O ÚLTIMO DUELO [FILME] (2021):

Sombrionauta
6 min readOct 22, 2021

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Antes de Nolan, Scott, e antes deles, Althusser.

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Difícil não gostar de conservadores cultos, se você é uma pessoa erudita. Porque esse tipo de pessoa pode ser contra as práticas mais libertárias e sociais, contudo, consegue traçar um pensamento lógico sofisticado que nos faz concordar com eles.

Esse tipo de pessoa geralmente é de direita, mas não é tolo, coisa que muita gente da esquerda associa imediatamente, e que é um erro crasso. Ser de direita, ou de esquerda não é ser irracional, e sim, ter sua racionalidade comprometida com sua classe social. Tendemos, claro, a ter uma produção maior de direita, porque essa tem em suas mãos maiores recursos financeiros para difundir suas ideias, e seus conceitos, por meio dos aparelhos culturais privados e estatais, e isso, mais do que a lógica, que a faz o pensamento cultural vigente nas sociedades capitalistas.

Essa lógica de organização de fatos sobre uma narrativa história, valorizando, em seu discurso, determinados fatos/pontos de vista de sua posição na hierarquia social (ou local de fala, se quiser) tem um nome:

IDEOLOGIA.

Quem discutiu muito isso foi o intelectual francês de esquerda, e feminicida, Louis Althusser (1918–1990) em sua obra APARELHOS IDEOLÓGICOS DO ESTADO (1970): nessa obra ele vai dar parâmetros de como o Estado (no caso o francês, principalmente) vem, pelo modo como organiza suas ações repressivas em suas instituições (governo, administração, exercito, polícia, tribunais, prisões e etc), discretamente a orientar como os fatos sociais vão ser fruídos pelas pessoas no alcance desse aparelho, e devido a isso, passam elas mesmas a fruir os fatos de acordo com essa orientação.

SIR RIDLEY SCOTT (1937) APLICOU ESSE CONCEITO PARA EXPLICAR PORQUE O ESTUPRO NÃO ERA DENUNCIADO NA BAIXA IDADE MÉDIA (XI-XV).

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Scott, esse inglês brilhante que pavimentou a estrada que nos leva a outro conservador que odeia tanto quando ele a classe trabalhadora, Christopher Nolan (1970), criou todo um cinema brilhante e comprometido com essa direita mais educada, fundamentalmente se atendo a dois temas, a saber:

O DUELO, COMO FORMA DE MOSTRAR A FORÇA COMO DEFINIDORA DA RAZÃO E,

O MATRONATO COMO FORÇA FUNDAMENTAL DA SOCIEDADE OCIDENTAL.

Scott defende que o matronato é uma força fundamental para organizar a sociedade ocidental, junto com a pensamento e a justiça: essa é a clássica tríade do que se acredita ser o Ocidente em sua essência: pensamento grego, direito romano, religião cristã.

Nesse filme ele irá fazer uso brilhante dessa tríade, ao narrar o caso verídico do último duelo realizado com reconhecimento judicial na França, tratado no livro THE LAST DUEL (2004) de autoria de Eric Jager (1957), especialista em literatura medieval do departamento de inglês da Universidade da Califórnia.

HISTÓRIA DÁ BONS ROMANCES MESMO, RAPAZIADA.

Basicamente, o cavaleiro Sir Jean de Carrouges (Matt Damon) acusou o escudeiro Jacques Le Gris (Adam Driver) de violentar sua esposa, Marguerite de Carrouges (Jodie Comer), e pede o direito de julgamento por combate, onde, o perdedor será o culpado, pois Deus não daria a vitória a alguém que não estivesse falando a verdade.

É um filme, portanto, que discute um pedido de reparação por dano a propriedade: Marguerite não é tida como uma pessoa, mas sim, uma propriedade que foi invadida ilegalmente .

LEMBREM-SE, QUE MESMO SENDO A BAIXA IDADE MÉDIA CRISTÃ, O ANIMISMO AINDA ERA FORTE, LOGO, PENSAR MULHERES COMO PROPRIEDADE É BEM ADEQUADO A ÉPOCA.

O brilhantismo do filme é sua narrativa dos fatos acima, ou melhor, as suas três narrativas dos fatos acima: uma pela visão de Sir Jean de Carrouges (soldado e senhor feudal incompetente), a segunda pela do escudeiro Jacques Le Gris (que por sua vez é responsável pela organização da cobrança de impostos do condado de Count Pierre d’Alençon (Ben Affleck, sempre bom em fazer o papel de aristocratas amorais e sombrios), e que, apesar de ser inferior em hierarquia a Carrouge, é bem mais rico que ele, e, finalmente, a visão de Marguerite de Carrouges (a propriedade).

