A MODELO E O FOTÓGRAFO [FILME] (2020):

Sombrionauta
9 min readJan 1, 2024

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SALOMÉ 4.0.

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Introdução

Cada vez mais temos pautado nossas vidas pessoais por meio da iconologia. Não que isso fosse novo, mas era bastante circunscrito, acredite ou não, aos círculos mais eruditos da sociedade escrita. Isso porque o acesso a fontes visuais icônicas ou imagéticas era bem restrito, e sua produção bastante limitada, geralmente a centros urbanos, e preferencialmente em espaços coletivos.

Claro que as pessoas tinham muitas vezes seus pequenos altares às suas entidades, divindades e deuses, mas elas nunca acreditavam de fato que os mesmos eram daquele jeito; o mundo antigo entendia bem que ficção e realidade era coisas que afetavam uma a outra, porém não seriam duplos de si mesmos.

NÃO SE CONFUNDIA ENTÃO REFLEXO COM REALIDADE.

A ascensão e acesso ao mundo escrito passou a demandar uma grande quantidade de livros escritos, que por sua vez aumentaram a necessidade de ilustradores competentes que pudessem criar enorme quantidade de figuras adequadas a toda nova sorte de escritos, sejam como capas, sejam como complemento à leitura literal da realidade circundante.

E aí está o ponto: à medida que essa entrada de imagens foi se tornando cada vez mais acessíveis graças a popularização de tecnologia fotográfica após o século XIX e superlativada com a difusão massiva dos SMARTHPHONES (1909), surgiram toda a sorte de interpretações de nós, sociedade, sobre nós, a sociedade panóptica

AQUI VEJAMOS O QUE ACONTECE QUANDO DOIS AMADORES PROFISSIONAIS PASSAM A ENXERGAR A SI MESMOS POR MEIO DO PROCESSO FOTOGRÁFICO EM QUE ESTÃO SE SUBMETENDO.

Esse filme é sobre isso.

[SIGA LENDO A PARTIR DAQUI SE VOCÊ VEIO DO INSTAGRAM]

A IMAGEM DO SAGRADO ANALFABETO.

Quanto mais uma sociedade se dedica a abstração, mais sua escrita se torna teórica, logo, onírica. Sim, porque esse tipo de sociedade que tem grande acesso ao ócio pode se dedicar a teorizar o que não aconteceu, ainda. Ou que não ia acontecer, mas graças a força de sua imaginação, pode transformar imagens, mentais, em ação, concreta.

As sociedades europeias tiveram essa disposição também por conta do cristianismo e sua tendência ao pensamento contemplativo, notadamente o bizantino, mas não só ele. Isso devido a necessidade de se espalhar a palavra do deus cristão e o obstáculo da falta estabelecimentos que ensinassem a leitura dos volumes de tal credo, revelando, que no fundo nenhuma religião monoteísta séria, acredita de fato que a alma pode ser transmitida unicamente por meios abstratos.

NÃO HÁ ESPÍRITO SEM MATÉRIA, ASSIM COMO NÃO HÁ DEUS SEM DIABO, OU MASCULINO SEM FEMININO.

O masculino, aliás, é que precisou constantemente por meio da representação da anima, alma, psique projetar seu eu ideal para liberar seu pleno potencial pessoal. Assim, a dialética perpétua desses conceitos temporários, é no mínimo passível de ser constantemente renovada, se a proposta for recriar constantemente o machismo.

NESSA PRODUÇÃO A CRÍTICA DA IMAGEM E DAS REDES SOCIAIS APARECE COM O INTUITO DE RENOVAR O PATRIARCADO POR MEIO DO MATRONATO QUE O SERVE, E QUE POR SUA VEZ LHE CONCEDE SENTIDO PARA SUA SUBSTÂNCIA.

Em última análise esse filme é profundamente conservador, mas se aproveitando de uma nova gramática imagética e iconológica criada por meio das redes sociais: a adoração do público como forma de comprovar a existência da individualidade.

Sabemos que a individualidade e a solidão são mais estados de espírito do que realidades em si mesmas. Tolos, jovens ou ricos (três categorias de pessoas que por meio da exploração de outros obtém sua sobrevivência) são os que fingem acreditar estarem de fato abandonados totalmente à própria sorte.

