ROUND 06–1ª TEMPORADA (2021):

Sombrionauta
6 min readOct 15, 2021

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A NÃO-VINGANÇA DE EMÍLIO MADRUGA.

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O populismo é um conceito bastante volátil em suas várias formas. Porém, ele é basicamente uma união entre as elites e as classes laborais (burocracia, trabalhadores braçais, empregados e etc), mediado pelo governo, por meio do Estado. Quando essa aliança tende mais a essas elites, chamamos de “populismo de direita”, quando tende às classes laborais, chamamos de “populismo de esquerda”.

O populismo como política é, se pensarmos bem, uma tendência das democracias capitalistas a partir de 1920–1930 e a implementação dos direitos sociais, notadamente pela República de Weimar (1918–1933) que foi inspirada em grande parte na Constituição Mexicana de 1917, a primeira a incluir esses direitos sociais (os famosos “direitos humanos”, não passam de direitos trabalhistas: pense nisso quando for criticá-los no futuro). Com uma melhor regulamentação das atividades laborais, combinadas com sistemas eleitorais diretos, temos o terreno propício onde esse tipo de política aflora e se expressa.

E daí?

E DAÍ QUE ROUND 06/SQUID GAME/JOGO DA LULA (O GOVERNADOR DÓRIA DEVE ODIAR ESSE NOME) É UM SERIADO POPULISTA DE ESQUERDA.

Claro que as pessoas diriam como isso se dá? ora, basta pegar o protagonista, Seong Gi-hu/456 (Lee Jung-jae) e ver o que ele é: um operário da indústria automobilística, grevista e que ocupou fábricas (no melhor estilo do sindicalismo do ABC de 1968 no Brasil), traumatizado com a morte de um colega durante essa greve, endividado, e que não consegue emprego (por que participou dessa greve?).

EM SUMA, SEONG GI-HU É A CLÁSSICA CONSTRUÇÃO DO PERSONAGEM QUE REPRESENTA A CLASSE OPERÁRIA.

Muita gente no Brasil intuiu isso bem, ao reconhecer nele uma outra representação da classe trabalhadora, só que mexicana, inclusive o incluindo em memes sobre a série: alguém não tão estudado, constantemente agredido, endividado, humilhado, violento, mas sempre disposto a defender o que, e quem, acredita:

SEU MADRUGA (RAMÓN VALDÉS).

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Assim, nosso operário desempregado aceita participar de um “Battle Royale” VIP ou “batalha real” gênero de reality show, que semelhante a sua variante holandesa, o BIG BROTHER (1999-) foi inspirado em um romance distópico.

Esse romance também se chamava BATTLE ROYALE (1999) escrito por Koushun Takami (1969), inspirado no filme HIGHLANDER (1986), onde num futuro fictício o Japão foi tomado pelo Fascismo (TOTALISTARISMO O CACETE, HANNAH ARENDT (1906–1975)), onde alunos de uma turma de ensino médio são forçados a lutar uns com os outros até que sobre apenas um sobrevivente.

Que se pensarmos bem, parece inspirado no romance O SENHOR DAS MOSCAS (1954) de autoria de William Gerald Golding (1911–1993), onde jovens alunos ingleses, depois de um naufrágio numa ilha deserta, e sem a supervisão de adultos, atingem um estágio de violência e barbárie antropofágico. Com esse romance, Golding queria demonstrar que o “bom selvagem” de Jean-Jacques Rousseau (1712–1778) não existia de fato.

ESSE É O PONTO: SEONG GI-HU É TAMBÉM, O TÍPICO HERÓI ROSSEAUNIANO, QUE VEM A SUPERAR O HERÓI GREGO CLÁSSICO.

Então o que estamos vendo nessa produção da Coreia do Sul, é uma manifestação do pensamento de Rousseau, onde o herói é formado por suas experiências de vida: ele é falho, fraco, sem caráter, infantil, explorador, mas isso vai mudando no decorrer da sua experiência coletiva, tarde demais para seus objetivos, mas em tempo para que ele se torne um ser consciente da sociedade que o cerca.

Para criar o clima propício para o drama acima, a série faz uso de um dos mais interessantes, e sádicos, parâmetros narrativos dos meios de comunicação de massa: o conflito entre as classes laborais como forma de entretenimento.

Perceba; boxe, futebol e outros entretimentos transmitidos pelos meios de comunicação de massa terminam por apresentar uma narrativa que naturaliza pobres lutando e se machucando pela sobrevivência, sendo assistidos (dubiedade proposital aqui) pela classe dominante patrocinadora.

Há nessas formas de divertimento sempre a proposta de reduzir as pessoas pobres à animais, tal qual Golding fez em sua obra para dizer, em última análise, que a brutalidade capitalista é inata, logo, inevitável.

Contudo, parece que nosso amigo Seong Gi-hu tem outros planos: ele está quebrado e é mau pai, logo ele não é muito bom em exercer o patriarcado:

CURIOSO: VIVEMOS CRITICANDO O PATRIARCADO, SUBJETIVIDADE PRODUZIDA PELO PATRONATO, MAS SEMPRE ESTAMOS PRONTOS A ATACAR UM TRABALHADOR QUE NÃO PODE EXERCÊ-LO POR MOTIVOS ECONÔMICOS.

Porém não espere isso nessa série: ela não é de extrema-esquerda, logo não vai discutir muito essa estrutura.

