e outras drogas legais possíveis que nos impedem de chegar ao que os budistas chamavam de iluminação e que hoje chamamos de surto psicótico.

ACHOU MESMO QUE ERA BONITO FICAR CONSCIENTE, BONITÃO?

Esse é o mote narrativo da série: Roderick Usher está surtando. Então ele está num processo assustador e aterrorizante de iluminação. E quem melhor para ouvi-lo do que seu mais querido inimigo, C. Auguste Dupin (Carl Lumbly).

COMO CERTA VEZ DISSE O BATMAN (1939), QUANDO LHE FALTA UM AMIGO, AS VEZES SERVE UM INIMIGO QUE LHE CONHECE.

A série segue uma tradição estadunidense, e coloca Dupin como um negro.

OS ESTADOS UNIDOS E A AMÉRICA DE MODO GERAL SEMPRE OS PROCURAM QUANDO ESTÃO EM CRISE CONSIGO MESMOS.

Roderick despreza Dupin, e simultaneamente o admira, justamente porque ele é um homem integro, literalmente: apesar de seus defeitos, nunca fez nada que pudesse estar contra sua moral. Roderick não tem moral. Inimigos ideais e bem construídos, a meu ver. Essa é o grande trunfo da série, a escolha de seus atores principais: todos eles são bastante experientes e com exceção, talvez ,de Mark Hammil no papel, deliciosamente mal, de Arthur Gordon Pym que daria orgulho a seu sombrio pai DARTH VADER (1977)), todos são familiares a nós como atores secundários e de suporte.

AQUI O DIRETOR MIKE FLANAGAN (1978) FAZ UM JUSTIÇA ENORME DEMONSTRANDO QUE ESSAS PESSOAS SÃO BEM MAIS DO QUE BELOS ROSTOS.

Mas ele também evoca uma das coisas mais assustadoras de todo o ocidente:

UMA MULHER SERVIL. OU ALGO QUE PARECE SER UMA MULHER SERVIL.

SIGA PARA A PARTE 03:

A SERVIDORA DA DOR CHAMADA SATISFAÇÃO.

Já havia escrito que o grande bug do Capitalismo é o desejo, que também é seu motor. Porque só podemos avaliar o impacto dele, após o mesmo estar concluído, e é isso que compõe o espírito.

Os irmãos encontram em determinado momento de suas vidas uma mulher chamada Verna (Carla Gugino), que significa literalmente “escravo que nasceu em casa de seu senhor”. E ela lhes propõe um clássico pacto bíblico: desejos por genealogia.

SIM, O DEUS CRISTÃO, E NÃO O DIABO, É QUE SEMPRE QUER ISSO; A GENEALOGIA DE SEUS SERVOS.

Então, em troca dos desejos dos irmãos, algo deve ser dado em troca, o futuro, mais conhecido como sua descendência.

PREÇO QUE ELES PAGAM COM PRAZER.

Mas Roderick começa a pensa seriamente se isso tudo vale a penas, coisa de Madeleine nem liga: afinal sobrinhos não são filhos mesmo.

Contudo todos os acordos, mesmo os que levam décadas, um dia precisam ser honrados, e essa de certa forma sempre foi a queda dos E.U.A., como em 1929.

Finalmente Verna vem cobrar seus serviços e aqui a estrutura da série mostra ser muito inovadora, porque conjuga em cada episódio personagens, conceitos e setores da bibliografia e biografia de POE, e toda a sorte da sordidez daqueles que pertencem à classe dominante estadunidense.

Por trás de cada um dos filhos de Roderick Usher vemos um aspecto das novas fortunas dos estadunidenses e como essas classes dominantes padecem constantemente de uma dor moral e uma falha de cognição constantes sobre si mesmas. Todos eles são vítimas da caridade de Roderick e Madeleine, e sentimos que eles estariam melhores se ficassem na pobreza.

VERNA SABE DISSO E QUER DEIXAR CLARO QUE ELA ATÉ SE DIVERTE COM SEU TRABALHO, PORÉM ELA LAMENTA QUE ALGUNS DESSES HERDEIROS REALMENTE NÃO MERECEM OS PROGENITORES QUE POSSUEM.

No conto que deu origem ao nome da série, publicado em 1839, os irmãos desprezam sua genealogia e fazem um pacto para que nenhum deles jamais tenha filhos e assim sua família venha a desaparecer da face da terra.

Tanto no conto, quanto na série, vemos se cumprir essa promessa, vinda da constatação espiritual de que própria parentela é composta de seres dignos de desprezo, principalmente porque eles não conseguem deixar de se desprezarem.

