ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES [FILME] (2023):

Sombrionauta
9 min readOct 27, 2023

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QUEM DERRUBA AS MULHERES DOS TOLOS.

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MACHADO DE ASSIS (1838–1908) é um dos escritores mais polêmicos do mundo. Sim, do mundo. Homem negro, conservador, intelectual, antirrevolucionário, pessimista, com tendências monarquistas, fez algo bastante perturbador em seus vários escritos: apresentou o cotidiano de sua sociedade. Essa prática que estava bastante em voga na literatura francesa, notadamente pós-revolução francesa e posterior restauração monarquista tentava entender os meandros da vida dos comuns, também conhecidos como massa.

Seus escritos em verdade visavam destruir o que MAX WEBER (1864–1920) chamou posteriormente os tipos ideais. ASSIS sistematicamente via a falência diária dos modelos heroicos prometidos por gente que defendia os ideais revolucionários. Nosso escritor negro, nas horas vagas de seu emprego como funcionário público, percebia bem, talvez por causa de seu trabalho, como a esfera pública era prenha de auto-abortos de todas as forma de nobreza.

MACHADO DE ASSIS NARRA A MORTE COTIDIANA DE TUDO QUE É MAIS DESTACADO À MEDIDA QUE ISSO SE TORNA ROTINEIRO.

Nosso querido cronista, contista, realista romancista estava seguindo, sem perceber a meu ver, a linha histórica chamada de “história da paz”, teorizada por BENEDETTO CROCE (1866–1942), onde o começo e final de um processo são dados pela quebra dos padrões de comportamento social. Tem sentido e funcionalidade, uma vez que demonstra que a história é feita mais de continuações, que de rupturas. E como os envolvidos nesse tempo tendem, mesmo discordando de alguns pontos, a seguirem essa linha cronológica, mesmo que isso os prejudique.

MARTIN SCORSESE (1942) NESTA PRODUÇÃO NARRA COMO O RACISMO CONTRA OS POVOS ORIGINÁRIOS É A GRANDE NARRATIVA DA HISTÓRIA DA PAZ NOS E.U.A.

Esse filme é sobre isso.

RICAS, PORÉM INDÍGENAS.

Outro desses terríveis cronistas do trivial é NELSON RODRIGUES (1912–1980), famoso por suas narrativas acerca de crimes regulares, que a semelhança dos escritos de MACHADO, revelavam a violência aceita, e esperada, no cotidiano, principalmente contra mulheres. O feminicídio seria um dos temas mais recorrentes na obra desse homem.

BOM, EM QUE PRODUÇÃO MASCULINA, MULHERES MORTAS NÃO SE MOSTRAM FASCINANTES AO PÚBLICO, INCLUSIVE O FEMININO?

Mas aqui também outra coisa nos chama a atenção: as condições pelas quais algumas dessas mulheres vinham a adquirir certa liberdade gerada a partir do divórcio, ou pela viuvez, de preferência pela última.

Nesse mundo rodriguano, as mulheres trabalhadoras, mesmo as burocratas, raramente conseguiam independência financeira e psicológica, mesmo as brancas, quanto mais as negras, Porque até mesmo quando tinham acesso a certa herança e renda, os entraves sociais, eventualmente chamados de ECONOMIA MORAL, bastante discutida por E.P. THOMPSON (1924–1993), vinham a atrapalhar ou suplantar seus objetivos pessoais.

THOMPSON em seu debate sobre a existência ou não de economias de mercado revela, pelo menos na Inglaterra, que existia de fato uma certa moral no mercado do XVIII, e caso ela fosse violada, a violência era inevitavelmente sancionada por aqueles que dela compartilhavam. Fazendo um pequeno exercício intelectual aqui, é interessante notar que certa economia moral da classe média de modo geral, parece apontar que mulheres que viessem conjugar poder financeiro e liberdade sexual deveriam ser taxadas de “vadias”, a não ser que fossem viúvas.