E ISSO NÃO É PASSAR PANO PARA PAI QUE NÃO PAGA PENSÃO, MAS PARA PENSAR COMO NOSSA SOCIEDADE PATRIARCAL MACHISTA NÃO FOI FEITA, TAMBÉM, PARA HOMENS DO SEXO MASCULINO POBRES. PORTANTO, DEIXA DE SER OTÁRIO, SEU POBRE IDIOTA E MACHISTA.

A discussão acima mostra porque essa serie é então populista de esquerda, e não, de extrema-esquerda: ela propõe uma reforma da hierarquia democrática capitalista, e um combate aos ricos que a corrompem, mas não o fim dessa estrutura. Resumindo:

JOGO DA LULA NÃO PROPÕE REVOLUÇÃO.

Nela também se reflete o grande drama psíquico presente nos processos econômicos capitalistas industriais: uma constante infantilização da sociedade, tal qual o K-Pop propõe (aliás, todo o POP), apresentada na premissa de uma “volta a tempos melhores”: traduzindo, estou falando do conservadorismo de direita mais safado possível, representado no personagem Oh Il-nam /001 ( Oh Yeong-su).

Convém lembrar, que, o número 456 na numerologia quer dizer “um passo para o futuro”: quando na sequência que nosso Seong Gi-hu pinta seu cabelo de vermelho, cor que simboliza para os coreanos a palavra “Sul”, deduz-se que o que está sendo dito é:

SEONG GI-HU É O FUTURO DA COREIA DO SUL.

O debate entre ele e Oh Il-nam (ele sim, encarnando aquele simpático e miserável Pai Patrão, do imaginário do patriarcado), e na verdade um debate entre o passado capitalista que mostra suas falhas no presente, e o futuro guiado pelo pensamento populista de esquerda, tendência que está se tornando forte no pensamento coreano do Sul, pelo menos culturalmente.

PARASITA (2019) É EXEMPLO DISSO.

A classe trabalhadora arrogante, culta e desempregada fruto dos eficientes programas estatais educacionais (educação de qualidade sem processo industrial equivalente dá nisso) e dependente de seus pais que desprezam, as vítimas dos sistema bancários, a prostituição, o abuso sexual, a hipocrisia religiosa, o machismo estrutural, a falta de perspectiva dos imigrantes vindos do socialismo, o crime e sua brutalidade que é mais anedótica do que poderosa de fato: cada um deles é um número, um personagem, uma opinião sobre esse tipo de fato social ocorrendo na Coreia do Sul capitalista.

Leia o parágrafo acima e você vai achar os números corretos.

Mérito da produção, também, é mostrar que os capitalistas não têm pátria: quem sempre defendeu o nacionalismo moderno foi o populismo de esquerda. Veja o momento atual brasileiro e vai entender.

O dialogo final entre Seong Gi-hu e Cho Sang-woo mostra que o primeiro não é um herói sangrento de filme de ação, mas sim um trabalhador: ele acredita em justiça, mas nunca em vingança, porque sabe que as pessoas são humanas (materialismo gritando aqui), e que isso faz com que elas tomem decisões extremas, em nome da sobrevivência.

A VINGANÇA NUNCA É PLENA, MATA A ALMA E ENVENENA, CONCLUINDO.

Com tudo isso, percebemos que apesar de estarmos em um ciclo depressivo econômico do Capitalismo, ou justamente por causa disso, vemos que a superestrutura cultural começa a apontar para um novo ciclo de populismo de esquerda.

De tal modo se assistirmos todo o seriado com calma chegamos a uma conclusão simples: o trabalhador, aquele que o Irmão-Capitalismo persegue e admira (sei como é isso pessoalmente), é o mesmo que vai combate-lo:

O CAPITALISMO RESPEITA (TEME) O TRABALHADOR QUE (ELE) NÃO CONSEGUE QUEBRAR, MAIS DO QUE AQUELES QUE SE ENTREGARAM A ELE DE LIVRE E ESPONTÂNEA VONTADE (CHO SANG-WOO (PARK HAE-SOO)).

TENDO DÚVIDAS, PERGUNTE AO SEU BARRIGA (EDGAR VIVAR).

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Nesse populismo (o de esquerda), o Estado Capitalista de Direito sempre é absolvido: a mesma polícia que matou o amigo de Seong Gi-hu, é a que vai lhe dar a vitória moral contra o Capitalismo.

POR ISSO BATMAN, EM CERTA MEDIDA, É UMA OUTRA VERSÃO POLICIALESCA DESSES HERÓIS: ENTÃO QUANDO FALAR DELE, PENSE, SE PREFERE UM HERÓI QUE TEM PODER PELO RENDA (ESTUDO/TREINO), OU O SUPERMAN, UM HERÓI QUE TEM PODER PELA BIOLOGIA, LOGO, INALCANÇÁVEL PARA OS MORTAIS (POBRES).

Esse tipo de gente não tem chances contra Capitalismo: mas tal qual outro herói rosseauniano, assim como Georg Elser (1903–1945), isso não importa:

O IRMÃO-CAPITALISMO DEVE SER COMBATIDO, NÃO IMPORTA ONDE, NÃO IMPORTA COMO, NÃO IMPORTA SE VAI HAVER VITÓRIA OU NÃO.

Se apreciou, 50 palminhas serão bem vindas.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).