NINGUÉM QUE ESTÁ VIVO, INCLUSIVE VOCÊ QUE ME ACOMPANHA, PODE ESTAR COMPLETAMENTE ISOLADO DA SOCIEDADE INDUSTRIAL ATUAL.

Aqui estamos então cercados de milhares de versões de nós mesmos concretas, e outros milhares teóricos, nas versões criadas uns pelos outros, com leves alterações que convergem para produzir, agora com a disponibilidade da I.A. em termos de massa cada vez mais progressiva, centenas de milhares de variantes teóricas de nós mesmos.

Como dizem os chineses a existência é dada pelas relações que temos uns pelos outros, coisa que o Ocidente individualista descrê, assim como não crê na vitória do crescente socialismo leninista chinês, e a produção procura mostrar como essas relações são em verdade a substância compartilhada dos protagonistas.

AQUI, MASCULINO E FEMININO SE ENCONTRAM PARA SE MISTURAREM PARA TRANSCENDEREM EM NOVOS INDIVIDUAIS.

ANGÚSTIA DIGITAL.

Nossas redes sociais imagéticas, notadamente o INSTAGRAM (2010) nos concederam grande poder ao nos aleijarem: graças à sua capacidade gráfica, e sonora, começamos a acreditar de maneira torpe que as pessoas são de fato ícones. Tal falta de estimulação de outros sentidos (tais como olfato e tato) nos faz ter a noção de que não estamos destruindo ou adorando pessoas de fato.

MAS ESTAMOS.

AS RECENTES MORTES DE JÉSSICA VITÓRIA CANEDO (2001–2023) / PC SIQUEIRA (1986–2023) SÃO COMPROVAÇÕES DISSO.

Muito de nossa personalidade é definida por como somos vistos. Creio que o EXISTENCIALISMO (1950) é que defendia a liberdade de escolha como essência do indivíduo, porém ele mesmo alertava que tal condição era também efeito das influências de nosso mundo circundante.

NUM MUNDO DIGITAL COMO O DO INSTAGRAM, SOMOS INFLUENCIADOS E INFLUENCIAMOS DEZENAS DE MILHARES DE PESSOAS DIFERENTES.

Dezenas de milhares sim; contas pequenas como a do SOMBRIONAUTA mesmo podem estar sendo faladas e discutidas por mais gente que os seguidores em si mesmos. E esse mundo de exposição pornográfica de nós digital tem se mostrado cada vez mais brutal.

NESSE TIPO DE MUNDO É QUE ENTENDEMOS PORQUE SUPER-HERÓIS USAM MÁSCARAS E IDENTIDADES SECRETAS.

Porque é muito difícil nos relacionarmos frequentemente com pouco mais de algumas centenas de pessoas, sendo que até o fim do século XX se achava que no máximo conseguiríamos com cerca de 150, mas isso tem suas controvérsias.

Sendo assim, apesar de vivermos em multidões, temos poucos contatos com os quais temos realmente algumas afinidades, e menos ainda, intimidade. Ser reconhecido não quer dizer ser conhecido de fato.

Esse é uma das melhores sacadas desse filme: seu limitado elenco. Temos em verdade 4 personagens, 2 homens e 2 mulheres sendo que dois nem têm nomes de fato e mais alguns figurantes, além de dois Louva-a-deus.

Nesse sentido percebemos uma coisa muito simples: as pessoas em nossas redes sociais são tão familiares a nós quanto as multidões com que encontramos diariamente, as vezes por décadas, em nossos transportes públicos, hospitais, escolas, universidades, locais de trabalho e outros espaços públicos .

Porém elas ainda são mais reais do que nossos milhares de seguidores. Nem sei se “seguidores” é o temo certo. Penso que o “público” pagante ainda é a melhor definição, pois as redes sociais são mais palcos do que templos.

OU TALVEZ SEJAM ALTARES DE SACRIFÍCIO…

DOIS PERDIDOS NUMA TELA SUJA.