Tais modelos de mulheres, na literatura rodrigueana, eram as que conseguiam por fim a maturidade intelectual, apetite sexual, e estabilidade financeira própria suficiente para escolher parceiros sexuais, ou cônjuges oficiais, de maneira razoavelmente independente de suas comunidades.

AS CARREIRAS INTELECTUAIS DE BALZAC (1799–1850) E ROUSSEAU (1712–1778) NÃO EXISTIRIAM SEM ESSE TIPO DE MULHERES.

Até mesmo LOVECRAFT COUNTRY (2020) abordou que essa condição de liberdade se estendia às mulheres brancas lésbicas.

No Brasil existiam mulheres com esse nível de poder, e MARIA DE LOURDES JANOTTI (1938) chegou a escrever sobre uma delas, DONA ANA JÂNSEN PEREIRA (1798–1869) em sua obra O CORONELISMO: UMA POLÍTICA DE COMPROMISSO (1992) .

MAS ESSE FILME DEMONSTRA QUE A ECONOMIA MORAL DO RACISMO NÃO PERMITE QUE ISSO SE ESTENDA À MULHERES DOS POVOS ORIGINÁRIOS ESTADUNIDENSES.

O AZAR DE DAR SORTE.

EDUARDO GALEANO (1940–2015) em sua obra; AS VEIAS ABERTAS DA AMÉRICA LATINA (1971), comenta que um dos grandes azares continentais da América do Sul, foi justamente ter um terreno bastante fértil, tanto para o latifúndio, quando para a mineração.

FOI O QUE ACONTECEU COM O POVO ORIGINÁRIO OSAGE NO PÉRÍODO DE 1910–1930.

Após a descoberta de petróleo em sua reserva, eles passam a acessar um dos mais altos níveis de riqueza das quais populações indígenas no mundo inteiros jamais exerceram. Praticamente em suas terras na Oklahoma, E.U.A., houve uma reversão étnica em que os brancos eram a classe subalterna. Ali, durante um tempo, o sonho identitarista realmente se expressou.

O QUE SCORCESE QUER DEMONSTRAR É QUE O RACISMO É SUPERIOR A ESSA PAUTA.

Porque o que muita gente, inclusive o JONES MANOEL (1990), percebeu é que dinheiro não é o fator fundamental de poder no sistema capitalista.

UAI?

Sim, o poder no Irmão-Capitalismo se faz pelo controle dos meios de produção. Ter dinheiro não torna isso necessariamente imediato; além de ser fundamental ao nosso querido sistema explorador colonialista manter o racismo como sua política básica de controle de mão-de-obra, junto com a homofobia e o machismo.

Logo no decorrer do filme nosso cineasta demonstra que a economia moral racista passa a massacrar os Osage, e ninguém, repito ninguém, tem dúvida de quem são os responsáveis, mas simplesmente as pessoas não acham estranho povos originários serem mortos, das mais diversas maneiras, as vezes bem explosivas.

ÍNDIO BOM, MESMO RICO, CONTINUA SENDO ÍNDIO MORTO.

O filme não esconde em nenhum momento o que vai acontecer e por isso é brilhante, talvez um dos mais de que eu tive o privilégio de assistir, por demonstrar que não há nenhum mistério ali envolvido, mas sim, uma apatia, inclusive da maioria dos Osage sobre seu próprio genocídio amador que estão sofrendo.

PORTADORES DE RIQUEZA, ELES NÃO CONSEGUEM MAIS EVOCAR SUAS ORIGENS GUERREIRAS, LOGO, ONDE BALAS E EXÍLIOS FALHARAM, O DINHEIRO TEVE SUCESSO EM PACIFICÁ-LOS.

Então, ter dinheiro não concede poder a eles. Pelo menos não o mesmo que um branco teria.

