BNEGÃO — 34ª BIENAL [SHOW] (20/11/2021):

Sombrionauta
7 min readNov 23, 2021

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Enxugando gelo no escuro.

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Eu adoro shows. Acho que o ápice de um músico e de outros artistas está na sua performance ao vivo, onde o ensaio se expressa como ritual: o que foi planejado, encontra com a realidade, e o artista, ou artistas, devem lidar como isso tudo. Geralmente, o sucesso de um álbum, para mim, é justamente como o artista ou a banda o executam para seu público de maneira orgânica.

Nessa execução, os artistas mostram e são sua arte, e por extensão, podemos medir como vai a cultura que tal arte é porta-voz, de como ela é sentida e qual o respeito e sincronia ela tem para, e com, a sociedade.

APÓS ESSE BOM SHOW, TENHO A DIZER QUE A CULTURA NEGRA ESTÁ INDO MAL. E É UM MAL PROFUNDAMENTE CÍCLICO NO ESTILO DE PENSAMENTO NAZISTA.

Os nazistas tinham como ápice de seu pensamento que a história é perpetuadamente ascensão e queda, onde tudo o que foi conseguido por uma geração é inevitavelmente perdido, na próxima.

As frases “ Essa (nova) geração é nutella” e “make a America great again” são algumas das expressões linguísticas desse tipo de pensamento.

Porque essas frases denotam que aparentemente não houve um acúmulo (material mesmo) de nossa consciência, de como melhoramos ou pioramos (isso se chama “desenvolvimento”). Não sabemos lembrar do ontem, então voltamos ao anteontem.

No dia 20/11/2021, fui até pavilhão da bienal de São Paulo, no Ibirapuera, onde está acontecendo a 34ª edição desse evento, chamado de “Faz escuro, mas eu canto” cuja chave temática são menções a necessidade de nos “afinar novamente” em tempos tão iluminados pelas chamas da ignorância. Nesse dia haveria o show de um dos mais talentosos músicos negros brasileiros e sua banda: Bnegão (1972).

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Na minha opinião, BNegão é o novo Tim Maia (1942–1998), só que muito melhor: sua voz é poderosa, seu carisma impressionante, sua musicalidade fundamental e inovadora, além de ele não ser um babaca como o velho Tim Maia era.

ESCUTE ELA PARTIU (1976) E PROCURE A HISTÓRIA DA MÚSICA E VOCÊ VAI ENTENDER.

Mas o porquê de minha enorme tristeza com o evento? Dia da consciência negra, Bienal sobre questões ligadas à resistência em tempos sombrios e show gratuito do BNegão, como isso poderia ser melhor?

O PROBLEMA É QUE FOI PIOR.

Eu achei que o pocket show era fora da Bienal, justamente para o povo se juntar à rapaziada de origem periférica velha que nem eu, e assim, podermos bater cabeça, e cantar um pouco de nossas dores, juntos, com uma das vozes mais marcantes de minha geração.

Doce ilusão a minha: o local da realização do Show foi dentro justamente do pavilhão, em uma pequena arena onde você só teria acesso se tivesse uma pulseira. Daí senti algo errado. Entendo a limitação num local cheio de obras de arte… logo.

FAÇAM DO LADO DE FORA DO PAVILHÃO, CATZO.

Sigamos.

Quando começou o show, com um som impecável, diga-se de passagem, as pessoas que entraram na arena eram predominantemente… brancas.

E PELO QUE APARENTAVAM SER PELA QUALIDADE E ESTILO DE SUAS ROUPAS, NÃO ERAM BRANCOS POBRES, MATUTOS OU WHITE NIGGAS.

O resto de nós ficou ao redor e acima da arena (em rampas e escadas) assistindo e curtindo, uma série de homenagens a musicalidade da cultura negra brasileira… mais tradicional do mundo.

Se eu gosto de Jorge Ben jor (1939)? NÃO, EU ADORO.

Se eu gosto de O Rappa (1993- 2018)? MUITO.

Se eu acho a obra do Dorival Caymmi (1914–2008) um patrimônio da humanidade? ÓBVIO.

Contudo, olhando o legado e o comportamento das pessoas que participaram e participam dos três projetos acima, me digam se eles mais se adequam a denúncia social ou à descrição das mazelas sociais? Eles efetivamente denunciam ou apenas apresentam um terrível “racismo recreativo”?

Sim, a sonoridade deles e seus temas são da cultura popular e do trabalhador negro, com certeza.

E sim, eu sei a importância que o Caymmi tem no imaginário da esquerda, inclusive a da antiga União Soviética.

E DAÍ? NEM TODO O MÚSICO VINDO DA CULTURA POPULAR É AUTOMATICAMENTE DE ESQUERDA, ACEITE.

Esse show me mostrou algo amargo, principalmente quando o brilhante BNegão falou algo como “esse é o formato da música nos próximos 30 anos”.

ENTÃO NOS PRÓXIMO 30 ANOS A MÚSICA NEGRA VOLTOU PARA A DÉCADA DE 70? EM MEIO A DITADURA CIVIL-MILITAR (1964–1985)?

Sim. Voltou. Porque novamente a música negra está confinada em um museu, com paredes homenageando negros mortos, transformada em história para apreciação de gente que é descendente (arrependida) de senhores de engenho.

SE ARREPENDER NÃO MUDA EM NADA QUE ESSA MATERIALIDADE OS BENEFICIA ATÉ HOJE.

Será que os jovens da periferia um dia saberão o valor desse tipo de música? Do poder dos tambores de terreiro mixados em pick-ups? Desse encontro profano da tecnologia industrial, com o sagrado negro (sim, negro e não africano)?