Acompanhamos um fotógrafo chamado KAI (Hideki Nagai), que herdou sua loja de seu pai. Ele passa seus dias tirando fotos e as alterando de maneira computadorizada para seus clientes. Em verdade são dois, um idoso que não tem nome (Toshiaki Inomata) e uma mulher também sem nome (Toki Koinuma). Ambos aparecem na produção como se correspondessem a representações dos anseios públicos em relação às fotografias.

Ao não terem nomes, mas conhecerem pessoalmente Kai vemos que em verdade ter conhecimento pessoal de uma pessoa que lida com sua imagem pública, não quer dizer necessariamente ter intimidade.

OS DESEJOS DE AMBOS OS CLIENTES É SEREM ALGO QUE NÃO SÃO: KAI CONHECE DE MANEIRA INDIFERENTE SEUS MAIS PROFUNDOS DESEJOS QUE SÃO MOSTRADOS A TODO PÚBLICO DA INTERNET.

A mulher sem nome procura criar versões dela mesma para aplicativos de relacionamento afirmando, talvez no melhor diálogo do filme inteiro, que mesmo que seu possível interesse amoroso digital consiga perceber que ela não é igual a foto que Kai manipula, talvez o desejo que ela o seja, possa ser o suficiente para que ele acredite nisso e passe a ver a ilusão que ela e Kai criaram.

E NÃO É ISSO QUE FAZEMOS SEMPRE EM NOSSOS PRIMEIROS ENCONTROS, MESMO OS REAIS: CRIAR UMA ILUSÃO DE UM VIR-A-SER QUE NÃO NUNCA FOI?

Então ela demonstra algo terrível: não foram as redes sociais que produziram esse descompasso entre o que somos e o que desejamos ser, elas apenas nos concederam mais ferramentas para isso. E mais profissionais dispostos a fazer tal engano, que não é engano.

SE EU SEI QUE VOCÊ MENTIU NA SUA FOTOGRAFIA, E VOCÊ SABE QUE EU SEI QUE VOCÊ MENTIU, AINDA É UMA MENTIRA?

PIOR, É UMA ESPERANÇA.

A esperança, esse mal, perpetrado em nome do bem maior pelo CRISTIANISMO, é que recobre todos ícones que nos cercamos. Também o homem sem nome é tomado pela esperança de que sua filha não tivesse morrido e seus relacionamento com sua ex-esposa tivesse sido funcional.

Mas a morte de uma criança dificilmente é superada por um casal.

ESSE É O PONTO MAIOR DE QUE PRECISAMOS ENTENDER: ESSAS REDES SOCIAIS EM VERDADE SEGUEM O MESMO PROPÓSITO DO ÍCONE MEDIEVAL BIZANTINO, O DE PROMOVER O PENSAMENTO CRISTÃO DE REPRODUÇÃO, VULGO “AMOR É PARA TODOS”, SÓ QUE PARA O IRMÃO CAPITALISMO.

Amor não é tudo. Nunca foi. Mas amor é reprodução e reprodução é mercado consumidor e de trabalho. Todos os que não se adequarem a isso, ou pelo menos fingirem, logo terem esperança, devem ser rechaçados.

FALAREMOS SOBRE ISSO OUTRO DIA.

POSSESSÃO MÚTUA.

Kioko (Itsuki Otaki) é a chave do filme. A “MULHER DAS FOTOGRAFIAS” ou “ A FOTOGRAFIA DE MULHER” nome original dessa película. Porque ela também está à procura de amor, coisa que Kai sublima, se jogando em sua profissão, e seu amor por seu Louva-a-deus.

Ela aparece do nada na casa dO Kai, e praticamente o obriga a viver com ela, a jantar com ela, a vê-la dançar. O ponto alto é que em nenhum desses primeiros momentos há sexo entre eles, mas a promessas constante: ela está sempre vestida com belas roupas insinuantes, quase sempre de vermelho, quase uma BABALON (1904).

ELA É A FAMOSA PROSTITUTA DA BABILÔNIA DESCRITA POR ALEISTER CROWLEY (1875–1947), AQUELA QUE AO SER SERVIÇAL DE TODOS, VEM A DOMINAR TUDO.

