THIS IS NOT AMERICA / RESIDENTE [CLIPE] (2022):

Sombrionauta
7 min readMar 25, 2022

--

Nações e nacionalismos crioulos.

Ouça esse conteúdo no spotify, caso esteja em um celular, ou clique no link abaixo, caso esteja num computador:

Segundo Eric Hobsbawm (1917–2012) em sua obra A ERA DOS IMPÉRIOS: 1875–1914 (2015) o nacionalismo começou com uma ideia de direita liberal acerca da organização do território como forma de restringir bens públicos a quem não era reconhecido nele. Essa noção se chama “patriotismo”, ou seja, a exclusão de direitos sociais dada por uma designação burocrática, pautada na ciência do Estado que administra aquele local, e por consequência, da elite que tem hegemonia ali.

Em outra obra, como o nome do capítulo do livro acima, NAÇÕES E NACIONALISMO DESDE 1780 (1991), ele debate como esse forma de administração estatal, a saber, o Estado-Nação (alguns acham que é no século XVIII que ele aparece, mas tenho impressão que a Portugal de 1385, fundada pelo Mestre de Avis (1385–1433) seria o princípio disso tudo), vem a organização dos interesses dessa ciência (Estado) com os dessa nação (sociedade em sua historicidade).

O GRANDE SÍMBOLO DESSE TIPO DE ESTADO-NAÇÃO CAPITALISTA LIBERAL É A BANDEIRA NACIONAL.

Quando um clipe que reivindica a origem étnica ancestral apresenta bandeiras por todo o lado sinto o cheiro pleno de sal europeu.

À medida em que o clipe do ex CALLE 13 (2004–2015) Residente (1978)avança, temos um festival de etnias, reivindicando um conceito bem europeu: a nacionalidade.

[SIGA LENDO A PARTIR DAQUI SE VOCÊ VEIO DO INSTAGRAM]

O nacionalismo tem sua versão de esquerda, chamada de “autodeterminação dos povos”, onde tais grupos humanos teriam a primazia de discutir e orientar os recursos de seus territórios. Então aqui começa o problema: sabemos hoje em dia que nem todos os povos originários eram nômades, e talvez nenhum tenha sido, logo combinavam estilos agrícolas que não eram europeus nem asiáticos, numa espécie sedentarismo próprio. [ https://revistapesquisa.fapesp.br/agricultores-e-sedentarios/ ].

Assim, há um conflito inerente entre a concepção do Estado-Nação, com os modos de ocupação de território dos povos originários.

OU NÃO: NO PARÁGRAFO ANTERIOR ESTOU FALANDO DOS POVOS ORIGINÁRIOS DO TRONCO LINGUÍSTICO JÊ QUE VIVIAM ENTRE O SUL DE SÃO PAULO E O NORTE DO RIO GRANDE DO SUL NA PRIMEIRA METADE DO MILÊNIO PASSADO.

MAS SE FOSSEM OS INCAS, MAIAS E ASTECAS, EU NÃO OS ACHARIA TÃO DIFERENTES DOS IMPÉRIOS DO MUNDO ANTIGO QUE FORMARAM O PENSAMENTO DO IMPERIALISMO ESPANHOL E PORTUGUÊS.

Porque os modos de vivência nesses impérios nativos do continente que viria a ser a América, antes da invasão europeia, não eram tudo isso que se falava : Hernán Cortés (1485–1547) ao perceber isso deduziu que “Maquiavel era ali aplicável”: sem a revolta de outros povos dominados pelos Astecas apoiando o conquistador, dificilmente ele teria vencido.

APROVEITANDO, IMPÉRIO É IMPÉRIO E NÃO IMPORTA SE É INCLUSIVE AFRICANO: PERGUNTE AOS CONSTRUTORES DE PIRÂMIDES GREVISTAS DE DEIR EL-MEDINA (1155 A.E.C.) SE ELES ACHAVAM O RAMSÉS III UM DELES.

Essa mania de achar que as vivências antes dos Europeus eram melhores, não se sustenta.

MAS AJUDA NA HORA DOS VOTOS E DA CRIAÇÃO DE UMA “NAÇÃO LATINA”.