Scorcese nesse sentido mostra-se um gênio na arte de narrar, mais uma vez, como o lumpemproletariado age de acordo com uma economia moral pautada no pensamento dominante, mesmo que não receba ordens e legislações diretas para que faça isso.

Esse pobre tolos são marionetes, ainda que fundamentais, dos poderes da versão mais primitiva, porém basilar do Irmão-Sistema, o patriarcado e o paternalismo do agronegócio estadunidense.

Mas existe mais um aliado. Ou aliadas: as próprias mulheres indígenas.

OS COIOTES QUE NÃO ODIAVAM AS MULHERES QUE MATARAM.

Para o fio condutor da narrativa temos o romance entre Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio) e a herdeira de uma fortuna em petróleo, a originária Mollie (Lily Gladstone). Perdão. Romance é um termo meio pesado. O que rolou foi o clássico “comprar um marido bonito que quer o meu dinheiro e, portanto, vai estar na minha mão o tempo todo”.

SE ACHA ESSE TIPO DE PESSOA HORRÍVEL, ENTÃO ABANDONE A PEDAGOGIA E PARE DE ACREDITAR NA OBRA; DO CONTRATO SOCIAL (1762).

Um das frases na produção resume toda a tragédia desse filme, falada justamente por Mollie, quando compreende que Ernest a está cortejando a mando de seu tio “Rei” William Hale (Robert De Niro):

“O coiote quer dinheiro”.

Todos os homens ali fazem o papel das matronas, e aqui vai um elogio ao pessoal feminista e trans que sempre defendeu que o gênero é uma construção social econômica.

TODAVIA APRENDAM QUE O RACISMO SUPERA ISSO TUDO.

Então nós acompanhamos como todos ali fizeram um contrato social silencioso e ao mesmo hipocritamente balzaquiano em que os homens agem como esposas esperando que suas mulheres morram para que eles possam herdar as suas fortunas.

E ESSAS PASSAM A ESTAR NAS MÃOS DO PATRIARCADO FAMILIAR, QUE ALI SE INSTALOU.

Logo, eles são parecidos com nossos escritores exploradores, porém são bem menos brilhantes, e o filme quer deixar isso claro: sem capangas eficientes, nenhum plano é infalível.

O CEBOLINHA (1960) ENTENDE ISSO MELHOR QUE NINGUÉM.

Mas quem quer ser eficiente, não quer ser capanga muito tempo. Contudo, Ernest Burkhart não tem essa pretensão, então vemos como esse tipo de homem,potencialmente feminicida, não mostra ter nenhuma grande habilidade, a não ser estar no padrão de beleza branco, o que para as mulheres originárias, é um troféu.

O PROBLEMA É QUE ELES SÃO HOMENS AINDA, ENTÃO, TÊM MAIS DISPONIBILIDADE EM PRATICAR O ASSASSINATO DAS SUAS MULHERES AINDA QUE AS AMEM, DE FATO.

Eles são mesmo belos coiotes, carniceiros tais quais todos os chacais, então executam suas mulheres não por alguma maldade, mas sim, simplesmente, porque sentem que devem executar sua terrível economia moral de maridos que respondem a um grande pai maçônico.

Ponto para o feminismo radical: realmente nesse filme, de longos e prazerosos 206 minutos, demonstra muito bem que parte das execuções estão acontecendo não só porque as mulheres são originárias ricas, mas principalmente, por seus executores serem homens, muitas vezes de sua confiança, justamente por elas os entenderem como propriedades maritais.

Ledo engano.

POR QUE AS MULHERES NEGRAS NO CAPITALISMO AMAM OS TOLOS BRANCOS?

E por fim o longa-metragem demonstra a importância dos governos federais para eliminar esse tipo de mandonismo local. O Agronegócio, seja brasileiro ou não, ainda hoje odeia com todas as forças como governos centrais comprometidos, ontologicamente, com o bem público nacional, tendem a intervir em seus poderes locais.