Kioko posta constantemente fotos em seu INSTAGRAM, e logo percebe seu público decair. Até que ela vem a se machucar, e impressionada por uma conversa com a mulher sem nome, pede que Kai não mais as manipule.

E NESSA BELEZA BIZARRA (PLEONASMO, PORQUE A PALAVRA “BIZARRO” QUER DIZER “BELEZA”) ELA ENCONTRA UM NOVO SUCESSO.

Mas Kai, homem sempre de branco, sempre vazio, passa a ser fascinado por essa mulher que entrega tudo de si, para todos as que a seguem, mas não a conhecem pessoalmente.

COMO TODA A PROSTITUTA FAZ.

E é por isso que esse filme é brilhante e moderno ao revalorizar o machismo: porque essas narrativas de sucesso pessoal, mesmo as do feminismo, não conseguiram suprir um problema clássico imposto pelo CRISTIANISMO: a necessidade de se ter um cúmplice, um companheiro.

Assim Kai vai, como seu animal de estimação, desejando literalmente “perder a cabeça” para esse potente feminino sagrado prostituído.

COMO CROWLEY BEM DEFINIU, O DESEJO INDIVIDUAL DE TER PARA SI UMA MULHER PÚBLICA É DEVERAS IRRESISTÍVEL, OU SERIA O NELSON RODRIGUES (1912–1980).

No fim, apenas há uma mulher que quer se prostituída para um homem apenas e uma homem que só quer ser seu cliente premium.

E NÃO FOI ISSO QUE EMILE ZOLA (1840–1902) DEFINIU SOBRE CASAMENTO: QUE ELE É UMA FORMA LEGALIZADA DE PROSTITUIÇÃO? OU FOI A SHEILA JEFFREYS (1948)?

Ou foi o ENGELS (1820–1895), ou ainda JOHN STUART MILL (1806–1873)?

De qualquer forma aqui se mantém uma pergunta de mais de dois séculos: será que se não conseguirmos superar a necessidade de casamento formal como maneira de gerenciar nossos relacionamentos amorosos, em termos culturais, quanto tempo sobreviveriam nossos soluções econômicas?

SENDO MAIS CLARO: SEM UMA CULTURA FEMINISTA RADICAL QUE INCLUA OS HOMENS PARA SUSTENTAR A NOVA ECONOMIA DE RELACIONAMENTOS CRIADAS JUDICIALMENTE , A MESMA PODE SER DERROTADA PELO PESO DA CULTURA PATRIARCAL?

Parece que sim. E ao final desse filme, o ritual de SALOMÉ (14–71?) foi atualizado com sucesso pela QUARTA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL (2016).

COM APROVAÇÃO DESSES NOVOS JOÃOS BATISTAS.

POST SCRIPTUM

Sem novas relações entre homens e mulheres (não importa suas designações de gênero) não podem haver revoluções sociais e econômica, já dizia titio ENGELS.

E parece que ele está certo. Estou ouvindo cada vez mais relatos de mulheres e homens homossexuais se aproveitando de suas posições financeiras para abusarem de suas companheiras e companheiros.

LOGO CONFIRMARAM ALGO HORRÍVEL QUE OS MACHISTAS E MISÓGINOS SEMPRE FALARAM: NÃO QUERIAM SUPERAR OS HOMENS BRANCOS HÉTEROS, QUERIAM É SER ELES.

Sem novos modelos de sociabilidade pessoal isso tinha que redundar aí mesmo.

Logo, no futuro, feminismo, lgbtq+ e negritude deve ser mais foucautianos em perceber que a economia sexual é também parte da economia do Capital.

Veremos. Espero.

FICHA TÉCNICA:

A MODELO E O FOTÓGRAFO [FILME] (2020) — TITULO ORIGINAL:SHASHIN NO ONNA — DURAÇÃO :1 H 29 MIN — NACIONALIDADE :JAPÃO — DIRETOR: TAKESHI KUSHIDA — ROTEIRISTA: TAKESHI KUSHIDA — DISPONÍVEL (ATÉ O MOMENTO DA PUBLICAÇÃO):PRIME VIDEO.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).