TÁR [FILME] (2022):

Sombrionauta
6 min readMar 6, 2023

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ARQUIVADA, NÃO APAGADA.

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Linguagem é uma coisa fantástica, porém superestimada. Porque muito do que chamamos de pós-modernidade (1989) é apenas uma mudança de palavras sobre as mesmas bases materiais, e como disse o velho KARL MARX (1818–1883) mudar os termos é apenas uma estratégia para se fingir que houve uma mudança material real.

Em última análise, mudar a linguagem, sem mudar a materialidade que a produziu é apenas criar uma consciência em desacordo com a realidade concreta, em suma, se alienar do mundo verdadeiro.

SIM, EU SEI QUE A VERDADE É RELATIVA, MAS ISSO NÃO QUER DIZER QUE ELA É IMATERIAL.

Mesmo assim, talvez num impulso de conseguirmos operacionalizar as grandes quantidades de informação que nos são enviadas, também contra nossa vontade, tentamos sintetizá-las e arquivá-las em sistemas de compactação de dados.

Compactar é um grande palavra recentemente: estamos trabalhando com nomes e acrônimos que serviriam para sintetizar as informações de forma a que possamos responder prontamente aos sistemas de comunicação, e que acabaram criando termos como TAR (acrónimo para Tape Achive), que é um formato de arquivamento de informações digitais que a princípio se referia a fitas magnéticas, e que hoje é estendidos para arquivos tipo .zip ou .rar.

GRAÇAS A ESSE TIPO DE FACILIDADE ESTAMOS NOS TORNANDO TACANHOS ACUMULADORES DE INFORMAÇÕES DETALHADAS E INÚTEIS.

Mas outras palavras poder ser TAR. Por exemplo as palavras feminismo e cancelamento, que em verdade têm várias conotações em separado e ainda mais, se combinadas.

Este filme que resenho tenta fazer um TAR do que é o cancelamento para mulheres tidas como feministas, na visão do Capitalismo.

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A música é uma coisa fantástica, mas superestimada: ela também é linguagem, então, ela é restrita a códigos e sonoridades pré-definidos pela própria gramática musical, onde, “criatividade” vem mais da combinação de seus vários recursos em sistemas que não eram tão evidentes.

SE VOCÊ ACHA POUCO, COM 12 NOTAS QUE PODERIAM SER REPETIDAS DARIAM CERCA DE 8.916.100.448.256 SEQUÊNCIAS .

É muito, mas mesmo assim, é limitado, porque quem faz som é a matéria e ela, apesar de ter números astronômicos, é circunscrita.

Porém dentro dessas possibilidades matemáticas, existe o erro, e quanto ele é inserido de maneira a criar uma nova gramática, é tido como genialidade.

ESSA É A PERGUNTA IMPLÍCITA QUE ESSA PRODUÇÃO FAZ: GENTE DECENTE NÃO ERRA, LOGO NÃO É CRIATIVA. A GENIALIDADE SERIA A MATÉRIA DOS DESVIANTES, E QUE DENTRO DESSA CATEGORIA COMPACTADA, EXISTEM OS CANALHAS: AQUELES QUE ERRAM POR PODEREM ERRAR SEM SOFREREM PREJUÍZOS.

E NA CATEGORIA DOS CANALHAS, EXISTE A SUBDIVISÃO MENOR DAS CANALHAS, E DENTRO DESSA, AS DAS CANALHAS LÉSBICAS.

Lydia Tár (Cate Blanchett) é que será o parâmetro de julgamento de como mulheres lésbicas feministas podem ser tão canalhas quanto machistas.

APARENTEMENTE.

Na narrativa Tár é uma virtuose, uma maestro (não, ela não gosta de ser chamada de maestrina: Tár não quer mudar a linguagem que a levou ao poder e isso é que é a grande dica que o filme nos dá sobre o que vai acontecer) que chegou ao mais alto posto nessa carreira em termos internacionais: a de ser a condutora chefe da Filarmônica de Berlin.

Todos os títulos acadêmicos e artísticos de sua área foram dados a ela, mas o que interessa justamente é que isso é um pré-requisito para ela ter chegado a esse posto, mas não é fundamental.

O QUE É FUNDAMENTAL SÃO AS INTRIGAS DE BASTIDORES.

Nessas intrigas outra coisa aparece, coisa que a educada, cortês e manipuladora Tár sabe usar muito bem: a tecnologia masculinista.

SIGA LENDO PARA A PARTE 02:

A tecnologia masculinista, basicamente, é o produto do machismo, como economia política: são uma série de visões de mundo, alicerçadas no pensamento patriarcal (que não quer dizer “masculino” exatamente e sim, “paternal”, como vi uma moça no TIK-TOK (2016) explicar), e que acabam por afetar nossas percepções de mundo material e afetar nossos meios de comunicação, que também são meios de produção de sentido, como bem explicou RAYMOND WILLIAMS (1921–1988).

Assim como bem demonstram os vários textos das feministas radicais, a feminilidade também é produto da masculinidade, sendo assim uma tecnologia masculinista.

TÁR É A PERSONAGEM QUE REPRESENTA ESSA TECNOLOGIA.

É bem sabido que mulheres quando chegam a postos de poder dentro do Irmão-Sistema, tendem a adquirir qualidades e comportamentos masculinos, sendo que as falas de Tár são uma síntese disso: ela cita várias de suas influências, e a minoria são mulheres, mas os compositores que ela admira, são via de regra, assediadores.