Logo aparecem os X-MEN, perdão, os G-MEN, não os do THE BOYS (2006–2012), e sim, os famosos agentes do F.B.I. (Federal Bureau of Investigation, ou, Departamento Federal de Investigação 1908), para resolver a situação.

CERTO? ERRADO. AQUI É O CAPITALISMO, MEUS CAROS.

Assim, você que espera que forças federais realmente resolvam problemas locais, ligados à grandes fortunas do Agronegócio, aprenda que isso não irá acontecer.

NEM AQUI, NEM NA CHINA, ANTES DO SOCIALISMO, E OLHE LÁ.

Tudo isso me faz lembrar um dos melhores contos de MACHADO DE ASSIS, QUEDA QUE AS MULHERES TÊM PARA OS TOLOS (1861), em que ele, descaradamente, traduz sem dar crédito (mais conhecido com “plágio”) o original do autor belga, VICTOR HÉNAUX (1822–1896), que por sua vez, o havia publicado em 1850.

Ali, ele defende que os tolos sempre estão seguros de si, justamente porque ignoram como e porque estão nas posições de poder que exercem.

Esse tipo de homem é o que Burkhart representa nessa produção: alguém que é privilegiado pela sorte de ser branco, ligado a uma família rica, e ser belo, coisa que lhe dá tantas vantagens estruturais econômicas, que nego chama de “destino”, ou “sorte”, ou ainda “graça divina”, com total tranquilidade.

HOMENS NEGROS NÃO PODEM SE DAR ESSE LUXO. E SIM, ESTOU DESTACANDO O “HOMEM” AQUI.

Sim, porque minhas caras mulheres negras, vocês estão certas e o machismo afeta vocês de maneira geral e em todas as classes sociais, como bem a JOJO TODYNHO (1997) parece que não aprendeu.

E não vai aprender: é isso que o SCORCESE quer demonstrar, mesmo não sendo socialista de esquerda: algumas barreiras econômicas fundamentais do Irmão-Capitalismo não podem ser violadas nem por meio da riqueza. Coisa que o roteirista do 100 BALAS (1999–2009), tentou demonstrar.

CONTUDO, A ESPERANÇA DA RIQUEZA SER UM TRANSFORMADOR SOCIAL DE FATO É UM CANTO DO “SEREIO” MUITO FORTE (MAIS CONHECIDA COMO “LIBERDADE”)

Tudo aponta para algo horrível, podre e simplesmente brilhante: o que faz as mulheres negras amarem os tolos brancos é quererem, por meio de possuí-los, de alguma forma, serem uma espécie de duplo dos mesmos.

QUE DOCE E SUICIDA ILUSÃO, MINHAS QUERIDAS.

POST SCRIPTUM

Eu estou quase indo assistir uma segunda vez esse filme. Porque eu realmente adoro a experiência de ir a uma sala de cinema, e adorei mais ainda a experiência que esse narrativa me proporcionou.

Vê-lo, me fez perceber como a cronologia pacificadora proposta por CROCE, realmente é funcional e que consegue abarcar como é possível criar uma certa estabilidade em meio a enormes momentos de crise. A produção então, no cinema sobretudo, é uma belíssima experiência narrativa para historiadores que desejam entender bem, qual o efeito que essa escrita deve exercer sobre seus leitores.

Fiquei bastante animado em perceber como esse diretor e produtor, mais uma vez conseguiu expressar a existência, mesmo em nossa pretensa pós-modernidade, de um espaço para as grandes narrativas históricas, mesmo elas estando decadentes desde o fim da UNIÃO SOVIÉTICA em 1991.

Contudo, o público portador da resiliência para tal narrativa se torna escasso. SCORCESE sabe disso. É um final adequado de um profissional da ficção fílmica que soube julgar bem o mundo que narrou.

ENTÃO APRENDA, JOVEM HISTORIADOR, A NARRAR O PASSADO NOVAMENTE.

Se gostou desse texto, 50 palmas serão bem-vindas e agradecidas.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).