TUDO EM TODO LUGAR AO MESMO TEMPO [FILME] (2022):

Sombrionauta
7 min readJul 3, 2022

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Hiperescapismo profundo.

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Tem-se pensado novas formas de reformatar o velho capitalismo para que ele continue o velho capitalismo. Acho que seria interessante, nesse sentido, de chama-lo de Pós-Capitalismo, mas acho que é melhor ainda chama-lo mesmo de pós-moderno.

Segundo Zygmunt Bauman (1925–2017) o melhor intelectual da auto ajuda para acadêmicos dos último 30 anos, em verdade o pós-modernismo não passa de hipermodernismo, ou seja, que o projeto de razão dado pelo iluminismo (1685-) estender a razão matemática a todos os humanos, agora foi “exponenciado”, graças às tecnologias modernas da informação.

MAS APENAS O PROJETO, NÃO SUA MATERIALIDADE.

Assim vivemos em uma curiosa época em que todos os projetos subjetivos individuais são sempre prioritários perante as necessidades do espaço público: todas as crises mundiais são menores perante o fato de que não conseguimos baixar o aplicativo certo em nossos celulares, por exemplo.

O NOSSO VAZIO EXISTENCIAL É PREENCHIDO PELO EXPERIMENTO CONSTANTE DO MATERIALISMO QUE NÃO SE APROFUNDA EM NADA EXATAMENTE.

E, ao não nos aprofundarmos, não sentimos muita coisa, porque o espírito (cultura do espaço público sobre nossa interpretação subjetiva) provém da imanência de esquadrinhar mundo, o que leva a uma maior interiorização de nós mesmos.

Portanto, superficialidade não é nada mais nada menos, do que não se aprofundar nos motivos que nos coligamos a uma materialidade e não outra.

Aparentar o momento é mais importante do que senti-lo, porque afinal nossas redes sociais devem ser preenchidas e não dá para fazer isso e ter momentos profundos de prazer e dor honestos simultaneamente.

Essa pressa em nos expressar no público, está destruindo nossa interioridade ,ao não conseguirmos nos aprofundar em nada que é coletivo.

Nesta produção temos a constatação de um diabólico, ou confucionista, pastiche pós moderno que se disfarça de blockbuster, para que não percebamos que ele é um filme de arte.

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Os filmes de arte estadunidenses geralmente querem retratar os pobres de maneira dramática, porque é assim a única maneira que os ricos podem conseguir assisti-los: a comédia dói em quem não é comum.

POR ISSO QUE O CORINGA DO HEATH LEDGER (1979–2008) JAMAIS VAI PARECER COM O DO JOAQUIN PHOENIX (1974): PORQUE ELE ESTÁ SE DIVERTINDO DEMAIS PARA PRECISAR DA PIEDADE DE ALGUÉM.

Nesse sentido eu sempre acho que o cinema de arte tem essa função de transformar tudo em tragédia e predestinação para que nos seja concedida a paz do esquecimento: quando se sabe que tudo será igual, para todo o sempre, para quê se preocupar com os detalhes?

A COMÉDIA RI DE QUEM NÃO PERCEBE QUE OS DETALHES MOSTRAM QUE A TRAGÉDIA NÃO É PERIPATÉTICA, E SIM, APENAS PATÉTICA.

Aqui neste filme foi feita uma deliciosa piada, semelhante àquele truque de disfarçar frutas em meio leite condensado, para convencer crianças a comer coisas mais nutritivas: um filme de arte embalado em uma comédia.

Somos apresentados à vida de Evelyn Wang (Michelle Yeoh), uma mulher, mãe e esposa normal, logo, a beira de um surto psicótico iminente. E na verdade é isso que acontece, mas o filme tenta disfarçar, se não ninguém com menos de 30 anos ia assistir.

Numa estranha sequência de eventos, ela descobre que é a esperança de todos os multiversos.

TODA A MÃE ACHA QUE É ISSO, SAIBAM. E NA VERDADE É MESMO.

