O HOMEM DO NORTE [FILME] (2022):

Sombrionauta
8 min readMay 18, 2022

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Valhalla Hipster

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As pessoas estão em negação com este mundo. Quando isso acontece, tentam se projetar para outros. Devido à nossa grande tecnologia atual, ironicamente, essa fuga tende a ser mais eficiente em emular a fantasia de pertencimento ao passado: tentamos ser os nativos brasileiros, mas não toleramos que eles tenha Iphones, tentamos ser os africanos, e ignoramos que sua elite guerreira é que vendeu aqueles que atualmente são chamados de negros, e saudamos a democracia, esquecendo que ela é basicamente , até os dias de hoje, um governo aristocratas com tons militares.

O passado, assim como a moral, é o refúgio de quem teme aceitar que este é seu presente.

Estranho um historiador dizer isso, para quem não entende que uma das funções da História, como ciência, seja a de executar(no sentido de dar cabo) conceitos de passado que não mais existem: resumindo, processos que seus efeitos não existem mais materialmente e que agora se manifestam como estados mentais e sistemas identitários, mais baseados na literatura do que na ritualística.

O HISTORIADOR VISA ELIMINAR A ROMANTIZAÇÃO DO PASSADO QUE ESTA SE ORGANIZANDO PARA REIVINDICAR O PODER SIMBÓLICO NO PRESENTE.

E um dos que está fazendo tal romantização é o diretor Robert Eggers (1983), está bem empenhado em resgatar e romantizar todas as mitologias possíveis daqueles que outrora se autointitularam de “brancos”.

E SIM, ESSA DECISÃO ESTÉTICA É BEM LIGADA À ATUALIDADE.

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Lembre que toda a luta anticolonial em algum momento passou por um resgate das origens étnicas dos povos dominados pelo Capitalismo tanto aqui nas Américas , quanto no Continente Africano. Esse resgate não visava qualquer paz espiritual ou busca por “iluminação”: era uma necessidade de mobilizar a cultura como meio de guerra.

Desde a Revolução Mexicana (1910–1917), passando pelo Movimento Revolucionário Túpac Amaru (1984) até o Sankharismo (1983–1987) essa linha de pensamento é seguida: quem ama a pax (ironia com os romanos detectada) é quem venceu, pois os que perderam devem amar a guerra (eu escrevi esse poema há muito tempo).

A guerra não é um erro, é uma necessidade. Isso é tido como estranho ao falarmos dos povos indígenas, por exemplo, mas quando citamos isso em referência aos nórdicos, como os Vikings e outros povos escandinavos, toleramos isso com uma enorme facilidade.

Parece muito tranquilo tolerar a guerra como parte da civilização desses últimos.

A pergunta é que civilização, branca ou elitista, não fez a guerra em algum momento?

ASSIM COMO PRATICOU A ESCRAVIDÃO.

Este filme tem essa tendência, a de apresentar pela ótima pesquisa de rituais, uma normalização de um conceito detestável e ultrapassado, a escravidão.

Aproveitando, temos dois tipos de escravidão: a escravidão antiga, que não era necessariamente de cunho biológico e vitalício, em que um povo era capturado e vendido como força de trabalho para quem pagasse melhor,ou a pessoa era escravizada para saudar alguma dívida, e a escravidão moderna, que é racializada, hereditária, matrilinear e por toda a vida [ https://www.ufrgs.br/cdrom/depestre/escravidao.htm ]

Aí que está a minha dúvida: do jeito que é apresentado nessa obra, parece ser a escravidão moderna, mas ela só foi iniciada em 1444 a partir do comércio dos portugueses no Sudão. E o filme parece baseado em uma grande quantidade de mitos pré-cristãos, provavelmente de antes do pensamento capitalista chegar naquelas regiões.

ENTÃO LAMENTO, NENHUM BRANCO TOMOU A ESCRAVIDÃO MODERNA, EMBORA TODOS OS POVOS JÁ TENHAM SIDO SUBMETIDOS E SUBMETERAM A SI E A OUTROS À ALGUM TIPO DE ESCRAVIDÃO.

É uma coisa bem própria de filmes que tratam do mundo antigo ou do passado ocidental: tentar apresentar todos os escravismos de uma mesma forma.

E essa forma é a que foi aplicada de maneira industrial pela democracia: porque como bem demonstrou Domenico Losurdo (1941–2018) o Capitalismo, notadamente liberal, foi a ideologia e sistema político que mais escravizou pessoas e as racionalizou, notadamente africanas, embora uma rapaziada irlandesa pudesse dizer algo sobre isso também, pelo menos na parte de colocar “pedigree” na mão-de-obra.