SIGA PARA A PARTE 04 (FINAL):

O LADO SERVIL DA FORÇA .

Um destaque para essa narrativa é deixar bem claro como Mark Hamill é de fato um excelente ator, brilhante em termos de interpretar o aterrorizante capanga dos Ushers; Pym, e como há nele um prazer aristocrático em ser extremamente sórdido.

Até Verna admira isso nele, reconhecendo no mesmo quase um igual. Verna tem um prazer enorme fantástico em servir homens e mulheres poderosos talvez pela liberdade de ser capanga de repugnantes elites, algo que é quase como ser a mensageira dos deuses, se é que ela não é uma espécie de entidade ancestral.

A MEU VER ELA É UMA ESPÉCIE DE DESEJO PRIMAL SÁDICO, QUE CONVENCIONAMOS CHAMAR ATUALMENTE DE “FEMININO SAGRADO”.

Porque no fundo, dentro do pensamento masoquista, assim como nos sistemas da extrema-direita, quem em verdade está no poder, é sim, a população. As pessoas tentam evitar isso, alegando que líderes como ADOLF HITLER (1889–1945) as enganaram, mas isso é evitar o verdadeiro terror da situação:

A VIDA MODERNA RARAMENTE PRESCINDE DOS MASSACRES.

Então, seja o dos indígenas, dos negros, ou mesmo dos palestinos, muita gente vai debater, criticar, e falar, porém, efetivamente, caro cúmplice aqui do SOMBRIONAUTA, reconheçamos:

VOCÊ MANDARIA SEUS FILHOS PARA COMBATER O EXÉRCITO DE ISRAEL A FAVOR DA PALESTINA E DA CISJORDÂNIA?

NÃO.

Não iria. Porque SADE, estuprador, canalha, pedófilo está certo: os ideais que usamos só são puros se continuarem no plano das ideias. Transformados em prática social eles inevitavelmente redundam no feliz título que ANATOLE FRANCE (1844–1924) deu a um de seus romances: os deuses da revolução têm sede, sede de sangue, sangue esse, de inocentes e culpados, de conservadores e de liberais, da direita e da esquerda.

Desde as GUERRAS NAPOLEÔNICAS (1803–1815) não temos líderes dispostos a fazer guerras selvagens em nome de impor ideias mais elevados a civilização.

NÓS NÃO TEMOS UM DOOM 91962).

Então com tudo isso, Pym percebe o que Verna é, uma servidora, que tal qual um gênio, se delicia em servir a esses líderes apenas para exercitar seu poder e assistir à sua queda.

ELE MESMO ESTÁ FAZENDO ISSO ENQUANTO SERVE AOS USHER.

Logo, é imune ao que ela está oferecendo. Só os sórdidos são imunes ao idealismo, porque já o vivenciaram na prática.

Finalmente isso me lembra algo que um personagem chamado PESADELO falou a um dos membros da Liga da justiça certa vez: “junte seu poder ao meu e dominaremos o mundo”, e sabiamente esse membro da liga diz, “não me interessa dominar o mundo”. PESADELO então responde “nem eu, apenas gosto de usar meu poder”.

GENTE, OU ENTIDADES, COMO PYM E VERNA É QUE SÃO OS VERDADEIROS ALICERCES DO CAPITALISMO.

POST SCRIPTUM

Como disse, sem capangas funcionais, nada dá certo mas também sempre me perguntei que tipo de gente gostaria de ser competente e servil.

RESPOSTA: AQUELE QUE SABEM QUE OS LÍDERES EM VERDADE SÃO MANIPULADOS POR AQUELES QUE DOMINAM.

TROTSKY (1879–1940) certa vez, creio, disse que um idiota numa organização bem constituída, vem a ter grande poder sobre o mundo, e isso resume muito o que vemos nessa produção: que certa gente competente não vê motivo para serem líderes.

SEUS PRAZERES VÊM DE SERVIR PARA DESTRUIR. ACHO QUE É ASSIM QUE OS EMPRESÁRIOS VEEM O FUNCIONALISMO PÚBLICO.

Então, de certa forma , Verna é uma espécie de “cobradora de impostos”, que veio cobrar dos Usher o devido tributo por terem usado por tanto tempo o bem público em suas visões privadas. Eles são necessários para certo fomento público, assim como os milionários da tecnologia na China atual e que já começam a ser descartados .

Por isso mesmo, cuidado quando ficar falando que políticos enganam o povo, porque talvez você esteja é com medo de se olhar no espelho e:

ADMITIR QUE NINGUÉM ESTÁ TE ENGANANDO, DOCE PESADELO.

Se gostou desse texto, 50 palmas serão bem-vindas e agradecidas.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).