Toda a mãe acha que deve cuidar do marido, das contas, da filha, da burocracia e de todos os aspectos da vida de sua família, para ela mesma não enfrentar sua própria interioridade.

AS MÃES NÃO AMAM SUAS FAMÍLIAS, APENAS SE ESCONDEM POR TRÁS DELAS, E É ISSO QUE CRIA SUA AFEIÇÃO COM O TEMPO.

Dizemos que elas são fortes, como explicou a série FOR LIFE (2020–2021), para ocultarmos que estamos sendo beneficiados desse tipo de exploração.

Mas se a tragédia fizer um filme assim, você, você mesmo, que está explorando sua mãe para ter tempo de ler essa resenha, não leria essa resenha.

SE NÃO PAROU DE LER OU OUVIR AGORA.

Não se sinta culpadu, porque ela está te usando de desculpa para justificar os fracassos na vida dela também, e se não fosse isso, você também não se sentiria tão inseguru, ou no caso da produção, insegura.

Porque a grande sacada do filme é a clássica crise de uma mulher com sua filha, ou seja, com uma versão sua, que provavelmente a exaspera, pois é muito parecida com ela mesma.

E COMO MÃES NÃO SÃO MUITO CHEGADAS NELAS COM POUCA IDADE, A CRISE É INEVITÁVEL.

Com isso se revela o grande subterfúgio dessa narrativa: por trás da ficção científica e comédia, está o terror de enfrentar que nosso escapismo, nossos sonhos não realizados, se tornaram uma forma de hiperescapismo, justamente porque agora nossa tecnologia nos permite ter mais apps’s em que podemos fingir que somos algo que jamais poderíamos ser materialmente: com tantas opções de devir, deixamos de ser.

A FALTA DO OUTRO NOS TIRA NÓS MESMOS: MAS O ESPAÇO PÚBLICO NÃO PODE SER TÃO FACILMENTE CONTIDO, E ASSIM O OUTRO SEMPRE NOS ALCANÇA, POR MEIO DA INTERIORIDADE INESPERADA DE TESTÍCULOS E OVÁRIOS.

Nosso verdadeiro outro, nosso verdadeiro alienígena em termos pessoais sempre é a geração que nos sucede, mais precisamente as crianças de nossas famílias.

E COMO ELAS SÃO MAL-EDUCADAS: AFINAL FOMOS NÓS QUE FINGIMOS CRIÁ-LAS.

Esse tipo de tema já foi explorado por outra filmografia, mas de maneira bem mais brutal, porque é mais realista; em verdade esse filme se parece muito com uma das narrativas de outra produção chamada de O CLUBE DA FELICIDADE E DA SORTE (1989), inspirado no romance de mesmo nome da escritora sínica-estadunidense Amy Tan (1952): ela é dividida em quatro narrativas, que são as memórias de quatro mulheres de meia idade nos E.U.A., acerca de suas vidas na China, enquanto jogam Mahjong.

A base dessas rememorações é a relação dessas mulheres com suas filhas: em uma das histórias, YING-YING E LENA ST. CLAIR, mãe e filha respectivamente, temos um enredo muito parecido com o do filme que estou resenhando.

Tanto que justamente nessa pequena história tem uma frase maravilhosa que era mais ou menos essa “como eu não tinha alma, não consegui transmiti-la para minha filha”.

TUDO EM TODO LUGAR AO MESMO TEMPO FAZ A MESMA AFIRMAÇÃO NO DECORRER DOS SEUS 139 MINUTOS.

INÍCIO DO SPOILER.

Porque a vilã é apenas a uma das versões da filha de Wang, Joy Wang / Jobu Tupaki (Stephanie Hsu): uma jovem levada aos extremos por sua exigente mãe e que por isso teve sua mente fragmentadas em vários universos.

FIM DO SPOILER.

Assim o filme não é sobre lutas, mas sim sobre o medo de uma mãe de que seu inevitável fracasso vai se reproduzir na filha.

E VAI.

No entanto, o filme compensa isso apresentando e ressignificando a figura do marido e pai de ambas, respectivamente: Waymond Wang (Ke Huy Quan).

