ATAQUE DOS CÃES [FILME] (2021):

Sombrionauta
6 min readMar 12, 2022

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Faroeste foucaultiano.

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A masculinidade, como conceito, é uma tecnologia. E como toda a tecnologia é delimitada por sua historicidade. Historicidade basicamente são as condicionantes materiais e conceituais que proporcionam a existência de um conjunto de objetos e ações: se relaciona com as estruturas disponíveis (tempo material), das metodologias (tempo social) e dos objetivos, pessoais ou não (tempo individual).

Como as estruturas físicas disponíveis variam de acordo com o local é possível ter historicidades diferentes de origens diferentes num mesmo local, ou seja, tecnologias e tempos individuais diferentes convivendo no mesmo espaço. Nesse sentido, a palavra “obsoleto”, em termos tecnológicos, depende de onde essa técnica é aplicada.

Se uma pessoa tiver consciência do parágrafo acima, pode se deslocar para lugares onde tecnologias, tidas como obsoletas em seu local de origem, ainda podem funcionar plenamente. E mais, com a vantagem de entender o que pode, ou não, eliminar aquela tecnologia.

ESTE FILME É UM DEBATE ENTRE DUAS TECNOLOGIAS DE MASCULINIDADE EM UM MESMO LOCAL.

Escrito e dirigido pela brilhante diretora e roteirista Jane Campion (1954), já notória pela discussão dos debates acerca de como a tecnologia afeta a subjetividade de quem a usa, desde seu filme, O PIANO (1993); aqui somos apresentados a uma reconfiguração da masculinidade, não sua negação, como muitos pensam.

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Muitos dos traços clássicos do que o masculino acredita, poder pela violência, idealização da figura feminina, virilidade dada pelo autocontrole estão ali, mas apresentados em duas óticas diferentes, que não se negam como efeitos, e sim, em temos de suas metodologias.

No filme seguimos a jornada de dois irmãos; Phil (Benedict Cumberbatch) e George Burbank (Jesse Plemons) , donos de uma fazenda de gado, por volta dos anos 20 em Montana, nos E.U.A.

É um período bem interessante de ser notado, pois se passa logo depois de Primeira Guerra Mundial (1914–1918), o grande evento internacional que questionou duas ideias básicas da masculinidade: a virilidade e o paternalismo, uma vez que milhões de jovens e homens do sexo masculino foram mortos em campos de batalha.

A AUSÊNCIA DELES E A ASCENSÃO DAS MULHERES COMO CHEFES, EM MASSA, DE FAMÍLIA LEVARÁ A UM PROCESSO DE REVALORIZAÇÃO DO MASCULINO.

Em tal processo, alguns vão seguir a linha de pensamento do inventor do socialismo prussiano Oswald Spengler (1880–1936): a de que tinha havido um declínio do ocidente e de seus valores, e que era necessária a volta a seus modos e práticas mais campestres, a fim de um retorno a uma sociedade sadia.

Phil Burbank seria a encarnação desse conceito: ele é brutal, fedorento e brilhante, apesar dele ter ensino superior: isso porque ele está emulando ou performando uma masculinidade campestre.

Todos aqueles que defendem o conservadorismo, sempre defendem esse tipo de valor. E Phil Burbank tem consciência disso.

E ao ter essa consciência e a educação superior para entender o peso simbólico de seus atos e discursos, combinados a sua própria vivência com outro homem que lhe ensinou os modos do campo, sempre presente devido a sua ausência, o Cowboy Bronco Henry, ele tem o domínio total daquele local.

A tensão e a admiração que Phil Burbank sente por Bronco Henry explicitam algo que é básico nesse tipo de masculinidade baseada em pensamento alexandrino: o da adoração erótica de homens imberbes por homens mais velhos. No decorrer do filme fica claro como Phil Burbank está apaixonado, ainda, pelo falecido Henry e que por isso recusa qualquer forma de se libertar de tal paixão.

Ao performar Henry, seus modos, seu cheiro, sua brutalidade, Phil tenta manter a memória de sua paixão: por isso ele recusa o tempo todo se banhar que é uma das marcas da civilidade urbana.

Essa civilidade é tida por Phil como inadequada, tanto que todos os que a usam são humilhados por ele, a começar por George, seu irmão.

Em verdade estamos perante a uma espécie de filme de teor espartano: é uma associação quase hermética de homens que vivem por si, para si, e em si. Logo é uma sociedade homossexual virginal masculina campestre.

Filmes anteriores já haviam apontado esse tipo e comportamento em Cowboys, sendo que O SEGREDO DE BROKEBACK MOUNTAIN (2005) trabalha isso de maneira bela e bem menos violenta do que essa obra, mas geralmente essas discussões são violentas como mostra o poderoso MENINOS NÃO CHORAM (1999).

Para quem prefere esse tipo de contenda em mundos urbanos atuais, recomendo o belíssimo MOONLIGHT (2016).