AQUI “OBJETIFICAÇÃO DA MULHER” CHEGA A SEU AUGE DE COMPREENSÃO MÁXIMO.

Então somos apresentados a três visões de mundo sobre o mesmo crime: a dos guerreiros, a dos intelectuais e sacerdotes (Le Gris foi educado para ser padre, e eles eram a “proto-burocracia” na idade média), e finalmente, de como um “objeto” se sente (sem camponeses aqui, porque o Sir Scott não gosta dessa gente, por favor).

O Diretor astutamente toma partido, num lance de xadrez narrativo elegante, assumindo que a portadora da narrativa verdadeira é Marguerite de Carrouges, e mostra que isso pouco importa: ela é uma mulher na idade média e isso significa que ela não é uma pessoa, juridicamente falando, sem que um homem permita.

ENTÃO, O ÚNICO JEITO DE MARGUERITE ALCANÇAR ALGUMA JUSTIÇA, É ELA USAR OS SEUS DIREITOS DE ESPOSA/PROPRIEDADE (MATRONATO), ORIGINADOS DE SER RESPONSÁVEL, LITERALMENTE, PELA REPRODUÇÃO DA HIERARQUIA DE PODER.

Marguerite de Carrouges sabe disso porque ela é uma exceção terrível nesse mundo medieval: uma mulher que sabe ler e calcular, condição educacional que a tornou motivo de chacota para todos a seu redor.

Isso nos leva a um horrível banho de testosterona nos aparelhos ideológicos do estado francês, onde Marguerite de Carrouges luta para ser ouvida, consciente do que pode acontecer se seu marido perder o duelo: ela mesma será executada por meio de incineração enquanto viva, nua e acorrentada.

COM ESSE TIPO DE CONTRAPARTIDA, FICA BEM CLARO, ATÉ HOJE, PORQUE GRANDE PARTE DAS MULHERES, ESPECIALMENTE CRISTÃS, NÃO DENUNCIA O ESTUPRO.

Criticada também é a famosa burocracia francesa e seus trâmites labirínticos, seus códigos administrativos impossíveis de serem dominados plenamente, o que sempre abre espaço para uma luta de elites (mais do que de classe), para quem conseguir achar algum tipo de subterfúgio.

Também poderosa é a censura feita a cortesia e bons modos franceses, que servem mais para esconder, do que para lidar com a terrível dominação patriarcal e machista sobre as mulheres, embora não só sobre elas.

A OBRA DE COSTA-GRAVAS (1933) TAMBÉM ABORDA ESSE TEMA REPETIDAMENTE.

No fim, nossa querida Marguerite de Carrouges descobre que mais do que exceção, o crime a que foi acometida é regra: outras mulheres também sofreram esse abuso, mas ao contrário dela, se calaram. Sir Scott deixa claro que aqui não haverá sororidade: as mulheres a seu redor não vão, não querem, não podem apoiá-la, e se puderem, e podem, vão ajudar a queimá-la.

SOBRA PARA MARGUERITE DE CARROUGES APENAS UM TRUNFO: USAR O MACHISMO INSTITUCIONALIZADO COMO ÚNICA FORMA DE DEFENDER A SI MESMA.

Raymond Williams (1921–1988) certa vez disse que era uma honra ter um inimigo (de classe) tão brilhante quando T. S. Eliot (1888–1965).

SIR RIDLEY SCOTT MERECE O MESMO ELOGIO.

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Marguerite de Carrouges ao enfrentar o machismo medieval justifica o uso e funcionalidade desse direito: seu marido é um desprezível machista que a estupra maritalmente, mas ela já aceita isso: afinal ela foi doutrinada a ser uma boa esposa. O fato de seu marido ser um idiota é vantagem para ela: como ele é bom guerreiro, superior ao intelectual La Gris, a possibilidade de ela conseguir vingança é muito maior.

E POR MEIO DISSO, SCOTT ELOGIA COMO ESSE DIREITO INJUSTO, REALMENTE, FAZ ALGUM JUSTIÇA VERDADEIRA.

Tudo isso nos leva a perceber como nós homens, querendo ou não, sendo geradores ou não, somos beneficiados, a favor, ou mesmo contra, nossas vontades por esses aparelhos ideológicos do Estado:

ESSA FOI A GRANDE REVOLTA DO FEMINICIDA DE ESQUERDA ALTHUSSER: NESSE SISTEMA ELE, QUE QUERIA SER PUNIDO, SEGUINDO SEUS IDEAIS DE ESQUERDA, FOI PERDOADO.

Concluindo: nós homens, também somos objetificados, condenados ao papel desprezível, sórdido, e institucionalizado, de sermos “donos de nossas mulheres”.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).