A MÉDIUM [FILME] (2021):

Sombrionauta
6 min readMay 28, 2022

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Legião Anima.

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As vezes o que parece contrário a você é o mais próximo à sua identidade. Quando falo disso levanto um problema simples e que é bastante negado hoje em dia: o mundo gira, porque é redondo, logo, somos diferentes uns dos outros, mas não tanto assim, e não nas coisas mais explícitas.

Algumas vezes o implícito se mostra evidente quando o vemos em uma cultura diferente.

Quando pensamos a cultura nativa indígena, partimos do princípio de compará-la a todo momento com a cultura europeia ibérica principalmente, e ignoramos em nossa militância que o pensamento religioso desses povos não era pautado pelo continente europeu necessariamente.

Em nossa sanha de nos afirmar, esquecemos de nos localizar.

Então deixamos de lembrar que os primeiros humanos no continente vieram de diversas formas para cá, e também, de diversos locais, inclusive de lugares como a Ásia: olhemos para os povos mais além do ocidente e provavelmente veremos nossos outros “parentes”, usando uma terminologia indígena.

MAS O IRMÃO-SISTEMA NOS PAUTA DEMAIS E TAMBÉM PLANIFICAMOS O MUNDO E ESQUECEMOS QUE NUMA TERRA REDONDA, O JAPÃO É MAIS PRÓXIMO QUE PORTUGAL.

Este brilhante filme nos mostra que as entidades indígenas, e talvez africanas, tenham chegado por outros meios, e ainda sim, continuam existindo em seu local original.

E QUE ELAS ENTENDEM CONCEITOS FORJADOS NO OCIDENTE, TAIS COMO LUTA DE CLASSES, MELHOR DO QUE ESPERAMOS.

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Eu sou um fã dos filmes de terror. Também os de horror. O primeiro gênero é quando uma força humana lhe impõe uma escolha moral, o segundo é quanto é uma força inumana.

Este filme me parece terror, porque as forças são humanas apesar de serem espirituais.

NÃO CONFUNDA COM ALMA, POR FAVOR.

Convém lembrar que nem todas as religiões trabalham com a alma, que é uma herança do conceito de psyché grega e da anima romana.

Quando se pensa aqui em “espírito” é no sentido dado por Hegel (1770–1831), em que a liberdade em verdade é a expressão ontológica de ser o sentido de si.

EU SOU O QUE SOU E SABER O QUE SOU ME FAZ SER MAIS AINDA O QUE SOU.

Mas se saber o que se é, é não ser mais o que se foi. Perdão, materialismo histórico batendo pesado aqui.

Contudo se o espírito é a vontade de ser o que se é, e quando sua vida foi apenas sofrimento?

BEM VINDO A VINGANÇA COMO MODO DE VIDA.

Todo esse filme toma para si uma premissa deliciosa que também aparece no filme senegalês ATLANTIQUE (2019): uma explicação trabalhista e empregatícia do que são demônios.

DEMÔNIOS SÃO PARA ESSAS PRODUÇÕES OS MENSAGEIROS DA LUTA DE CLASSES EM TERMOS ESPIRITUAIS.

O filme usa a narrativa de estilo mockdocumentário, ou seja, um falso documentário que em verdade é uma produção de terror, coisa que foi feita por BRUXA DE BLAIR (1999) e antes por HOLOCAUTO CANIBAL (1980).

Portanto, por meio de filmagens somos levados a uma das definições antigas do Cinema: a que ele era uma “lanterna para o medo”.

CHUPA HAL JORDAN.

Na trama, documentaristas estão registrando o cotidiano de uma médium tailandesa que incorpora uma deusa chamada Bayan, cujo nome é de Nim (Sawanee Utoomma).

Boa pergunta aqui: tem horas que a tradução a chama de espírito, em outros momentos de deusa, e existem diferenças na ação desses seres sobre seus sacerdotes; quando os deuses os possuem, eles se tornam imagos, já quando a possessão se dá por entidades, chamamos os sacerdotes possuídos de cavalos.

No decorrer das entrevistas, a médium testemunha que era para sua irmã, Noi (Sirani Yankittikan) ter assumido essa função, mas ela se recusou, convertendo-se ao cristianismo, casando, enviuvando e tendo uma filha.

Durante a produção vai aparecendo algo que gostei bastante; uma diferenciação entre as religiões que fazem uso de deuses e as que são guiadas por entidades: na primeira temos uma hierarquia urbana vertical se formando e assim certo maniqueísmo que lembra a ascensão de uma classe dominante, enquanto na segunda estamos numa organização mais horizontal, o que Rousseau (1712–1778) chamou de “comunismo primitivo”.

Também é público e notório que as sacerdotisas desses seres devem ser preferencialmente virgens, ou não terem se casado, sejam elas freiras ou vestais.

Pois bem, em dado momento percebemos que a filha de Noi, Mink (Narilya Gulmongkolpech) está dando indícios de mediunidade.

O ROLO É QUE O QUE LITERALMENTE, DIABOS, ESTÁ TENTANDO ASSUMIR MINK.

Outro detalhe é que o falecido marido de Noi, Wiroj, dono de uma fábrica, logo, patrão safado, morreu incendiando sua fábrica para obter o dinheiro do seguro, vindo a prejudicar a vários trabalhadores, um pratica que é parte da cultura de sua família.