Sigamos.

E qual é o grande rival dessa homossexualidade enrustida, bruta e castrada?

A SEXUALIDADE FEMININA.

Quando George vem a conhecer e se apaixonar por Rose Gordon (Kirsten Dunst), uma viúva, Phil vê sua hegemonia masculina em perigo.

MAS NÃO POR MUITO TEMPO.

George e Rose não são fortes o suficiente para resistir ao pensamento de Phil, pois eles mesmos foram criados no regime patriarcal: a tendência deles é odiá-lo, mas nunca conseguir confrontá-lo diretamente.

PHIL TEM CONSCIÊNCIA DISSO E FAZ MÁXIMO USO DESSE CONHECIMENTO.

Como ele é um ser travestido, ele consegue lutar com Rose nas tarefas da arte e da música, de maneira muito mais eficiente que ela. O fato de ele tocar banjo muito bem, melhor do que Rose toca piano, mostra uma crueldade dionisíaca masculina terrível.

E derrotada em suas artes , sobra apenas a essa pobre bacante se submeter a esse terrível deus campestre: ela passa a se embriagar constantemente, abandonada periodicamente e tacitamente por seu impotente marido.

Seria uma coisa toda muito cruel e assustadora, se não houvesse outro ser ali, tão violento quanto Phil, mas muito mais consciente e orgulhoso de si mesmo: o filho de Rose Gordon; Peter Gordon (Kodi Smit-McPhee).

O jovem é portador de uma delicadeza enorme, que se destaca naquele mundo rural. Ele também sabe que aqueles homens ao redor o desprezam por ele não esconder o que ele é de fato.

NÃO EXISTE ORGULHO MAIOR DE SI, DO QUE MANTER SUA PRÓPRIA INDIVIDUALIDADE EM UM AMBIENTE QUE O ODEIA.

Peter é um estudante de medicina, logo também é portador de um pensamento acadêmico semelhante ao de Phil e George, só que não foi criado da mesma maneira que eles, por seu pai, também médico, ter falecido ainda jovem.

ASSIM ELE É FILHO DE UMA MÃE SOLO TRABALHADORA QUE O CRIOU SEM CASTRAR SUA SENSIBILIDADE POR MEIO DE VIRILIDADE MASCULINA TÓXICA.

Logo ele entende o que Phil está fazendo. E sua ciência lhe permite lutar com o cowboy castrado de maneiras que ninguém ali pode:

A cena em que Peter mata um coelho e o disseca é um augúrio do que ele vai fazer com Phil.

NÃO ESQUEÇAM QUE OS COELHOS SÃO SÍMBOLOS DO MEDO.

Esse medo será dissecado, pois, por trás de todo o medo, de toda a disciplina, existe o desejo, e onde o desejo está, a ausência está.

E onde está a ausência, existe a possibilidade de manipulação.

Usando sua terrível capacidade de análise, Peter vai entender e seduzir (“seduzir” vem da palavra “separar”) Phil, e assim o separar da base de seu poder, sua paixão por Bronco Henry.

E quando isso acontecer, o pobre Tirano Castrado será vítima da letalidade delicada desse jovem.

Letalidade que não é lamentada: todos ali detestam Phil, mas acham que ele está certo, e ele está, naquele tempo social.

Contudo o mundo mudou, e o jovem Peter é o ente que vai dar o golpe de misericórdia naquele local virginal.

Um assassino doce, gentil manipulador e estudado, talvez homossexual, uma rocha que cria sua própria fortaleza.

COMO TODO O PRÍNCIPE ALEXANDRINO FAZ.

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Eu particularmente acho interessante como nós não percebemos como o pensamento acadêmico é profundamente violento, sobremaneira nas biológicas. Assim deixamos de perceber que esse tipo de raciocínio é ainda mais agressivo que o pensamento campestre.

Ora, não esqueçamos que esse mundo usa ainda muito desse pensamento para organizar suas riquezas e poderes: o que é a organização das heranças, senão, biopolítica?

Por essas e outras, não consigo olhar com olhos inocentes as ações de Peter Gordon como algo bom e inovador: ele pode até ser gay, mas isso não quer dizer que ele não é biologicamente homem, logo um dominador, dentro do pensamento patriarcal.

As pessoas tem de entender que o identitarismo que usam não anula o patriarcado e o paternalismo, pois essa políticas ainda são para as representações do masculino; mudar a tonalidade de masculino, em termos de orientação de gênero, não quer dizer mudar o sexo que a sociedade concede mais poder político público.

Por tudo isso, assista esse filme, mas não caia na ilusão que nossa querida Jane Campion vem um filme contra o patriarcado: ela fez algo mais ao mostrar que na verdade houve um upgrade desse tipo de poder.

OU DEVERIA DIZER UM RETORNO AO PODER DO PRINCÍPE ALEXANDRINO?

Se gostou desse texto, 50 palmas serão bem-vindas e agradecidas.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).