Porém o filme apresenta bem um problema na postura de cancelamento, e para o próprio feminismo, e por extensão, para a negritude e para o pensamento LGBTQ+:

PODEMOS CANCELAR, OU SEJA, NÃO USAR A TECNOLOGIA DE ASSEDIADORES QUE FORAM FUNDAMENTAIS PARA A FORMAÇÃO DE NOSSAS CIÊNCIAS E PROFISSÕES?

RESPOSTA: NÃO.

Tár tem consciência disso: tanto que suas vestimentas, seu tom de voz, a sua relação com a sua filha, são de um homem viril vindo das profissões liberais.

Em uma aula ela chama a atenção de um jovem negro LGBTQ+ militante de que suas percepções de mundo profissional estão alicerçadas em suas preferências civis e de gosto:

LOGO, NÃO SÃO PROFISSIONAIS.

Depois essa aula será manipulada, para dar entender que a maestro o assediou coisa que não aconteceu.

TÁR É UMA VERSÃO FEMININA DO MACHISMO, LOGO SABEMOS QUEM SÃO SUAS PRINCIPAIS VÍTIMAS: MULHERES JOVENS.

SIGA LENDO PARA A PARTE 03 (FINAL):

Durante o filme o que fica claro e evidente é que Tár é brilhante, mas o é, porque é uma canalha e sabe disso.

BOM, JÁ DIZIA OUTRO GÊNIO MACHISTA, NELSON RODRIGUES (1912–1980), O CÍNICO É AQUELE QUE SEMPRE FALA A VERDADE.

Claro que a pergunta é se Tar pode ser machista, visto que é uma mulher biologicamente.

POR DEFINIÇÃO, BIOLÓGICA, NÃO.

Mas o que o filme quer perguntar é se para ser machista, uma pessoa precisa necessariamente de um pênis. Sabemos que para ser um estuprador, um homem, ou mulher, não precisa disso: essa é a chamada cultura de estupro.

Então a pergunta da produção é: o machismo precisa necessariamente ser falocêntrico?

Durante a narrativa descobrimos que Tár fez uso de sistemáticos assédios para manter mulheres jovens, mas não só elas, sobre seu poder e assim alcançar a posição de hegemônica onde ela se encontra. Mas elas também são beneficiadas por Tár: aqui está a essência da virtu machista, ela tem certo grau de benevolência para com suas vítimas. E a vítima que destruir Tár, é a que tem maior possibilidade ser uma nova Tár.

O problema real é que isso se expressa na forma apaixonada que ela conduz a Filarmônica de Berlim, e nisso Blanchett nos estrega como uma pessoa pode amar de fato a música. Bom ela mesma esteve envolvida em uma recente polêmica sobre isso envolvendo a atriz MARGOT ROBBIE (1990)

PARA VER QUE TEM ALGO DE TÁR EM BLANCHETT.

Sua paixão desenfreada, seu desprezo por quem não a tem (que ela chama pejorativamente de “robôs”) mostra tudo o que é mais detestável numa frase que usamos correntemente:

“NUNCA DESISTA DE SEUS SONHOS”.

Tár irá cair, mas nunca para todo sempre. Ela volta a suas origens, que são muito parecidas com a de outro personagem feito por Robbie Tonya Harding (EU, TONYA (2017)).

Finalmente percebemos que estávamos certos: Tár é apenas uma personagem de si mesma que compactou todo o machismo que lhe cercava e lhe devolveu, ou descompactou, no que ele acreditava ser um maestro.

Por fim ela será desmascarada e cancelada…

SÓ QUE NÃO.

Ninguém com tamanha habilidade e genialidade é plenamente descartado, e logo o Irmão Capitalismo achará outra função para ela, com seu salário devidamente rebaixado, não porque ela cometeu atos atrozes e sim, porque cometeu o único erro verdadeiro em uma hierarquiza capitalista: ser pega.

Tanto que usarei aqui um termo que caiu em desuso, mas que é muito mais eficiente, do que a palavra “cancelamento”: cair em desgraça.

E QUEM CAI, SEMPRE PODE LEVANTAR, MEUS DOCES JOVENS QUE ACREDITAM QUE SEUS CANCELAMENTOS EM REDES SOCIAIS SÃO O MESMO QUE APAGAMENTOS DA REALIDADE CONCRETA.

Siga lendo, para um pequeno comentário sobre, mulheres canceladas no medium:

Fascinante como mulheres como KAROL KONKA (1986) sofrem mais com cancelamentos do que homens que cometem os mesmos atos desprezíveis.

E SE FOREM NEGRAS, NEM FALE.

Porque em verdade tal qual Tár elas cometem o erro de serem pegas ou de serem derrotadas.

Já dizia o machista MAQUIAVEL (1469–1527) que o príncipe não deve ter características afeminadas, mas o mesmo também disse que mulheres, quando se propõe a fazerem o que homens fazem, sempre executam essas prerrogativas melhor.

Logo, mesmo para MAQUIAVEL, já se tem uma discussão se o machismo, ou a virtu, sejam qualidades / tecnologias, a priori falocêntricas.

Assim devemos pensar melhor se ser varonil quer dizer explicitamente ser do sexo masculino.

BOM, EU VI QUE AS PASTORAS EVANGÉLICAS TÊM SE DEFINIDO COM VARÃS… LOGO…

Se apreciou, 50 palmas serão bem vindas.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).