OS HOMENS DA FAMÍLIA DELE EXPLORAM OS POBRES HÁ GERAÇÕES.

E todos eles também tiveram mortes horríveis. Inclusive Mac, seu filho.

No decorrer do filme então assistimos a uma série de filmagens feitas pelos documentaristas, e por outras pessoas com seus celulares, que mostram como Mink vai mudando seu comportamento, sendo que em alguns momentos parece que ela é tomada por uma entidade que a infantiliza, tal qual um Erê, ou se sexualiza ao extremo, como se fosse tomada por algo semelhante a uma Pomba-Gira.

As duas manifestações são terríveis no decorrer da produção, mas ao mesmo tempo fascinantes. Eu fui assistir no cinema, e estranhamente e de maneira incomoda, percebi pessoas rindo nas fileiras atrás de mim.

Sigamos.

À medida que Mink se torna cada vez mais receptiva a esse tipo de espíritos, vemos que Noi, sua mãe cada vez mais cobra que Nim faça algo: bem religiosidade de cidades, tal qual no Brasil: rezamos para qualquer coisa que nos ajude, ainda que não seja a religião oficial.

NADA COMO A HIPOCRISIA DO PODER INSTITUÍDO RELIGIOSAMENTE, QUE SERVE MAIS PARA A MATERIALIDADE DO QUE A ESPIRITUALIDADE. PERGUNTE AO LUTERO (1483–1546).

Contudo o ponto alto do filme é…

ATENÇÃO SPOILER. PULE 05 A 10 SEGUNDOS DESSA NARRAÇÃO A PARTIR DAQUI.

MINK ESTÁ TOMADA PELOS ESPÍRITOS DOS TRABALHADORES, QUE OS HOMENS DE SUA FAMÍLIA PREJUDICARAM.

Assim o que está acontecendo, literalmente, é uma luta de classes, entre a família de Wiro, e trabalhadores-fantasmas.

E NÃO ESTOU FALANDO DE NINGUÉM DA INFORMÁTICA, EMBORA O TERMO SEJA DAÍ.

FIM DO SPOILER.

Depois de ver isso comecei a me perguntar quem era exatamente aquele coletivo de demônios, a legião, que Jesus prendeu numa vara de porcos (Marcos 4.35–41): existem teólogos que afirmam que essa passagem seria uma alegoria para a expulsão do poder romano, enquanto outros atribuem ser uma referencia à abuso sexual .

Essas duas coisas estão presentes no filme: o domínio por uma coletivo de invasores e a sexualidade desesperada.

Logo nos é revelado, no decorrer do filme que Mim está sobre ataque de uma legião, a qual está reivindicando o direito de continuar sua vingança contra família da moça.

Cabe a Nim lutar contra isso.

LEMBRA O CLÁSSICO CONTO DE FADA DA MÃE CONTRA A BRUXA.

SÓ QUE NIM É TIA, NÃO MÃE.

Isto posto, a produção avança mostrando como Mink vai revelando ao ser levada, todos os crimes perpetrados e tolerados por sua família, de como em verdade esses médiuns estão impedindo que essa terrível justiça seja feita.

Enquanto isso os documentaristas tentam registrar tudo, visando não a justiça, mas sim, o espetáculo.

ESSA LEGIÃO TEM PLANOS PARA ELES TAMBÉM.

Enfim, um ótimo filme que realiza uma coisa que particularmente aprecio bastante: mostrar os trabalhadores como vilões, mas não como impotentes ou tolos. É isso que sempre gostei no cinema de direita, a saber, o medo que eles denunciam ter dos trabalhadores, sejam como máquinas sejam como a legião.

E AQUI ESTÁ UMA COISA QUE SEMPRE ODIEI EM CERTO CINEMA DE ESQUERDA: OS TRANSFORMAR EM BOBOS, OU SENDO ROSSEAUNIANO, EM “BONS SELVAGENS”.

Pergunta para os portugueses se eles achavam os indígenas passivos, principalmente em 1791.

Logo aprenda: é melhor ser temido do que amado.

E QUEM NÃO QUER QUE VOCÊ SEJA TEMIDO, PROLETÁRIO, LHE QUER DOMADO.

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Finalmente, quando terminou o filme, olhei para o pessoal que estava rindo na fileira atrás de mim e entendi algo delicioso: não estavam rindo por insulto, mas sim de medo.

Eles também reconheceram o que estava acontecendo, que era uma ira de trabalhadores. Vi reação parecida quando assisti o filme NÓS (2019), ou seja, um terror que não poderia ser encarado diretamente então era sublimado pelo riso.

O RISO CASTIGADOR DE BERGSON (1859–1941), VOLTADO PARA SI MESMO.

BAKHTIN (1895–1975) teria chorado de rir, perante esses risos amedrontados.

OU APENAS SORRIDO, COMO EU.

Se gostou desse texto, 50 palmas serão bem-vindas e agradecidas.

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Sombrionauta

Arcano Oliveira (André Moreira Oliveira) Historiador da cultura especializado em cultura pop. Podcaster do O Sombrionauta (um tanto lógico isso).