É uma marca da classe social de que se origina Residente, a classe média sul-americana, de buscar origens nos povos originários quando estão em debate público.

Algo como “ainn sabia que eu não sou branco: minha tatatatatatataravó era indígena”?

Aliás, historicamente, os grandes defensores do nacionalismo foram os liberais da classe média, assim como os defensores dos direitos trabalhistas foram os burocratas, notadamente alemães (da Deusthland (1871–1945), não da Germany (1989-).

Os debates desse nacionalismo “latino” tendem ao populismo em sua vertente mais à esquerda (ou seja, quando essa política de aliança entre classes ricas e trabalhadores beneficia mais aos últimos), e portanto, vemos a manufatura de produtos artísticos que tendem a valorizar as origens “indígenas” (sim, pus aqui para ofender mesmo esse tipo de designação branca, que todos sabemos ser coisa de europeu, inclusive o português com o qual escrevo e narro esse texto).

No desenrolar do clipe vemos todo esse populismo de esquerda aparecer: somos apresentados a representações de vários fatos históricos recentes da América Latina, e como isso tem se mostrado no mínimo violento e revoltante.

Isso porque o mundo escolheu, ou foi forçado a escolher, sobretudo na América Latina, o populismo de direita (que tende a beneficiar as elites econômicas), que se encarnavam nas gestões Macri (2015–2019), Áñez (2019–2020), Pou (2020-), Bolsonaro (2019-), Cartes (2013–2018) entre outros.

Essas gestões fizeram toda a sorte de atrocidades que sempre foram feitas na América Latina: povos originários dificilmente sabem o que diabo é esse tal de “estado democrático”, e por isso jovens pobres tendem a não se interessar por eleições presidenciais.

Nisso o clipe é bem feliz: não temos discussões sobre eleições resolvendo problemas e sim violência de rua:

SE O GENOCÍDIO É ALGO QUE CONHECEMOS BEM, REVOLTAS POPULARES É ALGO QUE ESSAS ELITES CRIOULAS SEMPRE CONHECERAM.

Crioulo, aproveitando é todo o descendente de europeus e de gente dos povos originários, logo mestiços tal qual Residente, que começaram os vários movimentos de independência latino-americanos.

Aqui está o problema: essa elite mestiça, a crioula, sempre quis criar esses nacionalismos com tons pardos, para se desenvencilhar do domínio europeu, mas raramente para beneficiar a mão de obra parda (sim, parda, porque é assim que eles vêem os povos originários que não sofreram mestiçagem). Queriam em verdade ser os “europeus dos trópicos”.

Embora o clipe de Residente tente falar da América antes do Europeus, notadamente a latina, não pode abrir mão de dois conceitos das outra duas Américas: A Revolução Mexicana (1910–1917), vinda da América central e outro de que já falo…

O Movimento zapatista (1910-), nascido no território mexicano, sempre defendeu a autodeterminação dos povos, mas levou isso ao pé da letra: os zapatistas resguardam-se enquanto povos originários que estão num Estado-Nação chamado México, e não “mexicanos descendentes de povos originários”. Esse paradoxo consciente é o que os manteve funcionais até hoje, sendo talvez a esquerda dos povos originários mais radical até os dias atuais.

Então clipe invoca as zapatistas (sim, o bicho pega ali e a mulherada é bem ativa e dominante), porém não sua noção antinacional.

Alguém poderia dizer, “mas você faria como”?

Eu por exemplo juntaria todas aquelas bandeiras numa só e as queimaria e das cinzas sairia a WIPHALA, bandeira símbolos dos povos andinos, com grafismos dos povos originários tupi-guarani e dos povos africanos, desenhados por meio da técnica de stencil.

MAS SOU UM MALDITO NEGRO NERD, LOGO DEVO FICAR NA MINHA CERTO ?

Esse é o grande problema do clipe: ele parece uma diss tardia com o THIS IS AMÉRICA (2018) de Childish Gambino / Donald Glover (1983), no qual se apresenta o pensamento racista estadunidense atualizado na época de sua manufatura.

UAI, PARA QUÊ ISSO?