Justamente a democracia que foi fundada com a independência dos E.U.A; todas as democracias, sem exceção, precisaram e precisam fazer uso de trabalho escravo moderno ou outras formas análogas de trabalho compulsório.

Esse tipo de coisa passa batido, a medida que nos envolvemos com a narrativa.

No filme Eggers vai apresentando uma típica história de vingança, que poderia ser a do Batman, ou de qualquer outro herói aristocrático: um filho tenta vingar seu pai, salvar sua mãe e se vingar de seu tio.

HAMLET (1599–1601) NA VEIA, BONITÕES, OU CASOS DE FAMÍLIA. ESCOLHAM.

Esse tipo de trama não tem muitas surpresas, se você leu algo do Maquiavel (1469–1527) e do Nelson Rodrigues (1912–1980): só meninos acreditam em lealdade e fidelidade, mulheres (brancas?) acreditam em sobrevivência.

HOMENS EM BUSCA DE VINGANÇA, SÃO MUITO INFANTIS.

Assim somos apresentados a Amleth (Alexander Skarsgård) jovem príncipe ( fiquei em dúvida se é esse mesmo o termo correto na hierarquia, assim como o de reino: o primeiro é romano e o segundo é cristão, logo…) e sua busca de vingança contra seu tio Fjölnir (Claes Bang).

No decorrer dos acontecimentos o jovem Amleth vai tendo uma série de visões ritualísticas que vão orientando sua vida. Coisa interessante de notar, que nego atribui somente ao mundo moderno: é a necessidade de um mundo de fantasia; chamamos isso de escapismo hoje em dia, e antes de religião.

Particularmente eu prefiro a variante moderna lúdica elétrica e não a química. Cada um com seus paraísos artificiais.

Voltando, tudo na vida de nosso jovem Amleth parece mediado por violência, drogas xamânicas e mulheres. Creio que era assim para a maioria dos escandinavos, além da varíola, gripe e outras doenças [ https://super.abril.com.br/ciencia/vikings-podem-ter-sido-grandes-espalhadores-de-variola-ha-1400-anos/ ]: tem várias cenas deles constantemente pegando uma chuva lascada e ficando o resto do tempo molhados, logo deviam ficar constantemente febris;

ASSIM ATÉ EU FICARIA DELIRANDO SOBRE DEUSES E FALAS DE SERES MÍSTICOS.

Toda a vida dele é pautada por ideias e sistema poéticos, coisa bem discutida no excelente livro TECHNICIANS OF THE SACRED: A RANGE OF POETRIES FROM AFRICA, AMERICA, ASIA, EUROPE AND OCEANIA (1969) de Jerome Rothenberg (1931). A poesia seria quase um sistema de autoprogramação neurolinguística: numa das partes do filme, por exemplo, ele cita as frases:

EU VOU VINGÁ-LO PAI

EU VOU SALVÁ-LA MÃE

EU VOU TE MATAR, FJÖLNIR

Quase como uma linguagem de programação em Python: o problema é que o jovem não é muito bom programador de si. Nenhum homem nórdico poderia ser, na verdade.

Eles eram quase máquinas, sendo orientados por suas esposas, educadas para serem o equivalente da matrona romana: capturar escravos, criar ovelhas, estuprar escravas, mas não as engravidar, criar seus filhos legítimos, fazer rituais xamânicos e depois repetir o processo, era basicamente sua rotina.

Aqui é outra coisa que fiquei bem cabreiro: as mulheres nórdicas não tinham mais autonomia que as matronas romanas? Pelo menos para a guerra? É sabido que povos nômades tinham menos tendência ao patriarcalismo do que os sedentários, e isso afetou sobremaneira nosso imaginário sobre as mulheres [ https://www.scielo.br/j/psoc/a/VwnvSnb886frZVkPBDpL4Xn/?lang=pt ] e sobre a maternidade.

O filme condena indiretamente essa independência: apresenta os motivos, justos, de mães não serem amorosas, mas as mostram como umas pessoas gélidas.

PARTICULARMENTE, SE EU ESTIVESSE NO LUGAR DAQUELAS MULHERES, FARIA TUDO IGUAL.