Homem gentil e paciente, que a meu ver, tem o melhor diálogo do filme inteiro, ao apresentar a gentileza e a doçura como outra forma de arte marcial.

Graças a essa fala, Evelyn, a dura e frustrada mãe vê uma coisa simples: sua filha não é ela, e ela então pode se dar ao luxo de poder deixar de ser o fracasso que sempre foi.

ELA PODE, COMO DIZ UM DITADO VELHO “ROLAR AS PEDRAS E VER O LIMO”.

Evelyn não precisa se preocupar que sua filha destrua a própria vida, porque ela é adulta o suficiente para fazer isso sozinha. Joy foi bem sustentada por sua mãe e pai, logo pode se dar ao luxo de quebrar a cara.

SEUS PAIS ESTARÃO ALI, NÃO PARA AJUDÁ-LA A SAIR DO ABISMO, E SIM PARA ROLAR JUNTO COM ELA.

Aproveitando, eu mencionei que o nome em inglês de O CLUBE DA FELICIDADE E DA SORTE é THE JOY LUCK CLUB?

No fim, esse filme tenta, e consegue, olhar para a figura tradicional da mãe trabalhadora, e fazer com que ela aceite que seu trabalho terminou.

Sua filha é infeliz, porque descobriu que é adulta: crescer é ficar desconfortável com algo, diferente, todo o tempo e é isso que nos faz ficar maduros.

Ser maduro significa que o destino, as rosquinhas de chocolate e outros círculos também são apenas pequenos paliativos para o fato que ao ficarmos mais velhos percebemos que esse negócio de uma circularidade vital não existe tão facilmente.

TEMOS QUE LUTAR MUITO, CONTRA TODA A INSTABILIDADE DO COTIDIANO, TODOS OS DIAS, PARA QUE AQUELE EVENTO PLENO DE DISCIPLINA, A ROTINA, ACONTEÇA.

Evelyn vai descobrir dentro de si, todos os sonhos que abandonou, e que estão esperando por ela.

Se muitos deles não vão acontecer, paciência, nem sempre temos o que queremos do jeito que desejamos que tivesse acontecido.

Essa é a grande mensagem desse filme: escapismo é necessário para uma vida séria, rotina é um conforto em meio ao imprevisível dia a dia normal, e finalmente, filhos nos ensinam coisas importantes ao não nos obedecer.

E no final, toda a tecnologia, todo o ruído, toda as diversas opções ilusórias do que somos nos apontam para uma verdade: a culpa não é de nossas mães.

AFINAL ELAS FORAM FILHAS DE ALGUÉM.

Ao voltarmos a elas, para perdoá-las por terem se traído, reconhecemos que elas eram tão confusas como qualquer mulher que pariu é. Ao vê-las como humanas, restauramos a sua saúde, total, assim como damos o primeiro passo para a nossa.

CABE A NÓS NÃO DECEPCIONÁ-LAS SEGUINDO AO PÉ DA LETRA TUDO O QUE ELAS DISSERAM QUE NÓS SERÍAMOS.

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Enfiim, penso que os jovens críticos desse filme estavam muito preocupados em compará-lo com quaisquer produções da Marvel Studios (1993) em vez de se perguntar o que seria o escapismo, o horror de perceber que essa sensação é em verdade terror, de descobrir que o maravilhoso é sempre inferior ao real, até em termos de onírico.

O REAL É FEITO POR NÓS EM NOSSA MATERIALIDADE, E O ONÍRICO MUITAS FEZES PELA FUGA DO MATERIAL A QUE SOMOS SUBMETIDOS. CONTUDO ESSES CRÍTICOS SÃO JOVENZINHOS E AINDA NÃO APRENDERAM A ERRAR.

Eles não compreenderam essa deliciosa e engraçada narrativa, sobre o trágico tentando entender sua relação com o cômico.

E SE UM DIA SE ENTENDEREM, TALVEZ O MUNDO POSSA VER ALGUMA GRAÇA EM SUA DESVENTURA.

Se apreciou, 50 palminhas serão bem-vindas.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).