Será que mais gente vai reconhecer uma música do Grupo Moleque de Rua (1983), de um show que assistiu entre as década de 80 e 90 quando eles abriram para banda Titãs (1982) ?

Mais alguém vai reconhecer como as cantoras negras melhoraram, ainda mais, nos últimos 20 anos? Falo isso porque um dos melhores momentos dos show foi a fantástica intervenção de uma cantora carioca que mora em Minas Gerais, uma das vozes mais bonitas, doloridas e profundas que já ouvi em minha vida [mandei uma mensagem no inbox do instagram do BNegão para saber o nome, e assim que souber, anexo aqui].

Não. A música de maloqueiro periférico dos 90, virou vintage no smartphone de algum descendente de escravista bem intencionado. As contas devem ser pagas, meus jovens.

No entanto, eu olhava o BNegão, cuidando de sua filha, sempre doce, falando com a plateia, sempre tentando deixar a todos confortáveis, incitando um pouco de dança mais violenta, mas jamais com rancor pelos que estão ao redor, tentando manter a arte inteira, enquanto a segurança e a curadoria faziam o serviço de manter a arte inteira e contemplativa como A LIÇÃO DE ANATOMIA DO DR. TULP (1632) de Rembrandt (1606–1669), ou seja, um retrato de algo que não apodrece, porque jamais vai estar vivo de novo.

Não os culpo, pelo mesmo motivo que não culpo a banda. Todos temos nossos boletos e Bertolt Brecht (1898–1956) já explicou isso muito melhor do que eu.

Por tudo isso, presumo o que será então a cultura negra nos próximos 30 anos: um doce homem negro artista e pai, tentando “realizar a manobra arriscada de manter ao mesmo tempo Comida no prato, iluminação, água pro banho, bom nível de informação e temperamento intacto”.

Eu queria estar com raiva de vocês Bnegão , mas não consigo.

Vocês apenas estão tentando usar o subsídio da vida para poetas, e assim, em algum quilombo moderno mental, sobreviverem com suas famílias, até que a próxima mudança no eixo terrestre diminua a insensatez reinante no planeta Terra.

NÃO ESTÃO SÓS NESSA EMPREITADA.

Eu saí do show, andando do Ibirapuera até minha casa no bairro da Liberdade (periferia no centro é periferia do mesmo jeito, só que mais cara), para economizar o dinheiro da condução.

COMO DISSE, A BANDA QUE ASSISTI NÃO ESTÁ SÓ NESSA REALIDADE HORRÍVEL ATUAL.

No trajeto, aproveitei e parei para comer um cachorro quente e olhei as pessoas na paulista: elas estavam felizes, vibrantes, alegres e me perguntei: “estão assim porque gente como eu e outros pobres não estão mais infectando (como fruidores) os espaços que vocês julgavam seus, não é”?

Não é que essas pessoas não gostem de pobres em espaços ricos: as pessoas ricas não gostam apenas de que pessoas pobres se divirtam em espaços destinados à classe dominante.

E eu me percebi fraco, fraco como negro, fraco como pensador, fraco como baixista, fraco como humano:

Foram necessários cerca de 5 anos, 2 meses e 23 dias das últimas gestões federais para destruir o que foi construído em 13 anos, 7 meses e 3 dias nas outras duas gestões petistas.

Deveríamos pensar como eram frágeis as estruturas que criamos para 1910 dias superarem 4991.

A culpa é nossa. Tenho que acreditar nisso, senão, como os nazistas, acreditarei que minha vida está nas mãos de meus líderes. Que tudo se resume à gestão e não a população.

Talvez seja hora de a cultura popular sair do escuro que canta e achar o sol. Não o sol vermelho envergonhado de Florestan Fernandez (1920–1995) e sim;

O SOL VIOLENTO DO HUMANISTA RADICAL FANON (1925–1961).

Mas até lá, sigamos no grave.

[SIGA LENDO A PARTIR DAQUI SE VOCÊ VEIO DE OUTRAS PLATAFORMAS]

No show reparei que a banda não tem mais baixista, apesar do baixo sampleado.

SEMPRE DESCONFIO DE BANDAS DE MÚSICA DE NEGRO SEM BAIXO.

Baixistas são os mais mestiços membros de bandas populares: não somos batidas, mas temos swing, e não somos melódicos, mas temos harmonia. A música popular industrial urbana sempre necessitou de nós para funcionar fazendo a ponte entre o profano (material) e o celestial (sentimental).

NOSSO GRAVE É QUE FAZ O DUB E O REGGAE ACONTECEREM, E QUE ASSUSTA AS PESSOAS QUE NÃO TEM O DOCE AMARGOR QUE AS DARIA POTÊNCIA PARA DANÇAR.

O que foi bom, apesar de eu estar meio amargurado que nem pescador de atum enlatado, é que eu consegui dançar um pouco, quase uma forma de umbandista que não acredita nem entidades e nem em deuses.

SIM, É ESTRANHO, MAS A VIDA É CHEIA DESSAS: MOACY CIRNE (1943–2014) DISSE CERTA VEZ QUE ERA DEVOTO DE SANTA QUE NÃO ACREDITAVA EM DEUS. NÓS NEGROS TEÓRICOS DE QUADRINHOS E DA HISTÓRIA SOMOS TIPOS ESTRANHOS MESMO.

Estava com raiva, mas foi bom: raiva significa que o sangue pulsa e ele não está fino.

Nossa música tomou outra volta e tem de aprender com isso. Quem sabe nosso mundo-tela consegue fazer o que o nosso mundo fita cassete não conseguiu?

Se gostou desse texto, 50 palmas serão bem-vindas e agradecidas.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).