O problema é o lugar daquelas mulheres: não existe uma noção universal de mulher, até, se pensarmos bem, o movimento feminista, logo, no pós capitalismo [ https://medium.com/qg-feminista/o-que-s%C3%A3o-as-ondas-do-feminismo-eeed092dae3a ], sendo assim mulheres não se viam como oprimidas enquanto mulheres, e sim, como seres de povos diferentes: não espere empatia de uma mulher escravizadora por uma escravizada: provavelmente a primeira coisa que a segunda vai fazer depois que escapar da primeira, e se estabilizar, é escravizar uma terceira.

Isso o filme acerta bem: as mulheres ali não estão nem aí umas para as outras. E se aquele que me escravizou e me estuprou me der apoio, tudo bem.

AFINAL, ESTAMOS ANTES DO ROMANTISMO (XVIII), LOGO ESSE LANCE DE CASAR POR AMOR NÃO EXISTE AINDA COMO IDEAL.

E também elas não são mulheres negras: aí teriam outra noção de relacionamento, como bem discute Angela Davis (1944). Embora o preconceito que o filme ensaia fazer sobre elas seja bem o que era reservado às mães negras: tidas como “mandatárias” de seus maridos.

As pessoas se casam por poder e liberdade. E liberdade é medida por escravizar e não ser escravizado. Se você acha que se casou por algo além disso, torça para ser o primeiro progenitor morrer e assim não encarar a divisão de bens entre seus filhos.

Finalmente, o aparecimento de muitos rituais ali usou como base os indígenas americanos, embora existam indígenas europeus, os Samis da Lapônia [ http://ipol.org.br/sami-o-povo-indigena-da-noruega-lingua-oficial-parlamento-e-muito-mais/ ]. Logo se mostra uma prática bem capitalista, notadamente estadunidense: apropriação cultural de povos dominados e exterminados, notadamente na minha cena favorita, a que aparece Seeress (Björk, a mulher mais estranha do mundo porque ela me parece inexplicavelmente comum) lembra bem a versão feminina do Tirésias grego (lembre-se que ele teve duas sexualidades): cega e portadora de uma visão além do alcance.

Essa combinação é o clássico pastiche.

O filme o tempo todo trata essas coisas como cotidianas, como parte da normalidade, mas não sei se os escandinavos achavam isso tão normal. Aliás Eggers gosta de fazer isso em suas produções trazer o onírico como parte do normal.

ACHO ESTRANHO: A NÃO SER PELA LOUCURA, EM CASOS MUITO ESPECÍFICOS, NÃO HÁ ESSA PERDA TOTAL DA REALIDADE COMO DEMONSTRA FOUCAULT (1926–1984)

Mesmo um habitante de rua em surto dificilmente grita com policiais: experiência própria de algumas coisas que vi.

Sendo assim apesar da boa pesquisa e do trabalho de seu roteirista Sjón (1962) o que temos perante nós, são um bando de vikings lumbersexuais [https://modamasculina.blog/lumbersexual/].

Tudo ali é uma bricolagem de ocidente que não reconhece que é mediado pelo consumismo capitalista que engloba essa absurda volta às “raízes”.

Resumindo: um bom filme de como gente branca quer ser negra, sem citar negros / indígenas diretamente.

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Eu acho que a filmografia do Eggers é supervalorizada por causa desses bons designs e por ele tentar ofender a ninguém apresentando esse tipo de coisa, tipo o GAMES OF THRONE (2011–2019), com a vantagem de por ser “histórico” escapa de apresentar negros. Pelo menos esteticamente.

Muito da nova estética pós-moderna tem esse apelo a um presentismo quase barroco, um regime de historicidade sempre cheio de referências, que em seu conjunto não poderiam existir juntas, devido a impossibilidade material para tanto: toda essa pesquisa sobre cultura material deu nesses pastiches. Coitado de quem estuda isso. Ou não: estão ganhando uma boa grana como consultores desse tipo de produção tal qual o Neil Price (1965) e Terry Gunnell (?).

O folclore (sei lá o que é isso na verdade) dá um bom dinheiro em termos de consumo: gente que nunca matou um bode adoraria ter uma sacola com os símbolos pagãos. E sim, eu sei que não se sustenta o uso dos bodes em certos rituais pagãos, mas é para ilustrar as coisas.

Portanto, bem-vindos ao horror pós moderno que em sua modernidade deseja recusar o que gerou seu escapismo para o passado que tanto ele emula: o Capitalismo.

Se apreciou, 50 palminhas serão bem-vindas.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).