Porque assistindo o clipe de Gambino, repare uma coisa: ele não mostra bandeiras, porque a cultura negra tem a tendência a ser apátrida e transnacional: negros são desterrados e degredados, ou seja, expulsos/vendidos pelos seus povos originários e exilados para outro local para serem escravos.

NEGROS TENDEM A NÃO ACREDITAR EM NAÇÕES NESSE SENTIDO: ANARQUISMO COMUNISTA NEGRO, BABY.

E esses negros, como discutem Maria Ligia Prado (?) e Gabriela Pellegrino (?) na obra HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA (2014), sempre foram os sombrios soldados do iluminismo nas independências latino-americanas.

SIM, BONITÕES, A ESCRAVIDÃO DE PRETOS NÃO SE DEU SÓ NO BRASIL, OU NOS E.U.A. [ https://www.geledes.org.br/escravidao-nas-americas/ ]

Residente quer colocar Gambino no lugar dele mostrando que a América que os dois vivem não é a mesma, não é os E.U.A. e que o rap preto não é o rap crioulo. E está certíssimo.

RAP PRETO E NEGRO NÃO TEM MUITO TOLERÂNCIA A DISCURSOS NACIONALISTAS, MESMO QUANDO POPULISTAS DE ESQUERDA, PORQUE OS NEGROS PRETOS FORAM TRATADOS DE FORMA SIMILAR POR TODO ESSE CONTINENTE: E ESSA É A AMÉRICA DOS NEGROS, NÃO IMPORTAM OS POVOS ORIGINÁRIOS DE CADA LOCAL.

Esse é o segundo elemento que Residente não pode abrir mão, vindo da América acima da central: o da apropriação cultural que tende a distorção para objetivos próprios.

O pessoal negro preto da Jamaica, aquele país lá da América do Norte, agradece por nada.

E mais: criticar Tupac Shakur (1971–1996), ou melhor, a Black Panther Afeni Shakur (1947–2016), por batizar o nome de seu filho em homenagem ao de um dos Tupac Amaru (tem mais de um), é no mínimo dizer o que a elite crioula sempre disse aos pretos e negros nas Américas que tentaram se aliar a eles de igual para igual:

“ESSA NÃO É A SUA AMÉRICA, CONTINUEM NAS SOMBRAS NOS DEFENDENDO, MALDITOS ESTRANGEIROS”.

Estou sendo radical? Então olhem os negros brasileiros apresentados no clipe e me digam que não é a construção mais clássica do que a classe média acha que eles são.

Como disse, esses discursos para mim tem um cheiro desagradável de pleno sal, ou traduzindo e conjugando, de PLÍNIO SALGADO (1895–1975), político que gente como Juscelino Kubitschek (1902–1976) sempre citou.

Enfim, nada como um bom clipe da elite crioula de esquerda para lembrar que esquerda instituída não passa de direita envergonhada.

[SIGA LENDO A PARTIR DAQUI SE VOCÊ VEIO DE OUTRAS PLATAFORMAS]

Tal clipe é bem interessante, mas reflete bem o tipo de aliança que os povos originários tiveram, tem e terão com as esquerdas instituídas e crioulas: o de soldados cidadãos que não terão o que precisam, como foi verificado durante a gestão Lula (2003–2011), onde foram homologadas apenas 88 terras indígenas [ https://mst.org.br/2011/01/14/violencia-e-poucas-terras-na-era-lula/ ].

Temos, nessas imagens, os imaginários políticos dessas esquerdas sobre seus povos, e deduzimos que existe certo alinhamento de interpretações sobre estes. Então pode até haver novas gestões de esquerda, mas elas serão apenas versões menos radicais de si, tendendo ao centro.

Vão reivindicar o poder nas ruas apenas para não o utilizar.

Mesmo assim é fascinante notar que os governos de direita são colocados juntos com os da esquerda nacionalista de fato: usar uma imagem de um manifestante com o dedo do meio em riste, junto a uma bandeira venezuelana é bem o que esse tipo de gente pensa de gestões de fato nacionalistas mais à esquerda, apoiadas por gente dos povos originários.

Por tudo isso, mais uma vez percebemos que essa é a América crioula e branca.

Se apreciou, 50 palminhas serão bem-vindas.

--

--

Sombrionauta
Sombrionauta

Written by Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).

No responses yet